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Por que a equidna possui quatro cabeças [glandes] no pênis?


- Atualizado no dia 19 de janeiro de 2023 -
 
           A equidna é um dos mais icônicos animais Australianos e é notável por trazer uma estranha característica anatômica: os machos possuem um pênis com quatro cabeças! Cientistas da Universidade de Melbourne e da Universidade de Queensland, em um estudo publicado em 2022 no periódico Sexual Development (Ref.1), finalmente revelaram o segredo funcional por trás do estranho pênis, mostrando inclusive que apenas duas das glandes rosadas se tornam funcionais durante a ereção - alternando entre si essa funcionalidade após cada ereção - de modo a facilitar uma ejaculação unilateral. Os achados do estudo corroboram observações prévias e confirmam homologias na estrutura peniana em relação a certos grupos de répteis.

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   EQUIDNAS E MONOTREMADOS

          Os monotremos (mamíferos que botam ovos) da Australásia representam uma das três principais linhagens de mamíferos (ordem Mammalia). Esses animais são os mais distantes mamíferos, em termos evolucionários, relativo aos humanos, com uma divergência estimada dos mamíferos terianos (marsupiais e placentários) de entre 160 e 250 milhões de anos. Apesar de possuírem grandes glândulas mamárias, os monotremos não possuem mamilos, possuem um único orifício externo (cloaca) para as funções reprodutivas e excretórias, e o trato sexual feminino é muito similar ao sistema reptiliano - provavelmente refletindo em grande extensão o ancestral comum entre répteis e mamíferos. Além disso, os monotremos são mamíferos únicos no sentido de possuírem 10 cromossomos sexuais (5 pares de X nas fêmeas, e 5X e 5Y nos machos).

          De fato, os monotremos oferecem um modelo ideal de transição evolutiva da oviparidade para a viviparidade nos mamíferos (desenvolvimento interno do embrião em uma placenta). Esses animais não são tão dependentes de proteínas dos ovos como aves e répteis ovíparos devido à aquisição nutricional de secreções uterinas e a subsequente dependência dos filhotes à lactação. Enquanto répteis possuem três cópias funcionais da principal proteína do ovo vitelogenina (gene VTG), nos monotremos apenas uma cópia funcional é encontrada (gene VTG2) e uma sequência parcial para o gene VTG1 (Ref.3).

          A linhagem dos monotremos engloba duas famílias não-extintas: a semi-aquática Ornithorhynchidae (ornitorrincos) e a terrestre Tachyglossidae (equidna). Atualmente, uma única espécie de ornitorrinco (Ornithorhynchus anatinus) possui uma restrita distribuição no Leste Australiano, enquanto que quatro espécies de equidna (Tachyglossus aculeatus e três do gênero Zaglossus) estão presentes na Austrália e na Nova Guineia. Apesar de compartilharem a mesma linhagem evolutiva, ornitorrincos e equidnas possuem radicais diferenças em termos de neurofisiologia, dieta e nicho ecológico. No geral, equidnas se alimentam principalmente de formigas e de cupins, mas podem incluir outros invertebrados na dieta (ex.: larvas de insetos diversos) em significativa extensão (Ref.4-5), os quais são capturados com uma longa língua (~15 cm de comprimento).   

 

 
          As fortes patas e garras das equidnas são usadas para cavar e abrir estruturas, visando busca de alimento (ex.: montes de cupins) e esconderijo contra predadores. Esses animais são também ótimos nadadores e escaladores de árvores. Os vários espinhos na parte dorsal do corpo - cada um com cerca de 5 cm de comprimento nos adultos - são usados como camuflagem entre arbustos e defesa contra predadores (quando se enrolam como bolas). Podem viver até 58 anos em cativeiro, alcançando um comprimento corporal de 35 cm a 76 cm e uma massa de 2,5 kg até 10 kg.  

          Animais hibernantes, as equidnas não tendem a ser sexualmente ativas todos os anos, e as fêmeas tipicamente participam de acasalamento a cada 2 anos (Ref.5). Durante a temporada de acasalamento, machos reprodutivos podem ser prontamente identificados pela presença de um grande protuberância peniana posterior à cloaca e o pênis pode ser facilmente evertido. Aliás, nesse sentido, fora de temporadas de acasalamento, é uma tarefa difícil diferenciar machos e fêmeas, por causa da ausência externa de óbvios dimorfismos sexuais. Após a maturidade sexual, machos expressam um notável esporão próximo das patas traseiras, enquanto que essa estrutura é ausente ou pouco desenvolvida nas fêmeas (Ref.7-8). Para os filhotes, outros métodos mais sofisticados e custosos de identificação sexual incluem ultrassonografia, análise hormonal, análise genética invasiva ou não-invasiva (Ref.9), e extrusão sob anestesia do pênis.
 

          Outro aspecto interessante das equidnas é a questão da temperatura corporal. Enquanto a baixa e variável temperatura central no corpo desses animais é considerada um traço primitivo associado aos répteis, outras características termorregulatórias como taxa metabólica, condutância térmica e capacidade de perda de calor evaporativa são consideradas tipicamente de mamíferos terianos. Evidências laboratoriais sugerem que as equidnas possuem baixa tolerância térmica, com uma temperatura corporal de 38°C considerada letal. Porém, esses animais vivem em ambientes que facilmente exibem temperatura de até 40°C. Um estudo recentemente publicado no periódico no periódico Biology Letters (Ref.11), analisando a espécie T. aculeatus, revelou que esses animais possuem curiosos e eficientes métodos de dissipação de calor corporal. A ponta úmida do bico, bastante vascularizada, explode 'bolhas de meleca', causando grande dissipação de calor e mantendo essa região com uma temperatura 10°C menor do que outras partes do corpo - ajudando no resfriamento corporal. Além disso, a superfície ventral e a parte interna das pernas pouco insuladas agem como janelas térmicas posturais, enquanto os espinhos do corpo (constituídos de pelos endurecidos e ocos) fornecem um meio de dissipação térmica quando estão eretos (e conservam calor quando estão abaixados).


A equidna da espécie T. aculeatus possuem uma temperatura basal de ~29,5°C, variando entre 23 e 35°C quando ativas em um ambiente com temperatura variando entre 15 e 33°C. Quando a temperatura ambiente está muito alta, a equidna estoura bolhas de muco no nariz, aumentando a umidade na região e a taxa de evaporação de água, resfriando significativamente essa área e ajudando a dissipar o calor corporal. Os pelos espinhosos também ajudam na termorregulação através de ação pilomotora (insulamento flexível).

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   PÊNIS DE QUATRO CABEÇAS


          Apesar das equidnas e ornitorrincos machos compartilharem várias características sexuais com os machos de outros mamíferos, existem aspectos morfológicos e fisiológicos únicos nesses animais. Por exemplo, o pênis é puramente usado para a função reprodutiva, sem transporte de urina na uretra; o ejaculado contêm maços de espermatozoides que nadam cooperativamente, e os testículos permanecem retidos dentro da cavidade abdominal (apesar de outros mamíferos compartilharem esse traço). E, no caso particular das equidnas, o pênis possui quatro cabeças!

          A partir de estímulo e subsequente ereção, as quatro cabeças/glandes rosadas do pênis da equidna, sob forças de ingurgitação, saem da sua localização retraída acima da cloaca e atravessam o lúmen dessa abertura através de um esfíncter antes de finalmente saírem para fora. No interior da estrutura peniana desses animais, a uretra é quadrifurcada, gerando um orifício para a saída do esperma em cada cabeça. Porém, esses quatro orifícios não são usados todos de uma vez durante o coito. Estranhamente, já foi mostrado que a cada ejaculação apenas duas cabeças (par unilateral, no lado direito ou esquerdo) são ativadas - e as outras duas retraídas -, de forma aparentemente alternada entre sucessivas copulações (Ref.10).
 


          No vídeo abaixo (registrado em 2005), a ereção e ejaculação de uma equidna macho da espécie Tachyglossus aculeatus é demonstrada, através de um raro caso de alta afinidade de um espécime com humanos.

           

          E ao contrário dos mamíferos terianos, a ureteres nos monotremos não esvazia seu conteúdo diretamente na bexiga. Ao invés disso, esses canais entram no sino urogenital na base da bexiga. A extensiva musculatura cercando a bexiga controla o movimento no sentido de permitir a entrada de urina proveniente dos rins a partir do sino urogenital, e é, a partir também deste que a urina sai da bexiga para a cloaca. Já os canais deferentes, partindo dos testículos, leva esperma também para o sino urogenital, mas em uma posição mais afastada dos ureteres; o sino urogenital é, então, conectado à uretra peniana por um pequeno orifício na base do pênis.

          No entanto, é ainda desconhecido como esperma é direcionado durante a copulação para dentro da uretra peniana ao invés de seguir o mesmo caminho da urina diretamente para a cloaca. Três mecanismos têm sido propostos:

- Ação combinada do músculo peniano retrator com o esfíncter cloacal;

- Aumento do volume peniano durante a ereção bloqueando a entrada cloacal e forçando o esperma para a uretra peniana;

- Torção do canal distal urogenital para a abertura na uretra peniana quando o pênis é forçado para fora, o que pode prevenir o esperma de entrar na cloaca.

          A aparente alternação unilateral da ejaculação em 2 das 4 aberturas uretrais, e o uso exclusivo do pênis na equidna para o transporte de esperma, têm sido comparados ao hemipênis encontrado nos répteis escamados. Esses répteis possuem estruturas penianas bifurcadas, exclusivas para a reprodução, e apenas um canal é usado durante o coito a cada copulação. Porém, o mecanismo de transporte do esperma para a uretra peniana nos escamados é distinto (via sulco espermático), e, nesse sentido, é incerto o grau de real semelhança entre o modelo de ejaculação entre esses dois grupos de animais.

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   ESTUDO AUSTRALIANO

          No estudo conduzido por cientistas Australianos e publicado na Sexual Development (Ref.1), pesquisadores realizaram uma detalhada descrição morfológica e anatômica do trato reprodutivo de 6 equidnas adultas do sexo masculino eutanasiadas por causa de sérios acidentes (após serem atendidas no Hospital da Vida Selvagem de Curumbin). Nenhum animal foi deliberadamente morto para o estudo.

          Entre os achados mais relevantes, os pesquisadores encontraram que todas as bifurcações dos dutos dentro do pênis adulto da equidna são restritos à quarta parte distal da estrutura peniana, refutando a alegada homologia com a estrutura peniana de répteis escamados. Com base nessa e outras observações anatômicas, os pesquisadores concluíram que o pênis da equidna possui muito mais similaridade com o falo de crocodilianos e de tartarugas. Muitas espécies de tartarugas possuem pênis com sulcos bifurcando em múltiplas glandes e de forma similar àquela observada nos monotremos. Aliás, tartarugas do gênero Trionyx possuem 5 glandes no pênis, superando a equidna.

          Nesse sentido, os resultados do estudos fornecem evidência para uma ancestralidade comum relativa à origem da estrutura peniana entre os amniotas (grupo que engloba boa parte dos vertebrados tetrápodes, incluindo todos os répteis e mamíferos).

           Os pesquisadores também encontraram que o corpo esponjoso da estrutura peniana da equidna começa como dois separados bulbos, os quais nunca se unem e permanecem separados por um septo colagenoso. Além disso, a principal artéria peniana na equidna sofre bifurcação após a terminação do músculo elevador, passando dorso-lateralmente ao centro em cada lado do pênis e seguindo o caminho das uretras. Essas duas observações fornecem um mecanismo para a ejaculação unilateral, onde a cada ereção apenas uma artéria peniana bifurcada supre sangue em cada lado do corpo esponjoso, inchando apenas duas glandes por vez e, consequentemente, permitindo a abertura de apenas duas uretras.

          Por fim, dos três mecanismos propostos para explicar o direcionamento exclusivo do sêmen até a uretra e não para a cloaca, os pesquisadores concluíram que o aumento de volume do pênis durante a ereção é o mais provável.

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   CONCLUSÃO

          Monotremos são mamíferos únicos, em especial por serem os únicos no clado Mammalia que botam ovos. Muitas das estranhas características anatômicas, morfológicas e fisiológicas desses animais emergem de uma mistura de fenótipos reptilianos com aqueles bem estabelecidos nos mamíferos terianos. Nesse mesmo caminho, descrição mais detalhada do pênis nas equidnas fornece evidência de que modificação de um programa ancestral reptiliano do desenvolvimento urogenital parece ter gerado as curiosas estruturas morfológicas encontradas na genitália externa dos mamíferos monotremados.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Fenelon et al. (2021). The Unique Penile Morphology of the Short-Beaked Echidna, Tachyglossus aculeatus. Sexual Development, 15:262–271. https://doi.org/10.1159/000515145
  2. Grützner et al. (2008). Reproductive Biology in Egg-Laying Mammals. Sexual Development, 2:115–127.
  3. Zhou et al. (2021). Platypus and echidna genomes reveal mammalian biology and evolution. Nature 592, 756–762. https://doi.org/10.1038/s41586-020-03039-0
  4. Sprent & Nicol (2016). Diet of the short-beaked echidna (Tachyglossus aculeatus) in the Tasmanian Southern Midlands. Australian Mammalogy, 38(2), 188-194. https://doi.org/10.1071/AM15023
  5. Sprent, Jennifer Anne (2012). Diet, spatial ecology and energetics of echidnas: the significance of habitat and seasonal variation. BSc (Hons), University of Tasmania; Tese de dissertação (PhD).
  6. https://animals.sandiegozoo.org/animals/echidna
  7. Nicolson, Vere (2006). Identifying the sex of Short-beaked Echidnas. Australian Veterinary Journal, Volume 84:63-65.
  8. Perry et al. (2019). Non-invasive genetic sexing technique for analysis of short-beaked echidna (Tachyglossus aculeatus) populations. Reproduction, Fertility and Development, 31(7), 1289-1295. https://doi.org/10.1071/RD18142 
  9. Nicol et al. (2018). Spurs, sexual dimorphism and reproductive maturity in Tasmanian echidnas (Tachyglossus aculeatus setosus). Australian Mammalogy 41(2), 161-169. https://doi.org/10.1071/AM18005
  10. Johnston et al. (2007). One-Sided Ejaculation of Echidna Sperm Bundles. The American Naturalist, Volume 170, No 6. https://doi.org/10.1086/522847 
  11. Cooper & Withers (2023). Postural, pilo-erective and evaporative thermal windows of the short-beaked echidna (Tachyglossus aculeatus). Biology Letters, Volume 19, Issue 1. https://doi.org/10.1098/rsbl.2022.0495