Artigos Recentes

Por que ficamos arrepiados?

- Atualizado no dia 9 de junho de 2024 -

Compartilhe o artigo:


           É só o tempo esfriar e já estamos lá, tremendo de frio e com os pelos todos arrepiados. E não é só com o frio intenso que essa reação é disparada. Sempre que ficamos muito emocionados, ouvimos uma música que nos impacta, sentimos um toque diferente (prazeroso ou não) na pele, ou até mesmo quando estamos com medo, os pelos ficam a postos, eriçados. Essa mesma reação é observada em diversos outros animais mamíferos. Mas por que isso acontece?

- Continua após o anúncio -



       MECANISMO DE AÇÃO          
         
            O arrepio dos pelos, à primeira vista, é um vestígio evolutivo sem funcionalidade nos humanos caracterizado como um reflexo em resposta a intensos estímulos emocionais (!) como euforia ou excitamento sexual, ou como uma resposta fisiológica ao frio. Esses estímulos acionam atividade nervosa simpática que, por sua vez, deflagra a contração de um músculo chamado de músculo arrector pili (AMP) - também conhecido como músculo horripilador - associado a cada folículo capilar.  Essa contração força o pelo a ficar ereto, fenômeno conhecido como reflexo pilomotor (pilo-ereção) ou 'arrepio'. Os padrões de relevo formados na pele humana pelos músculos horripiladores contraídos é também popularmente chamado de "pele de galinha".

------------
(!) É importante ressaltar que enquanto o arrepio dos pelos é fortemente ligado a emoções positivas (e talvez neutras), é incerto se esse reflexo  pode ser também uma resposta ligada a emoções negativas, como tristeza e medo - apesar da crença comum de que o reflexo pilomotor ocorre frequentemente com a emoção de medo (Goosebumps - arrepio em inglês - é inclusive o título de uma popular série de livros de horror). Experiência de arrepio como resposta ao medo é reportada apenas de forma anedótica, em autoreportes ou em reportes retrospectivos, mas nunca experimentalmente demonstrada (Ref.8). No geral, o arrepio parece ser resultante sempre de uma resposta emocional intensa, embora a natureza específica das emoções envolvidas seja motivo de debate acadêmico. 
----------

          Em várias espécies de mamíferos esse reflexo ocorre também como uma resposta a uma ameaça ou como um sinal de alerta (agressão iminente), como notavelmente observado em gatos, cães e mesmo chimpanzés. Em termos de defesa contra predadores, é sugerido também que o arrepio fornece a impressão que o animal é maior do que suas reais dimensões corporais, o que pode desestimular o atacante. Robustos músculos horripiladores também podem servir como absorvedores de choque visando prevenir abrasão em alguns grupos de animais. Mas a função mais óbvia desse reflexo, e até pouco tempo atrás considerada a mais importante,  é a termorregulação.

          Quando os pelos em um animal com robusta pelagem ficam eretos, uma camada de ar fica presa próxima da superfície da pele. Como consequência, reduz-se a perda de calor do corpo do animal por convecção. E quanto mais densa e grossa a pelagem, melhor é a função de termorregulação do arrepio. Na nossa espécie (Homo sapiens), o arrepio é inútil no sentido de termorregulação, porque possuímos muito pouco pelo, além deste ser bem fino. Ficamos dependentes apenas da tremedeira mesmo (trememos o corpo quando estamos com frio porque a movimentação muscular gera calor no processo, ajudando a nos aquecer).

----------
> Interessante também apontar que as pessoas possuem uma inabilidade geral de detectar arrepios , assim como dificuldade de identificar sua ocorrência em múltiplas partes do corpo. Um estudo recente, conduzindo três experimentos com >600 participantes, encontrou que menos de 32% dos auto-reportes de arrepio coincidiam com arrepios observáveis, além de um viés em apontar o fenômeno ocorrendo no antebraço (Ref.9). O estudo também encontrou uma baixa correspondência entre auto-reportes de estar "emocionalmente envolvido" e piloereção observável. Esses achados sugerem que ou a piloereção não é tão ligada a emoções como comumente pensado, ou humanos podem não ser tão habilidosos em identificar suas próprias emoções como assumido. Como o papel de sinalização social e de termorregulação do arrepio foi perdido na linhagem evolutiva humana, pode ser que pressão seletiva deixou de atuar no sentido de conservar acurada percepção desse fenômeno.
------------


   PREVALÊNCIA

         O músculo AMP está presente, e reflexo pilomotor é possível, na maioria dos mamíferos, representando condições primitivas para o clado Mammalia, especialmente considerando a presença de estruturas homólogas desse músculo em répteis, aves e na maioria dos membros da maioria das ordens de mamíferos. Músculos AMPs muito fortes conferem uma insulação otimizada na maioria dos mamíferos terrestres de grande porte. Em répteis e aves, as estruturas homólogas causam a ereção de escamas e de penas. 

- Continua após o anúncio -


          
          A ausência do músculo AMP em mamíferos ocorre mais frequentemente associada a estilos de vida aéreo, aquático e fossorial, onde a camada de ar termo-protetora não pode ser mantida. Por exemplo, esse músculo foi perdido de forma independente nos mamíferos aquáticos sem pelos do clado Cetacea (baleias e golfinhos), nos ratos-toupeiras-pelados, nas lontras (Lutrinae), nas focas da família Otariidae, nos musaranhos (Soricidae). Também foi perdido completamente ou em grande parte nos morcegos (Chiroptera) e nos colugos (Dermoptera).




           Entre os primatas - incluindo humanos modernos (Homo sapiens) -, a maioria dos grupos possuem músculos horripiladores fracos espalhados pelo corpo e músculos horripiladores fortes na cauda, com exceção dos társios e de alguns lóris. Como muitos primatas habitam áreas tropicais, onde as variações de temperatura ao longo do dia não são grandes e onde as temperaturas médias ao longo do ano não caem tanto, a seleção natural provavelmente não favoreceu a manutenção de uma robusta manifestação do reflexo pilomotor, levando a prováveis degenerações parciais via acúmulo de mutações deletérias.

          Mas será que o reflexo pilomotor é apenas um vestígio evolutivo sem função na nossa espécie?


   REGENERAÇÃO FOLICULAR  

          Vários órgãos no corpo são feitos de três tipos de tecido (unidade de linhagem tripla): epitélio, mesênquima e nervo. Na pele, a inervação simpática junto com o músculo horripilador - de origem mesenquimal - e o folículo capilar - de origem epitelial - formam uma dessas unidades de linhagem tripla. O nervo simpático - parte do nosso sistema nervoso que controla a homeostase do corpo e nossas respostas a estímulos externos - inerva o músculo horripilador, este o qual é constituído por maços de células musculares lisas. 

            O músculo horripilador é anexado à região saliente do folículo capilar onde células-tronco de folículos capilares (HFSCs) - um tipo de célula-tronco epitelial crítico para a regeneração do folículo capilar assim como para a reparação de feridas - residem. Estímulos ambientais, como temperaturas mais frias, possuem um pronunciado efeito na unidade de linhagem tripla: impulsos elevados a partir dos nervos simáticos engatilham a contração nos maços do músculo horripilador - como já descrito -, forçando o pelo a ficar ereto.

           Porém, além da função termorregulatória, era até o momento incerto se essa unidade de linhagem tripla associado ao folículo capilar possuía outro notável propósito. O que se sabia - como também exposto anteriormente - é que essa configuração é altamente conservada ao longo dos mamíferos, incluindo humanos, onde o reflexo pilomotor perdeu sua utilidade de termorregulação ou mesmo de proteção contra predadores na nossa espécie. Isso fortemente sugere funcionalidades adicionais.

- Continua após o anúncio -



          Nesse sentido, em um estudo publicado no periódico Current Biology (Ref.6), cientistas da Universidade de Harvard - conduzindo experimentos em ratos - conseguiram encontrar a resposta para esse mistério. Usando técnicas de edição genética, ablação celular, perfil transcriptômico, escaneamento de alta-resolução, e microscopia eletrônica tridimensional (3D-EM), eles encontraram que o nervo simpático não apenas está associado com o músculo horripilador, como também forma uma conexão direta com as células-tronco do folículo capilar. Essas fibras nervosas mostraram se enrolar ao redor dessas células-tronco como uma fita.

          Em seguida, os pesquisadores encontraram que um baixo nível de atividade nervosa mantinha as células-tronco em um estado de equilíbrio para a regeneração da estrutura capilar, via ação conjunta de supressão dos reguladores Foxp1 e Fgf18. De fato, evidências de estudos prévios já tinham estabelecido que a perda de inervação simpática está associada com falhas no crescimento de pelos em vários organismos. Nessa linha, o novo estudo encontrou também que o músculo horripilador é o responsável direto por sustentar a conexão dos nervos com essas células-tronco, e, quando removido, o nervo simpático retraía e a conexão era perdida. Ou seja, esse músculo é um suporte estrutural necessário para ligar o nervo simpático ao folículo capilar. 

           E a regeneração deflagrada pela atividade nervosa simpática faz ainda mais sentido durante períodos prolongados de frio. Enquanto que estímulos esporádicos - um frio vez ou outra, ou outras sensações fisiológicas ou emocionais momentâneas ativando o arrepio dos pelos - fornecem o baixo nível de atividade nervosa para manter a homeostase e regeneração normal dos folículos capilares, períodos prolongados de frio - como o inverno - mantêm a atividade simpática contínua e elevada a longo prazo, permitindo robustas regenerações e acelerado crescimento capilar (troca de pelagem dos mamíferos para enfrentar a estação mais fria).           



          No sentido mais amplo, incluindo humanos, o músculo horripilador (AMP) - e sua consequente função de reflexo pilomotor - provavelmente foi conservado ao longo do percurso evolutivo dos mamíferos devido à sua função indispensável como uma ponte que atrai e mantém  inervações simpáticas na pele, o que por sua vez permite a integridade e estabilidade folicular. Tal relação já havia sido razoavelmente proposta em estudos prévios (Ref.3). Em mamíferos com pelagem protetora, a função do músculo horripilador é ainda mais importante ao permitir uma troca de pelagem em resposta às mudanças ambientais somando-se à função de termorregulação pilomotora.

          Fica inferido também que outros mamíferos que perderam o músculo horripilador provavelmente evoluíram outros meios para suportar a regeneração capilar ao invés da ponte músculo-nervo descrita. 

           O achado, além de solucionar o mistério evolucionário do arrepio dos pelos em humanos que vinha se arrastando desde Darwin, também fornece potencial caminho para novas vias terapêuticas visando o tratamento da calvície comum (alopécia androgênica) e de outras formas de perda ou desordens capilares.

- Continua após o anúncio -



   CONCLUSÃO

           O reflexo pilomotor - ou arrepio -, apesar de ter perdido sua função termorregulatória e de comunicação social nos humanos ao longo do processo evolutivo, ainda é importante para o crescimento capilar na nossa pele. Ou seja, não é um vestígio evolutivo sem função, algo que corrobora sua persistência em diversos clados de mamíferos, incluindo também estruturas homólogas nos répteis e aves. O frio no ambiente não apenas causa arrepio na nossa pele como também fomenta a regeneração capilar e crescimento saudável dos pelos e cabelos.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1357303917300695
  2. https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2017.00041/full
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4158628/
  4. https://repository.asu.edu/items/52749
  5. https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-981-10-7033-4_23
  6. Shwartz et al. (2020). Cell Types Promoting Goosebumps Form a Niche to Regulate Hair Follicle Stem Cells. Cell, Volume 182, Issue 3, Pages 578-593.e19. https://doi.org/10.1016/j.cell.2020.06.031
  7. https://www.karger.com/Article/Abstract/355007
  8. McPhetres & Zickfeld (2022). The physiological study of emotional piloerection: A systematic review and guide for future research. International Journal of Psychophysiology, Volume 179, Pages 6-20. https://doi.org/10.1016/j.ijpsycho.2022.06.010
  9. McPhetres et al. (2024). Individuals lack the ability to accurately detect emotional piloerection. Psychophysiology, e14605. https://doi.org/10.1111/psyp.14605