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Picadas de cobras: descaso da saúde pública


- Atualizado no dia 25 de fevereiro de 2024 -

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           As equipes do Médicos Sem Fronteiras (Médecins Sans Frontières) frequentemente tentam chamar a atenção do mundo para um dos problemas de saúde pública mais desprezados pelas organizações e governos internacionais: as picadas venenosas desferidas por cobras (subordem Serpente). Os métodos de tratamento usados hoje são antigos, não existe avanço em pesquisas relacionadas e o número de acidentes fatais só vem crescendo todos os anos.

            É estimado que, anualmente, ocorram em torno de 5 milhões de picadas de cobras, entre as quais cerca de 81-138 mil pessoas acabam morrendo. Além disso, todos os anos, próximo de 3 milhões dessas vítimas sofrem graves danos por causa das picadas, e cerca de 400 mil acabam ficando desfiguradas, desabilitadas e desmembradas (especialmente nas pernas), entre outros danos permanentes, devido ao veneno necrosante produzido por um grande número desses répteis. As cobras peçonhentas são a segunda maior causa animal de mortes humanas no planeta, perdendo apenas para os mosquitos (estes transmitem diversas doenças, especialmente a malária). Somente na África Sub-Sariana, estima-se que ocorram mais de 314 mil picadas de cobras, com 7,3 mil mortes e 6 mil amputamentos resultantes.

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   TRATAMENTO E EMPECILHOS

          O tratamento hoje para o envenenamento ofídico consiste na administração intravenosa de um soro contendo anticorpos específicos contra a peçonha de cada espécie de cobra visada. O processo de produção desse soro remonta do século XIX, descoberto pelo bacteriologista Albert Calmette e otimizado pelo pesquisador brasileiro Vital Brazil. Nele, pequenas doses não letais do veneno da cobra visada são injetadas em um animal de grande porte (cavalo, na grande maioria das vezes). Decorrido um certo período de tempo, o animal produz os anticorpos contra o veneno injetado, os quais ficam circulando em seu sangue. Em seguida, uma substancial quantidade de sangue é retirada dele (sangria), centrifugado, filtrado, e os anticorpos separados para a feitura do soro antiofídico. Aqui no Brasil, por exemplo, são produzidos seis soros:

- Antibotrópico = contra acidentes de jararacas
- Anticrotálico = contra acidentes de cascavel
- Antilaquético = contra acidentes de surucucu
- Antielapídido = contra acidentes de cobra-coral
- Anticrotálico-botrópico = contra acidentes com cascavéis e jararacas
- Antibotrópico-laquético = contra acidentes com jararacas e surucucus

Veneno sendo extraído de uma cobra peçonhenta

              Mas se existem soros antiofídicos para diversos tipos de cobras peçonhentas, por que existem tantas mortes e danos graves pelo mundo decorrentes das picadas desses répteis? O fato dos tratamentos disponíveis dependerem da administração de um soro em um hospital e necessitarem de supervisão médica - especialmente devido a possíveis reações adversas comuns no tratamento -, pode ser algo inútil para quem está, por exemplo, se aventurando no meio da selva. Isso sem contar que grande parte das picadas ocorre em áreas rurais, ou seja, mais isoladas em termos de infraestrutura tecnológica. E ainda temos o fato de que a picada venenosa deixa a vítima progressivamente mais fraca, dificultando ainda mais sua chegada ao um hospital ou a um posto de saúde. Além disso, temos um notável agravante: qual antídoto aplicar? Se a pessoa não souber qual cobra a picou, ou não tiver levado o espécime para o centro de saúde, a escolha do soro torna-se um problema. Existem certos soros que cobrem múltiplas espécies, mas não todas. Além disso, algumas pessoas podem ser alérgicas aos componentes desses soros, podendo levá-las à morte quando recebem o fluído de forma intravenosa.

           O ideal seria a descoberta de novos medicamentos possíveis de serem produzidos em larga escala, o mais seguros possível para um amplo espectro de indivíduos, que possuam um amplo efeito terapêutico contra os mais variados tipos de peçonhas, e que possam ser transportados e administrados pelas pessoas morando em áreas de risco como comprimidos de aspirina, ou seja, da forma mais prática possível. Assim, caso algum acidente ocorresse, um medicamento eficiente já estaria em mãos para ser aplicado ou ingerido, no mínimo freando os danos de toxicidade para que a vítima tenha maiores chances de conseguir um atendimento médico. O problema é que as pesquisas nessa área não recebem quase nenhum investimento. Muitos medicamentos promissores não vão para a frente porque quase ninguém se interessa em patrociná-los Alguns pesquisadores vêm até organizando crowdfundings para ver se conseguem verba. Aliás, essa falta de interesse gera profissionais despreparados para lidar com pacientes envenenados por cobras, aumentando as taxas de mortalidade ou sérios danos.

          Interessantes descobertas nessa área já foram feitas, como certas moléculas que inibem a atividade tóxica do veneno da víbora-tapete (Echis ocellatus) e misturas de certos anticorpos humanos que neutralizam as neurotoxinas da extremamente venenosa mamba-negra (Dendroaspis polylepis). Porém, essas descobertas acabam não seguindo para o desenvolvimento de novos medicamentos e para os testes clínicos pela falta de investimento.

Naja naja é uma das espécies de cobras peçonhentas mais perigosas da Ásia, sendo uma das principais responsáveis pelos acidentes na Índia; mesmo assim, ela é muito utilizado pelos famosos encantadores de cobras indianos, além de ser um animal sagrado e protegido pelas leis do país
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ATUALIZAÇÃO (24/12/16): Mais uma promissora descoberta. Pesquisadores conseguiram sintetizar complexas nanopartículas que se ligam fortemente às proteínas PLA2 encontradas em diferentes estruturas na peçonha das cobras. Isso pode dar origem a um antídoto universal de baixo custo e que não precisa de maiores cuidados de armazenamento, como refrigeração, diminuindo ainda mais os gastos. Unindo grande eficiência e preços baixos, essas nanopartículas possuem o potencial de salvar milhares de pessoas todos os anos. Além disso, a mesma estratégia de síntese e de aplicação pode ser usada para outros animais peçonhentos, como os escorpiões. (Ref.12)

ATUALIZAÇÃO (08/05/20)Em um estudo publicado na Science (Ref.14), pesquisadores reportaram dois compostos quelantes de íons metálicos - dimercaprol e ácido 2,3-dimercapto-1-propanossulfônico (DMPS) que conseguiram antagonizar a atividade de metaloproteinases dependentes do íon Zn2+ presentes no veneno de cobras do gênero Echis, responsáveis por grande parte das mortes no mundo por envenenamento ofídico - especialmente na África e na Ásia - e consideradas as mais perigosas do planeta por serem agressivas, inoculadores de grande quantidade de peçonha, atacarem com facilidade e serem difíceis de serem percebidas. A peçonha dessas cobras leva a hemorragia e coagulopatia sistêmicas. Os compostos quelantes expressaram grande eficiência in vitro e protegeram ratos em testes laboratoriais. Isso dá suporte para um potencial medicamento a base desses agentes quelantes que pode servir de intervenção emergencial para  prolongar a vida das vítimas até que uma intervenção hospitalar esteja disponível.

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           Outro gravíssimo problema é o fechamento de indústrias para a produção de antídotos devido justamente à falta de investimentos de compra. Em 2016, a companhia farmacêutica Francesa Sanofi Pasteur oficialmente finalizou o fornecimento do FAV-Afrique, um antídoto polivalente que cobre 10 tipos de cobras (entre as quais estão as mais perigosas da África), após a entrega do último lote. A Sanofi, a única que produzia o FAV, tinha parado sua produção em 2014. Segundo a empresa, o custo de produção do antídoto é caro, as condições de armazenagem são caras, o seu prazo de validade é curto e é um medicamento muito sensível às mudanças de temperatura, precisando de uma contínua refrigeração. O custo é alto e os lucros são baixos, porque os governos da África não querem comprá-lo em grandes quantidades e com um preço bom. Custos com o armazenamento desses produtos também entram nas contas do descaso, principalmente quando é necessário considerar a contínua refrigeração.

           Por causa de de uma questão de lucro, um importante salvador de vidas deixou de existir. Simples assim. Outras empresas farmacêuticas, como a Pfizer e a Behringwerke, também seguiram o mesmo passo. E a vergonhosa situação também gera outra triste consequência: a produção de antídotos de reduzida qualidade, estes os quais podem ajudar a comprometer a saúde da vítima sendo tratada.

A temida Mamba-Negra é a espécie mais perigosa da África, devido à sua extrema agressividade e velocidade de ataque. Essa cobra, em uma única investida, pode aplicar até 12 picadas, injetando veneno suficiente para matar dezenas de pessoas; se o tratamento com soro não for feito às pressas, as chances de morte são de quase 100%; mesmo com a aplicação do soro, o risco de morte é próximo de 50%.

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   MOTIVO DO DESCASO

           Bem, agora é que vem o fato mais triste. Muitos devem estar se perguntando o porquê da falta de investimentos e o excesso de descaso das indústrias/governos com essa grave questão de saúde pública. A explicação é simples e vergonhosa. As picadas de cobras são um grande problema das áreas tropicais, englobando, em majoritária parte, as regiões da África e sudeste da Ásia, principalmente nas áreas rurais. Esses locais concentram, em grande maioria, as populações mais pobres do mundo. Infelizmente, picada de cobra não é um problema que atinge os países desenvolvidos, os quais estão em regiões quase livres desses acidentes. Como a Sanofi deixou bem explícito, direcionar recursos para salvar os mais pobres não compensa, porque o lucro é baixo. Situação similar ocorre com a Malária, a qual também só atinge áreas tropicais, principalmente na África.

            Entre 2000 e 2011, por exemplo, dos 756 novos medicamentos lançados no mercado, apenas 4 visavam a Malária, mesmo ela sendo um dos maiores ceifadores de vida no mundo. Em 2010, essa doença matou algo estimado em 1133000 pessoas, sendo que 90% dos casos ocorreram na África. E em 2013, mais de 198 milhões foram infectados, com um criança morrendo a cada minuto no continente. Se o problema de saúde pública não atinge os países ricos, como a Aids e a obesidade, pouca coisa é feita. Talvez não é exagero especular que futuramente só teremos placebos disponíveis para tratar o lado negligenciado do mundo. E além da saúde, a pobreza e miséria nas áreas mais miseráveis só tende a se agravar, porque muitas pessoas, quando afetadas por essas doenças ou ataques de animais peçonhentos, acabam ficando desabilitadas para continuarem trabalhando ou acabam morrendo e deixando para trás filhos/família em maior necessidade.

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ATUALIZAÇÃO (03/06/2019): A Wellcome Trust, uma financiadora de pesquisas biomédicas, anunciou uma ambiciosa iniciativa para otimizar o tratamento de picadas de cobras em países pobres. Serão US$103 milhões oferecidos para melhorar terapias já existentes e também para fomentar o desenvolvimento de antídotos que possam tratar as toxinas de diferentes espécies de cobras. Além disso, em parceria com o Médicos Sem Fronteiras, a Wellcome planeja estabelecer uma rede pan-Africana de testes clínicos cuidadosamente projetados para testar novos candidatos medicamentosos promissores em humanos (Ref.13).
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   APENAS HUMANOS PREJUDICADOS?

            E não é apenas os humanos que sofrem com a problemática envolvendo as peçonhas ofídicas. Por causa do descaso de saúde pública, os gigantescos prejuízos causados pelas picadas de cobra acabam afetando negativamente a visão da população em relação a esses animais. Várias pessoas, especialmente aquelas que habitam regiões muito atingidas pelas picadas, acabam tendo ódio das cobras e não mostram-se nem um pouco dispostas em ajudar na conservação de inúmeras espécies, pelo contrário, buscam matar o maior número possível. Assim como ocorre com os tubarões, a má fama acaba sendo outro perigoso inimigo a ser lidado pelos grupos e agências de conservação ambiental. E o pior é que esses répteis são extremamente importantes para o equilíbrio ecológico e até para a economia humana. As populações de vários roedores, por exemplo, são controladas, em grande parte, pelas cobras e, sem elas, plantações de cereais e grãos teriam uma redução substancial de rendimento com o estouro populacional desses animais.

          Maior infraestrutura médica, maior disponibilidades de antídotos - e busca contantes por outros mais eficazes -, e amplas campanhas de conscientização da população sobre como prevenir as picadas, são passos essenciais para proteger tanto os humanos quanto as cobras. E isso tudo só será alcançado quando o egoísmo humano for realmente vencido pela causa humanitária.

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OBSERVAÇÃO: Foi usado os termos 'peçonhento' e 'veneno' na feitura do texto, mas o certo seria referir-se às cobras que injetam veneno apenas como animais peçonhentos e que inoculam uma peçonha. Animais venenosos, e que produzem veneno, não possuem estruturas inoculatórias (ferrões, presas, etc.) para aplicar ativamente a toxina, como as rãs venenosas (1). O veneno apenas faz parte do corpo. Animais peçonhentos inoculam ativamente a toxina (peçonha) no seu alvo, como as serpentes e escorpiões. Usei uma junção dos termos no texto para facilitar o entendimento durante a leitura.
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(1) Com exceção de duas espécies recentemente descobertas. Para mais informações, acesse: Rãs peçonhentas!


ESPÉCIE MAIS PEÇONHENTA DO MUNDO

A Taipan-Continental é a espécie mais peçonhenta do mundo; uma única picada entrega peçonha suficiente para matar mais de 100 homens adultos; habita algumas regiões da Austrália, mas raramente causa acidentes em humanos por não ser uma espécie agressiva e abundante

 ESPÉCIE MAIS PERIGOSA DO MUNDO
 

A também australiana Taipan-Litorânea, diferente da Taipan-Continenatal, é extremamente agressiva, e ataca sob qualquer movimentação suspeita no seu território e, por isso, mesmo sendo a 6° mais peçonhenta, ela figura como a mais perigosa do mundo, junto com a Mamba-Negra; a taxa de mortalidade geral é de 80% das vítimas, mas, sem tratamento, a taxa chega a  ser próxima de, virtualmente, 100%


 ESPÉCIE MAIS PEÇONHENTA DO BRASIL

Micrurus sp., uma das diversas variedades de Cobra-Coral espalhadas pelo mundo, é a nossa mais peçonhenta cobra; apesar disso, é responsável por apenas 1% dos casos de picada de cobra no Brasil, por ser tímida e viver em áreas afastadas das ocupadas por humanos

ESPÉCIE MAIS PERIGOSA DO BRASIL

A Jararaca é a mais perigosa do Brasil, devido à sua abundância, agressividade e grande habilidade de camuflagem; cerca de 87% dos acidentes com cobras no nosso país é devido a elas; apesar disso, sua peçonha é relativamente fraca, e o índice de morte não passa de 0,25%; porém, se não tratado o envenenamento, danos sérios no organismo podem ocorrer


Artigo Relacionado:  Malária: o grande inimigo mundial


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1.  http://www.scientificamerican.com/article/snakebite-antivenom-development-is-stuck-in-the-19th-century-what-s-next/
  2. http://www.scielo.br/pdf/qn/v36n10/11.pdf
  3. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22393615
  4. http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736%2812%2960034-8/abstract
  5. http://web.archive.org/web/20150111055930/http://www.avru.org/?q=general/general_mostvenom.html
  6. http://www.msf.org.br/ 
  7. http://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.0030150
  8. https://jvat.biomedcentral.com/articles/10.1186/1678-9199-20-7
  9. https://jvat.biomedcentral.com/articles/10.1186/1678-9199-19-27
  10. http://journals.plos.org/plosntds/article?id=10.1371/journal.pntd.0002162
  11. http://ethnobiomed.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13002-016-0092-0
  12. http://www.sciencemag.org/news/2016/12/antivenom-made-nanoparticles-could-eventually-treat-bites-any-snake
  13. https://www.nature.com/articles/d41586-019-01557-0
  14. https://stm.sciencemag.org/content/12/542/eaay8314