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Terra Bola de Neve, Metano e o Dióxido de Carbono


> Esse artigo faz parte de uma discussão mais ampla sobre Mudanças Climáticas, Paleoclimatologia, efeito estufa atmosférico e evidências da ação humana (antropogênica) no atual processo de Aquecimento Global. Para saber mais, acesse: Aquecimento Global: Uma Problemática Verdade.

- Atualizado no dia 23 de outubro de 2023 -

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          O clima da Terra possui três estados: sem calotas polares (como acredita-se que ocorreu durante o Mesozoico Quente), calotas polares parciais (como o presente nos períodos Glaciais e Interglaciais durante o Pleistoceno e Holoceno), e uma Terra completamente coberta em gelo e neve chamada de 'Terra Bola de Neve'. Nesse último caso, espessas camadas de gelo teriam alcançado e coberto completamente as baixas latitudes, incluindo talvez toda a superfície oceânica ou grande parte dela. Acredita-se que a Terra entrou e saiu desse estado de Bola de Neve durante pelo menos dois períodos: o Período Neo-Proterozoico Criogeniano (720-635 milhões de anos atrás) e a glaciação  global Paleo-Proterozoico (2,45-2,2 bilhões de anos de atrás). Com o elevado albedo devido à ampla cobertura de gelo, o estado Bola de Neve foi capaz de se manter estável e as temperaturas médias na superfície terrestre chegaram a atingir -40°C.

          Dependendo dos modelos climáticos e topográficos utilizados, é estimado que para uma cobertura total do planeta hoje (atual geografia continental) com gelo (Terra Bola de Neve) seria necessário que a concentração de dióxido de carbono na atmosfera fosse reduzida para no mínimo 35-60 ppmV, considerando uma incidência solar estimada de 94% a atual (Ref.4). Hoje a concentração de CO2 atmosférico ultrapassa os 400 ppmV. 

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   PALEO-PROTEROZOICO

          A glaciação do Paleo-Proterozoico ocorreu durante um período de mudança climática na Terra. Compensando um Sol cerca de 19% mais fraco do que o atual durante esse período, maiores concentrações de gases estufas, como dióxido de carbono, metano e vapor d´água devem ter estado presentes na atmosfera para manter um clima temperado no Arqueano. Por exemplo, as concentrações de metano são estimadas de terem sido tão altas quanto 1000 vezes a atual devido à atividade microbiana (metanogênica) de procariontes Archaea. A concentração de oxigênio molecular na atmosfera estava aumentando rapidamente devido à atividade de bactérias fotossintéticas excedendo os processos de fixação de oxigênio atmosférico. Nesse sentido, é comumente proposto que com o aumento na oxigenação da Terra, o metano teria reagido com o oxigênio, produzindo dióxido de carbono. Ao mesmo tempo, essas mesmas bactérias e processos geoquímicos sobre superfícies basálticas frescas serviam como fixadores de dióxido de carbono, com ambos sendo evidenciados por uma grande excursão positiva na composição de carbono isotópico em carbonatos sedimentares há cerca de 2,2-2,0 bilhões de anos. Com a diminuição de gases estufas da atmosfera, e substituição de boa parte do metano por dióxido de carbono (um gás estufa bem menos poderoso do que o metano em um contexto de vapor de água na atmosfera), o efeito estufa atmosférico foi drasticamente reduzido, possivelmente levando à Terra Bola de Neve nesse período.


           A atmosfera da jovem Terra continha pouco oxigênio molecular (O2). Hoje o oxigênio molecular (O2) compõe cerca de 20,9% do volume da atmosfera, mas durante os dois primeiros bilhões de anos, o nível desse gás chegou a ser de <10-12 do atual. Como mencionado, a atmosfera passou de um estado redutor para um oxidante possivelmente via intervenção das cianobactérias. Um aumento significativo ocorreu em torno de 2,4-2,0 bilhões de anos atrás no assim chamado Grande Evento de Oxidação (GOE), quando os níveis de oxigênio subiram de <10-5 para cerca de 0,01-0,001 do atual. Nesse evento em específico, existem duas possibilidades:

1. Já explorado, o oxigênio levou a uma maior oxidação dos componentes atmosféricos, reduzindo o potencial estufa da atmosfera e levando finalmente à Terra Bola de Neve (cenário mais defendido);

2. O término da Terra Bola de Neve pode ter engatilhado uma grande produção de oxigênio devido ao clima extremamente quente (~60°C) associado ao aumento drástico de dióxido de carbono na atmosfera. Essa maior temperatura teria levado a um aumento no suprimento de fosfato para os oceanos, e resultando em uma explosão de cianobactérias (causa da grande liberação de oxigênio). Isso pode ter fomentado poderosos eventos evolutivos, tornando a vida mais dependente de oxigênio (aeróbica).

          Durante o Paleo-Proterozoico, a Terra estava recebendo 81-83% da luminosidade solar atual e pode ter entrado e saído de episódios glaciais três ou quatro vezes, culminando na Terra Bola de Neve Makganyene há cerca de 2,3-2,2 bilhões de anos. Evidências geológicas sugerem que um aumento acentuado nas concentrações atmosféricas de dióxido de carbono, talvez via vulcanismo sub-oceano, levaram ao final da Terra Bola de Neve (!). Nesse período, outro marcante evento pode ter ajudado a derrubar a Bola de Neve: a formação provavelmente do primeiro supercontinente. A colisão de vários continentes teria produzido montanhas e modificado substancialmente a topografia continental, levando a mudanças na composição atmosférica e no clima em geral (Ref.3).


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(!) Existe também a hipótese de que o impacto de um asteroide pode ter dado do gatilho inicial para a Terra sair do seu estado de Bola de Neve. Para saber mais, acesse: Impacto de asteroide pode ter ajudado a reverter a Terra Bola de Neve
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   NEO-PROTEROZOICO

           Evidências geológicas e geoquímicas sugerem que no mínimo três eventos de glaciação ocorreram durante a Era Neo-Proterozoica (1000-540 milhões de anos atrás) - como mostrado no gráfico anterior -, incluindo duas Bolas de Neve. Além disso, ao final desse período, ocorreu mais um drástico aumento nas concentrações atmosféricas de oxigênio, no chamado 'Evento Neo-Proterozoico de Oxigenação'. Para a saída desse estado estado de Bola de Neve, os níveis de CO2 atmosférico parecem ter subido ~400-660 vezes o atual e levado eventualmente a temperatura superficial média a alcançar ~50°C. Os níveis dos mares aumentaram rapidamente e robustamente, a uma taxa de 0,2-0,27 m/ano durante a transição para um clima de super-estufa atmosférica (Ref.5).

            Duas Bolas de Neve ocorreram no Período Criogeniano (717-635 milhões de anos atrás): Sturtian e Marinoan. Esses dois eventos exibiram dramática diferença de duração (57 e <16 milhões de anos atrás, respectivamente). Análise geocronológica com zircônio e modelos climáticos sugerem que massiva atividade vulcânica 2-6 milhões de anos antes do término do Marinoan engatilhou o fim precoce desse evento de glaciação através de uma enorme emissão de CO2 na atmosfera (Ref.12). Aliás, a glaciação do Marionoan não parece ter sido completa, com evidência recente apontando extensivas áreas de mar aberto nas regiões costeiras de latitude média e média fornecendo refúgio para organismos eucarióticos durante a fase tardia dese período (Ref.13).  

Modelo "Slushball", no qual águas abertas existiram nos oceanos de baixa e de média latitude no Marinoan Tardio, incluindo existência de ambientes de água marinha rasa habitáveis para macro-algas fototróficas bênticas. Esse cenário suporta rápida recuperação da biosfera após o período de extrema glaciação. Ref.13




   TRANSIÇÃO TECTÔNICA?

          Antes do evento Terra Bola de Neve no Neo-Proteozoico, entre 1,8 e 0,8 bilhões de anos atrás, o regime tectônico e climático do planeta foi caracterizado por uma notável estabilidade ambiental, evolucionária e litosférica, conhecido como 'O Bilhão Entendiante' ("The Boring Billion"). Mesmo assim, a formação do supercontinente Rodinia ocorreu próximo do fim desse intervalo. Foi um período de estagnação, e a vida pouco se diversificou devido às baixas variabilidade geoquímicas e geofísicas.

           Nesse sentido, poderia a transição para as placas tectônicas ter causado as últimas Terras Bolas de Neve? Um estudo publicado em 2018 no periódico Terra Nova (Ref.7) sugere que isso é plausível.

          Várias explicações já foram colocadas como hipóteses para explicar as Bolas de Neve, e podem ser agrupadas em quatro grupos: extraterrestres, geodinâmicas, oceanográficas e bióticas. Entre os fatores geodinâmicas (maioria) propostos, todos podem estar diretamente ligados ao início de atividade das placas tectônicas. Os mecanismos oceanográficos e bióticos podem estar indiretamente associados.

          A Teoria das Placas Tectônicas estabelece que a crosta da Terra e o manto superior são compostos por várias placas relativamente rígidas, grandes, finas e que se movem em relação umas às outras. Deslizes sobre as falhas que definem os limites das placas tectônicas comumente resultam em terremotos (!). Os deslocamentos e movimentos dessas placas é o que molda nossa paisagem ao formar montanhas, transformar o solo oceânico e modificar as terras próximas das fronteiras tectônicas. Não se sabe ao certo quando as placas tectônicas tiveram início na Terra, com muitos cientistas apostando em cerca de 3-2,5 bilhões de anos atrás, e alguns como um evento relativamente mais recente, há cerca de 1 bilhão de anos atrás - ou menos. Esse importante evento teria coincidido com as Bolas de Neve do Neo-Proterozoico?


          As estações climáticas hoje na Terra são controladas por variações na obliquidade do eixo de órbita dentro de uma extensão máxima de 23,5°C (!). Uma maior obliquidade torna a sazonalidade mais forte. Já foi sugerido uma anormal obliquidade maior do que 54° ocorreu durante as glaciações do pré-Edicarano, e causada por uma redistribuição de massa do planeta. Essa redistribuição de massa, levando a substanciais efeitos no sistema rotacional e inercial da Terra, pode ter ocorrido durante o período de transição para as placas tectônicas, quando a primeira zona de subducção se formou.


          Outra explicação nesse sentido envolve a movimentação ou amalgamação do supercontinente Rodinia em mais baixas latitudes, aumentando, portanto, o albedo planetário e levando ao resfriamento responsável por engatilhar a Bola de Neve. E esse descolamento para as mais baixas latitudes é facilmente explicado pela transição.

          Ou pode ser o contrário, onde a quebra do supercontinente Rodinia pelas placas tectônicas em formação, levando a uma maior injeção de vapor de água no interior dos continentes, fomentando o intemperismo químico, aumentando a fixação do dióxido de carbono e diminuindo o efeito estufa atmosférico, contribuindo para um acentuado resfriamento da superfície terrestre. Um aumento do vulcanismo associado à transição também poderia ter contribuído com uma injeção de aerossóis de enxofre (aumento de albedo) além de ter aumentado a fixação de carbono via processos geoquímicos (apesar de um aumento inicial nas concentrações de CO2 atmosférico).

          Apesar de ter ocorrido também uma Bola de Neve no Paleo-Proteozoico (~2,3 bilhões de anos atrás), essa não é uma época proposta para a transição. Mas, como previamente mencionado, algumas hipóteses sugerem que a ação de placas tectônicas já estabelecidas podem ter levado à formação de um supercontinente nesse período, com o processo causando mudanças extremas no clima que podem ter fomentado eventualmente uma Bola de Neve. Aliás, evidências recentes sugerem que a Terra passou por um período de intenso bombardeamento - impactos moderados (70-100 km) - há cerca de 3,2 bilhões de anos atrás que podem ter gerado anomalias térmicas no manto e engatilhado as placas tectônicas (Ref.10).

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   VIDA NA BOLA DE NEVE?

           Um dos desafios à hipótese da Terra Bola de Neve é a persistência da vida e de rica biodiversidade nos cenários de completa cobertura de gelo nos oceanos, onde trocas gasosas e de energia entre as águas marinhas e a atmosfera teriam sido impedidas. Rochas Australianas datadas do Período Criogeniano (720 até 635 milhões de anos atrás) - quanto a Austrália estava localizada próximo do equador - fornecem convincente evidência de que a Terra chegou a ficar completamente coberta de gelo. Sem interação atmosfera-oceano, mudanças dramáticas nos oceanos ocorreriam, especialmente em termos de concentração de oxigênio (O2). Porém, complexa vida multicelular emergiu nesse período, gerando um paradoxo.

           Um estudo recente publicado no periódico Nature Communications (Ref.11), analisando rochas no Sul da Austrália datadas em ~700 milhões de anos, encontrou depósitos de ferro (bandas Criogenianas) se formando na época da Terra Bola de Neve, e cujo oxigênio molecular necessário para a formação de íons Fe2+ (oxidação de ferro) teve origem da atmosfera. Analisando esses depósitos de ferro, os pesquisadores mostraram que sob uma ampla faixa (nível) de CO2 atmosférico (entre 0,1 e 200 mbar) permitida nesse período, variações na órbita e inclinação da Terra ao redor do Sol seguindo os ciclos de Milankovitch, e consequentes variações na incidência solar, teriam sido suficientes para promover avanços e significativos recuos das geleiras, permitindo regiões marinhas livres de gelo na Bola de Neve e possibilitando trocas gasosas entre oceano e atmosfera. 


          Os ciclos de Milankovitch exercem um fundamental controle da variabilidade climática da Terra ao longo de dezenas a milhares de anos, com modulações em centenas de milhares de anos e mesmo milhões de anos. Evidência dessas influências orbitais no clima terrestre data de pelo menos 2,48 bilhões de anos atrás. Para mais informações, acesse: A atividade solar é a responsável pelo atual padrão de aquecimento global?

           Os resultados do estudo - suportando sensibilidade das camadas de gelo cobrindo o planeta durante a Bola de Neve às forças orbitais - também ajudam a explicar variações sedimentológicas Criogenianas amplamente disseminadas em certas formações geológicas difíceis de serem reconciliadas sem um ciclo hidrológico esperado de ocorrer com a livre interação entre oceano e atmosfera. Em outras palavras, é provável que a Terra nunca ficou 100% coberta por gelo, mesmo durante os avanços das geleiras no equador.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://pubs.geoscienceworld.org/gsa/geology/article-abstract/47/4/317/569039
  2. Tajika, E., & Harada, M. (2019). Great Oxidation Event and Snowball Earth. Astrobiology, 261–271. doi:10.1007/978-981-13-3639-3_17
  3. https://www.nature.com/articles/s41598-019-38839-6
  4. Liu, Y., Peltier, W. R., Yang, J., & Hu, Y. (2018). Influence of Surface Topography on the Critical Carbon Dioxide Level Required for the Formation of a Modern Snowball Earth. Journal of Climate, 31(20), 8463–8479.
  5. https://science.sciencemag.org/content/360/6389/649.abstract 
  6. https://pubs.geoscienceworld.org/perspectives/article-abstract/7/2/130/567166
  7. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/ter.12321
  8. https://www.nps.gov/subjects/geology/plate-tectonics.htm
  9. https://pubs.usgs.gov/gip/dynamic/understanding.html
  10. https://pubs.geoscienceworld.org/gsa/geology/article-abstract/doi/10.1130/G46533.1/575921/The-role-of-impacts-on-Archaean-tectonics
  11. https://www.nature.com/articles/s41467-021-24439-4
  12. Lan et al. (2022). Massive Volcanism May Have Foreshortened the Marinoan Snowball Earth. Geophysical Research Letters, Volume 49, Issue 6, e2021GL097156. https://doi.org/10.1029/2021GL097156
  13. Song et al. (2023). Mid-latitudinal habitable environment for marine eukaryotes during the waning stage of the Marinoan snowball glaciation. Nature Communications 14, 1564. https://doi.org/10.1038/s41467-023-37172-x