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Intestino e estômago estão diretamente ligados ao cérebro, apontam estudos


- Atualizado no dia 30 de junho de 2022 -

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           Três impactantes estudos publicados em 2017-2018 na Science e na Cell foram os primeiros a mostrar de forma convincente que o nosso intestino possui uma conexão direta com o cérebro através de um circuito neural que permite a transmissão de sinais em questão de milissegundos. O notável achado, desde então, tem sido reforçado por outros estudos publicados em periódicos de alto impacto, incluindo a descoberta mais recente de uma ligação neural direta e similar entre o cérebro e o estômago, a qual pode explicar, por exemplo, porque o estresse fomenta o desenvolvimento de úlcera nesse órgão. Esses achados podem levar a uma nova revolução na medicina, no sentido de novos tratamentos para a obesidade, transtornos alimentares e até mesmo depressão e autismo, problemas estes os quais têm sido ligados nas últimas décadas ao mal funcionamento do sistema gastrointestinal.


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   INTESTINO NERVOSO

          O intestino humano está associado com mais de 100 milhões de células nervosas. Nesse órgão, existe uma única camada de células epiteliais separando o lúmen do tecido subsequente. Dispersadas dentro dessa camada encontramos células eletricamente excitáveis chamadas de células enteroendócrinas (CE), as quais sentem os nutrientes e metabólitos microbianos (!). Assim como as células receptoras gustativas e olfativas, as CE acionam potenciais de ação na presença de estímulo. No entanto, ao contrário de outras células epiteliais ligadas aos sentidos (visão, audição, olfato, etc.), nunca havíamos encontrado e descrito uma ligação sináptica entre as CE e os nervos cranianos. Nesse sentido, sempre assumiu-se que essas células especiais agiam no tecido nervoso cerebral de forma indireta, através da ação lenta de hormônios, como a colecistocinina (CCK).



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(!) A microbiota intestinal engloba mais de 10 trilhões de microrganismos diversos, aumentando distalmente de densidade ao longo do trato gastrointestinal. Esses microrganismos convivem em uma relação simbiótica com a nossa espécie, onde fornecemos um rico ambiente nutricional para bactérias e outros micróbios, e estes, por sua vez, impactam a nossa fisiologia, imunologia e metabolismo através de mecanismos variados, tipicamente mediados por metabólitos. Nesse sentido, nosso microbioma intestinal é um fator de crucial interferência na comunicação entre o cérebro e o intestino (Ref.9).
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          De fato, o intestino está em constante comunicação com o cérebro, liberando diversos hormônios na corrente sanguínea que, após cerca de 10 minutos, nos informam o quão famintos estamos ou sobre os nutrientes sendo ingeridos. Como essa ação é muito lenta, no caso da CCK - importante na sensação de saciedade -, esta acaba atingindo seu pico geralmente quando a refeição termina, contrariando em parte seu sentido de ação. Essa e outras discrepâncias similares sempre sugeriram que o cérebro também percebe o sistema sensorial do intestino através de uma sinalização neuronal mais rápida, mas até poucos anos atrás, não tínhamos sólidas evidências científicas corroborando essa ideia.

           Nesse sentido,  três estudos publicados em 2017-2018 conseguiram resolver o mistério. Um deles mostrou que um subconjunto de CE, chamado de células enterocromafins, media a transmissão de sinais pelas sinapses epiteliais-neurais através da liberação do neurotransmissor serotonina. Outro estudo demonstrou que as células enteroendócrinas excitam localmente nervos sensoriais através da liberação do neurotransmissor glutamato. Por fim, o terceiro estudo encontrou que a estimulação das células intestinais causa a liberação de dopamina, outro neurotransmissor. Juntos, esses achados derrubaram a ideia de que apenas hormônios mediam a comunicação entre intestino e cérebro nos mamíferos, incluindo o ser humano.

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ATUALIZAÇÃO (30/06/2022): Além dos mediadores glutamato, serotonina e dopamina, um estudo publicado na Cell (Ref.10) revelou que o peptídeo GLP-1 também participa de uma comunicação neural direta inter-órgãos no sistema gastrointestinal e entre o sistema gastrointestinal e o cérebro. O GLP-1 é um peptídeo liberado de células enteroendócrinas  do trato intestinal inferior, e possui ações anoréticas e de anti-motilidade visando supressão do apetite e proteção do corpo contra a absorção inadequada de nutrientes. Os achados do novo estudo, realizado em ratos, mostraram que, ao invés de agir como um hormônio endócrino, o GLP-1 sinaliza através de um sistema neural que envolve neurônios entéricos do intestino até os centros de apetite no cérebro e envolvendo o estômago, suprimindo o apetite ao inibir o esvaziamento gástrico e a urgência de alimentação. 
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   GLUTAMATO

          Publicado em 2018 na Science (Ref.1), pesquisadores da Universidade de Duke, liderados pela Dra. Melanie Maya Kaelberer, estudaram um subconjunto de células enteroendócrinas no intestino de ratos responsável pela expressão de duas proteínas precursoras - a CCK e o peptídeo YY (PYY) -, as quais são clivadas para a produção de hormônios que controlam a fome. Os autores do estudo confirmaram que essas CE possuem características anatômicas de células pré-sinápticas e que elas formam conexões sinápticas com os neurônios sensoriais espinhais e vagais. Além disso, ao infusionar sacarose (açúcar comum) no intestino, foi observado in vivo que o nervo vago era ativado via mecanismo enteroendócrino-dependente.

          Para superar o desafio de estudar as CE - devido à relativa escassez e localização destas últimas no interior do intestino - os pesquisadores primeiro usaram uma co-cultura in vitro modelando essas células e neurônios sensoriais. Estimulação das CE com D-glicose, um componente da sacarose (a qual é um dissacarídeo formado pela junção de uma molécula de glicose com uma molécula de frutose), ativava correntes iônicas excitatórias e potenciais de ação nos seus neurônios associados, com velocidades entre dezenas e centenas de milissegundos, uma escala de tempo típica de transmissões sinápticas e muito longe daquela vista via hormônios.



           O próximo passo do estudo foi mostrar que a D-glicose estimula a liberação de glutamato (ânions associados ao aminoácido glutamina) das CE, a partir de biossensores geneticamente engenhados. Mas o mais importante foi demonstrar que ao bloquear os canais por onde o íon glutamato passa, as correntes induzidas pela D-glicose são também bloqueadas nos neurônios vagais in vitro. Análises in vivo mostraram que esses canais de glutamato eram requeridos para respostas iniciais (<60 segundos) do vago aos açúcares sendo digeridos, ao contrário dos receptores neuropeptídicos que são responsáveis por uma resposta do vago em uma maior escala de tempo.

          Concluindo, os pesquisadores encontraram que as CE formam sinapses com os neurônios do vago. Devido à habilidade dessas células de formarem circuitos neuroepiteliais, não apenas comunicações via hormônios, eles também propuseram uma mudança de nome de 'células enteroendócrinas' para 'células neuropodas'. Ao formarem sinapses com o nervo vago, as células neuropodas conectam o lúmen intestinal à haste do cérebro. As células neuropodas transduzem estímulos sensoriais de açúcares em milissegundos usando glutamato como um neurotransmissor. O circuito neural que eles formam dão ao intestino uma grande rapidez para comunicar ao cérebro as ocorrências do dia em relação ao que estamos comendo em tempo quasi-real. Enquanto a rápida resposta possibilita processos rápidos de modulação da fisiologia intestinal, como contrações musculares, os neuropeptídeos seriam responsáveis por comportamentos de mais longa duração, como manutenção da saciedade.


   SEROTONINA

          Células enterocromafins produzem a maior parte da serotonina no nosso corpo e, devido a isso, são pensadas de regularem vários processos patológicos e fisiológicos. No entanto, como o tecido epitelial do intestino possui muito pouco dessas células, nunca foi esclarecido qual era a função delas nesse órgão.

          Nesse sentido, um estudo prévio, publicado em 2017 na Cell (Ref.2), utilizou organoides intestinais nos quais células cromafins foram marcadas com proteínas verdes fluorescentes, permitindo a análise da função individual dessas células. Através de análise eletrofisiológica, os pesquisadores mostraram que as células enterocromafins exibiam características típicas de células sensoriais periféricas, incluindo a presença de canais de sódio e potássio e excitabilidade em resposta à depolarização. Além disso, essas células responderam a vários compostos de importância fisiológica, incluindo o alil-isotiocianato (ligado a dores de inflamação visceral), isovalerato (um subproduto da microbiota intestinal associado com transtornos gastrointestinais) e catecolamina noradrenalina (liberado por fibras nervosas simpáticas no intestino e está associada a danos e estresse gastrointestinais).

          Análises posteriores mostraram que as células enterocromafins expressam receptores sensoriais, incluindo o receptor transiente do canal de potencial catiônico A1 (TRPA1), o receptor olfativo OLFR558 e o TRPC4, um componente do caminho de sinalização-transdução da catecolamina. Por fim, ao aplicarem adrenalina ao epitélio intestinal, os pesquisadores também mostraram que ocorria a liberação do neurotransmissor serotonina das células enterocromafins. Tudo isso fortemente sugeriu que essas células são sensores químicos intermediando de forma direta estímulos diversos oriundos do intestino até o cérebro.


   DOPAMINA

          Além de enviar informações nutricionais ao cérebro, essa conexão direta entre intestino e cérebro pode possuir a função de causar sensações de prazer. Essa sugestão está na conclusão de outro estudo publicado em 2018 também na Cell (Ref.3), e que reforçou os achados de Kaelberer et al.

          Nesse estudo, os pesquisadores usaram lasers para estimular os neurônios sensoriais que inervam o intestino em ratos. O resultado foi que esse estímulo produziu sensações de recompensa nos roedores, levando-os a repetirem suas ações em busca de mais do estímulo. Essa estimulação via laser também aumentou os níveis de um neurotransmissor de humor chamado dopamina no cérebro desses animais. Isso pode explicar porque o estímulo do nervo vago com correntes elétricas pode tratar casos severos de depressão nas pessoas, ou porque comer nos faz sentir uma boa sensação.


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    CÉREBRO-INTESTINO

          Combinando os três estudos, ficou claro que a comunicação do intestino com o cérebro não fica dependente apenas da sinalização com hormônios. Neurotransmissores agindo através das ligações sinápticas entre células enteroendócrinas (ou neuropodas) e neurônios do nervo vago complementam esse sistema de comunicação intestino-cérebro, gerando benefícios que vão além do monitoramento nutricional.


          Aliás, em um estudo publicado em 2020 no periódico Autonomic Neuroscience: Basic & Clinical (Ref.6), pesquisadores descobriram que não só a parte motora-sensorial do cérebro está associada ao intestino, mas praticamente todo o cérebro, incluindo áreas ligadas ao aprendizado, às emoções e centros cognitivos. Além disso, em torno de 50% dos neurônios associado ao eixo cérebro-intestino possuíam ambas as funções: motora e sensorial. O achado foi feito após 3 anos de análises do intestino delgado em ratos, via rastreamento viral transsináptico e processamento imunohistoquímico. Isso pode também explicar porque estados emocionais geram respostas tão rápidas e robustas no sistema digestivo (frio na barriga, borboletas no estômago, comer de nervoso, raiva associada à fome, intestino irritado com estresse/ansiedade, etc.).

              O envolvimento dos centros cognitivos e emocionais nesse contexto também fornece pistas sobre como o cérebro pensante às vezes se impõe às nossas sensações de 'estar cheio' ou 'estar com fome' - tipo quando você esquece que está com fome devido a um problema mais urgente que apareceu -, ou mesmo relações entre depressão e problemas digestivos. 
 
         Essa intricada e direta interação cérebro-intestino parece também ser bem antiga na escala evolutiva, já que as células sensoriais do intestino datam de um dos primeiros organismos multicelulares que se têm conhecimento, um animal achatado da espécie Trichoplax adhaerens, o qual surgiu há cerca de 600 milhões de anos.

           


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   ESTÔMAGO-CÉREBRO

          É importante ressaltar que o cérebro não parece ter uma relação especial apenas com o intestino. Um estudo publicado em 2020 no periódico PNAS (Ref.8) foi o o primeiro a revelar caminhos neurais conectando o cérebro diretamente ao estômago, fornecendo um mecanismo biológico para explicar como o estresse pode fomentar o desenvolvimento de uma úlcera.

          Para encontrar as regiões do cérebro que controlam o sistema digestivo, os pesquisadores no estudo usaram uma cepa de vírus da raiva para rastrear as conexões do cérebro ao estômago. Após ser injetado no estômago de ratos, o rastreador viral seguiu seu caminho até o cérebro pulando de neurônio para neutrônio, usando o mesmo mecanismo usado pelo vírus em humanos após, por exemplo, a mordida de um animal infectado. O rastreamento mostrou que a insula rostral - região do cérebro responsável pela sensação visceral e pela regulação de emoção - enviava comandos para o estômago a partir do sistema nervoso parassimpático - "descanso e digestão". O estômago manda informação para o córtex, este o qual envia instruções de volta para o intestino. Isso reforça que as sensações no intestino não são construídas apenas de sinais derivados do estômago, mas também de todas as outras influências sobre a insula rostral, como experiências passas e conhecimento contextual.


           Em contraste, o sistema nervoso simpático - "lute ou fuja" -, o qual é engatilhado quando estamos estressados, predominantemente traça de volta do estômago para o córtex primário motor, que é o responsável pelo controle voluntário sobre os músculos esqueléticos que movimentam o corpo.

          Saber que o cérebro exerce controle físico sobre todo o sistema digestivo dá aos médicos um novo meio para tratar problemas intestinais e estomacais que não conseguem ser tratados com vias terapêuticas tradicionais.

           E mais recentemente, pesquisadores revelaram a existência de uma rede cortical sincronizada ao ritmo gástrico, gerando continuamente uma oscilação de 0,05 Hz que coordena as contrações do estômago necessárias para a digestão. Esse ritmo é intermediado pelas células intersticiais de Cajal, um tipo de célula especializada presente nas camadas musculares estomacais, as quais realizam conexões similares a sinapses com fibras aferentes de neurônios sensoriais vagais e corpos celulares localizados no gânglio nodoso. Mais relevante, a oscilação de 0,05 Hz também mostra-se acoplada ao cérebro: a fase do ritmo gástrico modula a amplitude do ritmo occipital alfa, o mais saliente ritmo cerebral nos humanos durante momentos de descanso despertado (Ref.11). 

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   CONCLUSÃO

          Os eixos cérebro-intestino e cérebro-estômago são caracterizados por caminhos bidirecionais de sinalização - hormonal e neural - conectando o sistema nervoso central ao sistema gastrointestinal. Enquanto tradicionalmente acreditava-se que a comunicação entre esses dois sistemas era feita de forma indireta e tipicamente lenta, hoje sabemos que existe uma ponte de comunicação direta entre cérebro, intestino e estômago. O melhor entendimento do complexo emaranhado neural associado a essa comunicação direta  pode fornecer novas ferramentas terapêuticas para o tratamento de condições crônicas gastrointestinais.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://science.sciencemag.org/content/361/6408/eaat5236 
  2. Ingraham et al. (2017). Enterochromaffin Cells Are Gut Chemosensors that Couple to Sensory Neural Pathways. Cell, Volume 170, Issue 1, P185-198.E16. https://doi.org/10.1016/j.cell.2017.05.034  
  3. Han et al. (2018). A Neural Circuit for Gut-Induced Reward. Cell, 175(3):665-678.e23.  https://doi.org/10.1016/j.cell.2018.08.049
  4. https://www.sciencemag.org/news/2018/09/your-gut-directly-connected-your-brain-newly-discovered-neuron-circuit
  5. http://science.sciencemag.org/content/361/6408/1203
  6. https://www.autonomicneuroscience.com/article/S1566-0702(19)30222-X/fulltext
  7. https://www.upmc.com/media/news/051820-pnas-brain-to-stomach
  8. https://www.pnas.org/lookup/doi/10.1073/pnas.2002737117
  9. Wachsmuth et al. (2022). Role of the gut–brain axis in energy and glucose metabolism. Exp Mol Med 54, 377–392. https://doi.org/10.1038/s12276-021-00677-w
  10. Han et al. (2022). An inter-organ neural circuit for appetite suppression. Cell. https://doi.org/10.1016/j.cell.2022.05.007
  11. Rebollo et al. (2021). Brain–stomach coupling: Anatomy, functions, and future avenues of research. Current Opinion in Biomedical Engineering, 18, 100270. https://doi.org/10.1016/j.cobme.2021.100270