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Existem quantos neurônios e células gliais no cérebro humano?

Figura 1. O encéfalo é constituído por três estruturas básicas: cérebrocerebelo e tronco encefálico. O cérebro é dividido em duas metades (hemisférios esquerdo e direito) por uma profunda fissura, mas mantêm contato entre si na base da separação por uma estrutura chamada de corpo caloso. No contexto popular, todo o encéfalo é comumente chamado de cérebro.

          O encéfalo humano - popularmente generalizado como "cérebro" (Fig.1) - é constituído por dois tipos principais de células: neurônios e células gliais. Os neurônios são as células responsáveis pela comunicação no sistema nervoso, transmitindo informações através de impulsos elétricos e numerosos contatos sinápticos. Já as células gliais, também conhecidas como neuroglias ou glias, são células de suporte que desempenham diversas funções essenciais para o funcionamento adequado dos neurônios (Fig.2). Na média, o cérebro humano adulto possui aproximadamente 1,5 kg (1500 g) e dezenas de bilhões de neurônios e de células gliais. Mas, nesse último, ponto, qual é a quantidade média de neurônios no cérebro [encéfalo] humano? E qual a razão entre neurônios e glias?

Figura 2. Existem três tipos de células gliais no sistema nervoso central (SNC) maduro: astrócitos, células micróglias e oligodendrócitos. Os astrócitos estão envolvidos com múltiplas funções regulatórias, incluindo controle da sinalização do desenvolvimento vascular no SNC, manutenção da sinalização intercelular (ex.: controle de neurotransmissores e do microambiente químico) e suporte neurotrófico. As micróglias possuem função essencialmente imune, incluindo capacidade de fagocitose, e respondem a lesões e ameaças diversas (ex.: infecções microbianas) no SNC. Os oligodendrócitos estão envolvidos em mecanismos de mielinização central (deposição de mielina em axônios do SNC) e fornecem sustância metabólica para neurônios motores. Ref.2

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> O termo glia possui origem do Grego e significa "cola". A escolha desse termo reflete a crença no século XIX de que as células gliais eram responsáveis por manter os neurônios coesos, como se fossem uma cola. Mas não existe evidência de que essas células possuem tal função no sistema nervoso central, pelo menos não no sentido físico do termo. Ref.3

> Existe grande diversidade funcional, estrutural e de desenvolvimento entre neurônios e gliais ao longo de múltiplas escalas no sistema nervoso central. Ref.4

> Embora represente ~2% da massa corporal, é estimado que o cérebro humano consome ~20% de toda a energia diária do corpo. Ref.5

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Leitura complementar:


          Ao longo da história, o número estimado de neurônios no cérebro humano têm variado amplamente na literatura acadêmica, de 3 bilhões em 1895 até 1 trilhão em 1981, até ser cimentado em ~100 bilhões a partir da década de 90. De forma misteriosa, o número estimado de "100 bilhões" emergiu na literatura ao redor de 1991 e persistiu até 2009, sendo ainda citado em vários papers e livros acadêmicos. Porém, nenhuma referência científica é encontrada dando suporte primordial para esse número, sugerindo ausência de qualquer rigor ou metodologia científica (Ref.6). Além disso, e também de forma misteriosa, foi historicamente estabelecido que o número de células gliais é "10 vezes maior que o número de neurônios no cérebro" (Ref.6).

          Essas estimativas só foram desafiadas em 2009, por um estudo brasileiro conduzido por Herculano-Houzel et al. (Ref.7). No estudo, pesquisadores usaram um método chamado de fracionador isotrópico para contar o número de neurônios em múltiplas amostras cerebrais de quatro adultos do sexo masculino com idades de 50 a 71 anos que morreram sem problemas neurológicos ("cérebros saudáveis"). As análises resultaram em um número total médio de 86,06 bilhões de neurônios, com um desvio padrão de 8,12 bilhões. Desde então, a alegação de que "o cérebro humano possui cerca de 86 bilhões de neurônios" tem sido citada mais de 3 mil vezes na literatura científica (Ref.8).

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> Cerca de 19% de todos os neurônios estão localizados no córtex cerebral, apesar da massa cortical representar 82% da massa cerebral total. Já o cerebelo, contendo apenas ~10% da massa cerebral, contém ~80% do total de neurônios. Ref.7

> O cerebelo é tradicionalmente descrito como uma parte do sistema nervoso central responsável por regular movimentos, balanço e coordenação motora. Porém, estudos nas últimas décadas têm mostrado que o cerebelo é muito mais complexo e multifuncional. Além de estar envolvido com a aquisição de linguagens e em processos cognitivos, o cerebelo também atua de forma crítica na regulação, aprendizado e recapitulação de comportamentos e experiências sociais e emocionais. Ref.17-20

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           Importante, o estudo de 2009 encontrou que o número médio de células não-neuronais - incluindo principalmente glias - é de 84.6 ± 9.8 bilhões. Em outras palavras, a razão entre neurônios e células gliais é próxima de 1:1 e não de 10:1 como previamente assumido.

           Porém, existe ainda ceticismo relativo à conclusão generalista do estudo de 2009 (Ref.8). Primeiro, a amostragem era pequena (n = 4), tornando pouco robusta a análise estatística. Segundo, a variação entre os valores máximo e mínimo entre as amostras foi grande: ~78,8 bilhões e ~95,4 bilhões. Terceiro, e mais importante, um estudo subsequente de 2013 (Ref.9), analisando os cérebros de cinco idosas do sexo feminino  (71 a 84 anos de idade e sem problemas neurológicos) com o mesmo método do estudo de 2009, encontrou valores variando de ~62 bilhões até ~72 bilhões de neurônios. Embora a massa cerebral média no estudo de 2013 (~1,3 kg) tenha sido significativamente inferior à massa cerebral média no estudo de 2009 (~1,5 kg), não foi encontrada clara correlação entre massa cerebral e número total de células neuronais.

          Portanto, é possível concluir que não sabemos ainda ao certo o número total de neurônios em um típico cérebro humano - pelo menos não a nível populacional - e que esse número parece variar de forma significativa entre indivíduos e sexos. Já o número de células gliais parece ser próximo do número total de neurônios ou pelo menos não é muito superior como previamente alegado. 

          Talvez seja razoável alegar, com base nas evidências até o momento disponibilizadas, que o número total de neurônios no cérebro saudável de um humano adulto com idade avançada pode variar entre 62 bilhões e 96 bilhões de neurônios.


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           De qualquer forma, considerando que o número total de neurônios no cérebro humano é mais próximo de 80 bilhões do que de 100 bilhões, é válido mencionar que esse valor é esperado para o cérebro de um primata do nosso porte (Ref.10). Em outras palavras, não temos um número proporcionalmente muito maior de neurônios do que chimpanzés (~400 g de massa cerebral) e outros hominídeos ainda vivos como comumente pensado. Além disso, entre as diversas espécies de mamíferos, incluindo humanos, o córtex contém aproximadamente 20-25% de todos os neurônios cerebrais (Ref.11). Nossa elevada e distinta capacidade cognitiva parece estar mais relacionada à natureza das conexões entre os neurônios (ex.: complexidade dendrítica) do que ao número absoluto de neurônios em diferentes regiões do cérebro.

          Dado o número astronômico de conexões neuronais - na ordem de 1014 a 1015 (Ref.11) - mesmo as mudanças mais sutis na eficiência da transferência de informações entre os neurônios podem resultar em um grande impacto no "poder computacional" do cérebro. 

Leitura recomendada:


   Novos neurônios são formados no cérebro de humanos adultos?

          Ainda é debatido na literatura acadêmica se existe qualquer ou significativa formação de novos neurônios (neurogênese) em humanos adultos. Durante muito tempo persistiu a ideia de que a neurogênese cessa no cérebro de primatas adultos - incluindo humanos -, sendo restrita à infância: células-tronco se tornam progenitoras, dando emergência a neurônios imaturos que se desenvolvem em células neurais maduras para o resto da vida. 

          Porém, evidências experimentais nos últimos anos apontam que existe um processo limitado de neurogênese no hipocampo humano e de outros primatas adultos, a partir de neurônios progenitores. Nos humanos, essa neurogênese parece ocorrer a uma taxa de ~700 novos neurônios por dia (Ref.12). O hipocampo é um centro de aprendizado, regulação do humor e memória do cérebro. A neurogênese hipocampal de humanos adultos parece gradualmente diminuir com o avanço da idade e pode estar relacionada ao aprendizado e à criação de novas memórias (Ref.16).


Leitura recomendada:



REFERÊNCIAS

  1. https://www.ninds.nih.gov/health-information/public-education/brain-basics/brain-basics-know-your-brain
  2. Souza et al. (2016). Muito além do neurônio motor: o papel das células da glia na esclerose lateral amiotrófica. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, 74(10). https://doi.org/10.1590/0004-282X20160117
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK10869/
  4. Siletti et al. (2023). Transcriptomic diversity of cell types across the adult human brain. Science, Vol. 382, No. 6667. https://doi.org/10.1126/science.add7046
  5. Liu, Z. (2024). Physical mechanisms of human brain functions. Quantitative Biology, Volume 13, Issue 1, e70. https://doi.org/10.1002/qub2.70
  6. Bartheld et al. (2016). The search for true numbers of neurons and glial cells in the human brain: A review of 150 years of cell counting. The Journal of Comparative Neurology, Volume 524, Issue 18, Pages 3865-3895. https://doi.org/10.1002/cne.24040
  7. Herculano-Houzel, S. (2009). Equal numbers of neuronal and nonneuronal cells make the human brain an isometrically scaled-up primate brain. The Journal of Comparative Neurology, Volume 513, Issue 5, Pages 532-541. https://doi.org/10.1002/cne.21974
  8. Goriely, A. (2025). "Eighty-six billion and counting: do we know the number of neurons in the human brain?". Brain, Volume 148, Issue 3, March 2025, Pages 689–691, https://doi.org/10.1093/brain/awae390
  9. Andrade-Moraes et al. (2013). Cell number changes in Alzheimer’s disease relate to dementia, not to plaques and tangles. Brain, 136(12):3738-3752. https://doi.org/10.1093/brain/awt273
  10. Herculano-Houzel, S. (2012). The remarkable, yet not extraordinary, human brain as a scaled-up primate brain and its associated cost. PNAS. https://doi.org/10.1073/pnas.1201895109
  11. Goriounova et al. (2022). Evolution of cortical neurons supporting human cognition. Trends in Cognitive Sciences, Volume 26, Issue 11, P909-922. https://doi.org/10.1016/j.tics.2022.08.012
  12. Frisén et al. (2013). Dynamics of Hippocampal Neurogenesis in Adult Humans. Cell, Volume 153, Issue 6, P1219-1227. https://doi.org/10.1016/j.cell.2013.05.002
  13. Zhou et al. (2022). Molecular landscapes of human hippocampal immature neurons across lifespan. Nature 607, 527–533. https://doi.org/10.1038/s41586-022-04912-w
  14. Simard et al. (2024). Adult Hippocampal Neurogenesis in the Human Brain: Updates, Challenges, and Perspectives. The Neuroscientist, Volume 31, Issue 2. https://doi.org/10.1177/10738584241252581
  15. Dumitru et al. (2025). Identification of proliferating neural progenitors in the adult human hippocampus. Science, Vol. 389, No. 6755. https://doi.org/10.1126/science.adu9575
  16. Elliott et al. (2025). Hippocampal neurogenesis in adult primates: a systematic review. Molecular Psychiatry 30, 1195–1206. https://doi.org/10.1038/s41380-024-02815-y
  17. van der Heijden et al. (2023). Glutamatergic cerebellar neurons differentially contribute to the acquisition of motor and social behaviors. Nature Communications 14, 2771. https://doi.org/10.1038/s41467-023-38475-9
  18. Busch & Hansel (2023). Climbing fiber multi-innervation of mouse Purkinje dendrites with arborization common to human. Science, Vol. 381, No. 6656. https://doi.org/10.1126/science.adi1024
  19. Van Overwalle, F. (2024). Social and emotional learning in the cerebellum. Nature Reviews Neuroscience 25, 776–791. https://doi.org/10.1038/s41583-024-00871-5
  20. Sendhilnathan et al. (2024). A cerebro-cerebellar network for learning visuomotor associations. Nature Communications 15, 2519. https://doi.org/10.1038/s41467-024-46281-0