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Existem aranhas herbívoras?

Figura 1. Fêmea adulta da aranha vegetariana Bagheera kiplingi consumindo o corpo beltiano [seta] de uma acácia.

          Quando falamos em aranhas, a primeira coisa que vem à cabeça das pessoas é a imagem de um voraz predador de oito pernas usando teias ou as temíveis presas de peçonha para capturar pequenos animais em um dia de azar. E, de fato, aranhas são geralmente consideradas animais carnívoros e com uma dieta exclusivamente carnívora. Porém, existe um acúmulo cada vez maior de evidências científicas de que várias espécies desses aracnídeos suplementam a dieta com produtos derivados de plantas, e existem até aranhas consideradas vegetarianas!

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          Talvez o exemplo mais notável é a aranha-saltadora - ou papa-moscas (família Salticidae) - da espécie Bagheera kiplingi, a qual se alimenta quase que exclusivamente de estruturas muito nutritivas [corpos beltianos] nas pontas de folhas pertencentes a acácias do gênero Vachellia. Alimentando-se primariamente e deliberadamente de plantas, essa aranha vegetariana foge totalmente do estereótipo "aracnídeo predador" e é essencialmente herbívora. Especificamente, 91% da dieta de membros da espécie B. kiplingi na região sudeste do México é constituída de corpos beltianos das acácias, suplementada ocasionalmente com néctar extrafloral. Corpo beltiano é uma estrutura pontiaguda removível sobre as pínulas de algumas espécies de acácias, rico em lipídios, açúcares e proteínas e associado à relação simbiótica com formigas do gênero Pseudomyrmex (Fig.3).

Figura 2. (A) Aranha da espécie Bagheera kiplingi com um corpo beltiano no aparelho bucal. (B) Dieta de duas populações distintas dessa espécie no México e na Costa Rica. Ref.1


Figura 3. (ABagheera kiplingi fêmea consumindo um corpo beltiano das folhas da acácia Vachellia collinsii em Akumal, México. (B) Formiga Pseudomyrmex sp. carregando um corpo beltiano da espécie Vachellia hindsii próximo de Puerto Escondido, estado de Oaxaca, México. Formigas Pseudomyrmex sp. patrulham acácias Vachellia sp., defendendo essas plantas de animais herbívoros e plantas competidoras e coletando corpos beltianos e néctar extrafloral como recompensa. Aranhas B. kiplingi aprenderam [evoluíram] a evitá-las. Ref.2-4

          São ainda incertos os fatores que levaram à transição carnívoro → herbívoro na linhagem evolutiva da aranha B. kiplingi, mas disponibilidade de corpos beltianos ao longo de todo ano nas acácias junto à defesa contra potenciais predadores proporcionada pelas formigas simbiontes podem ser benefícios compensatórios. Nesse último ponto, é preciso lembrar que enquanto os corpos beltianos são ricos em nutrientes diversos, cerca de 80% dessas estruturas são constituídas de fibras. Isso sugere que essas aranhas também evoluíram mecanismos no aparelho digestivo para otimizar o processamento desse tipo de alimento. E além disso, realçar que essa espécie complementa a dieta com itens de origem animal (ex.: larvas e ovos de formigas), como mostrado no vídeo abaixo.

          

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> Salticidae é a maior família de aranhas (>5 mil espécies) e membros desse grupo diverso empregam uma ampla variaedade de estratégias para a obtenção de alimentos. Porém, hábito alimentar herbívoro é um traço muito raro e geralmente apenas suplementar à dieta predominantemente carnívora.

> O gênero Bagheera engloba duas espécies descritas: B. kiplingi e B. prosper. É incerta a dieta predominante da espécie B. prosper, mas aparentemente seu habitat é dominando por Acacia sp. e outros arbustos de deserto, sugerindo alimentação similar entre os dois táxons. Ref.5

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          Mas a espécie B. kiplingi não é a única aranha que desvia de uma dieta estritamente carnívora. Aranhas de pelo menos 10 famílias ocasionalmente se alimentam de produtos vegetais (fitofagia), com aranhas papa-moscas sendo o grupo dominante engajado nesse tipo de comportamento alimentar (~60% de todos os incidentes reportados) - envolvendo especialmente o consumo de néctar floral, néctar extrafloral (!), seiva e outras secreções fluidas nutritivas (Fig.4). Produtos vegetais sólidos, como pólen e corpos beltianos, são também consumidos por certos táxons de aranhas, porém representando uma escolha alimentar menos comum nesse contexto (Fig.5-6). Existe também reporte científico de aranhas se alimentando de seiva fermentada em florestas decíduas no Japão (Ref.6). Fitofagia em aranhas é mais comumente observada em faixas latitudinais mais quentes (40°N até 40°S) do planeta, particularmente em áreas tropicais e subtropicais onde muitas plantas secretam grande quantidade de néctar.

Figura 4. Aranhas papa-moscas se alimentando de fluidos vegetais. (A-B) Sequência de fotos mostrando um macho da espécie Pelegrina galathea se alimentando de uma gota de néctar extrafloral. (C) Fêmea de P. galathea se alimentando de seiva visível sobre a superfície da folha e aparentemente mordendo a folha para liberar mais seiva. (D) Macho da espécie Hentzia mitrata se alimentando de seiva e aparentemente mordendo a folha para liberar mais seiva. (E-F) Sequência de fotos mostrando uma fêmea da espécie Maevia inclemens se alimentando em um nectário extrafloral. Ref.3


Figura 5. Aranhas da família Thomisidae se alimentando de pólen em flores da família Asteraceae. Em (A), fêmea Thomisus sp. na Espanha; em (B), fêmea Thomisus sp. na Turquia. Ref.3

 
Figura 6. Aranha do gênero Cubiona se alimentando de pólen produzido pela orquídea da espécie Neottianthe cucullata. Em (a), a aranha entra profundamente na flor. Em (b-c), podemos ver uma massa coesa de grãos de pólen (polínia) anexado no aparelho bucal da aranha (seta branca). É incerto se essas e outras aranhas consumidoras de pólen exercem algum papel significativo de polinização nessas plantas. Ref.7

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(!) Nectários extraflorais são estruturas glandulares secretoras de néctar [secreção adocicada nutritiva], que não possuem relação direta com a polinização e que podem ser encontradas em diferentes partes das plantas, como nervuras ou pecíolos das folhas, e nas bases das flores e frutos. Presentes em vários táxons de plantas, essas glândulas podem atrair diferentes grupos de animais que utilizam o néctar extrafloral como fonte de alimento. Ref.8

> Globalmente, mais de 60 espécies de aranhas representando 10 famílias têm sido observadas se alimentando de produtos vegetais derivados de >20 famílias de plantas. Aranhas cursórias incluindo as famílias Anyphaenidae, Clubionidae, Eutichuridae, Salticidae, Thomisidae e Trachelidae dominam entre aquelas com hábitos fitofágicos (>80% dos incidentes reportados). Ref.9-10

> Alimentação fitofágica também parece ser importante como complemento nutricional entre aranhas imitadoras de formigas. Para mais informações: Por que tantas aranhas imitam formigas?

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          Mesmo aranhas construtoras de teia parecem também exibir notável hábito fitofágico. Por exemplo, aranhas da família Araneidae desmontam e comem suas teias regularmente, permitindo reciclagem das proteínas de seda e também o consumo de esporos de fungos e pólen aéreos que ficam aderidos nas teias. Análises laboratoriais das espécies Aculepeira ceropegia e Araneus diadematus apontam que 25% da dieta desses aracnídeos é constituída de pólen, com o restante sendo constituído de presas capturadas nas teias - caracterizando-as como animais onívoros (Ref.11). As partículas de pólen de grandes dimensões são ativamente digeridas extra-oralmente por enzimas dessas aranhas.  

           Existe inclusive evidência de competição ativa entre formigas e aranhas por néctar extraflorais (Ref.12). A colorida aranha papa-mosca da espécie Orsima icheumon parece proteger nectários extraflorais através de barreiras feitas com teias para inibir a aproximação de formigas (Fig.7). Cada aranha O. icheumon patrulha a superfície de uma única folha, repetidamente se alimentando de alguns nectários, e ativamente afugentando formigas de tamanho corporal menor ou similar das folhas - mas se afastando e se escondendo sob a folha quando formigas maiores aparecem, e retornando à patrulha quando esses insetos terminam de se alimentar dos nectários. Esse complexo conjunto de comportamentos sugere que néctar é uma importante fonte de nutrição para essa espécie, complementando a caça de pequenos artrópodes. 

Figura 7. Papa-mosca macho da espécie Orsima ichneumonRef.12


Figura 8. Em (a), Ilustração [baseada em observação de campo] mostrando uma fêmea de Orsima icheumon se alimentando de néctar extrafloral, então se movendo ao longo do nectário, balançando seu abdômen de um lado para o outro. Em (b), uma faixa de teia [seda] nos limites de um nectário. Ref.12 

          Além de secreções vegetais, pólen e corpos beltianos, é reportado que aranhas podem se alimentar oportunisticamente de restos de frutos (ex.: pedaços de banana, mamão, melancia e polpa de laranja) e apêndices de sementes (Fig.9-10). E, como já mencionado, consumo de fungos [esporos] também não é incomum entre aranhas. 

 

Figura 9. (A) Aranha da espécie Alpaida leucogramma (Araneidae) se alimentando de um pedaço de mamão (Caricaceae). (B) Aranha Philodromus sp. (Philodromidae) se alimentando da polpa de mamão. (C-D) Aranhas Cheiracanthium sp. (Cheiracanthiida) se alimentando de (C) uma fatia de laranja (Rutaceae) e de (D) um pedaço de fruta da planta Chrysobalanus icaco (Chrysobalanaceae). Ref.13

 

Figura 10. Aranhas Parasteatoda sp. (Theridiidae) consumindo o elaiossoma [estrutura de revestimento rica em lipídios e proteínas] de sementes: (CCostus dubius (Costaceae) e (DHepatica nobilis (Ranunculaceae). Ref.13

          Enzimas digestivas, as quais são produzidas no intestino e liberadas pela cavidade oral das aranhas, são críticas para a alimentação fitofágica nesses aracnídeos. No geral, aranhas se alimentam de fluidos e ingerem partículas alimentares (até ~1 μm) exclusivamente como uma sopa semi-líquida. Nesse sentido, secreções fluidas de plantas (néctar, seiva, melado, etc.) são ingeridas sem dificuldade pelas aranhas. A sacarose presente nessas secreções provavelmente é quebrada em monossacarídeos (glicose e frutose) pelas enzimas sucrase e α-glicosidases presentes nos sucos digestivos desses animais. 

          Já os recursos vegetais sólidos (pólen, corpos beltianos, frutos, etc.) precisam ser transformados em líquidos antes de serem ingeridos. As aranhas são equipadas com todas as enzimas necessárias para digerir o material sólido de plantas - incluindo proteases específicas -, com a exceção da enzima exinase - necessária para quebrar a exina, uma camada protetora de polissacarídeo que cobre os grãos de pólen. É ainda incerto como esses aracnídeos lidam com a exina, mas tem sido proposto um processamento mecânico dos grãos de pólen pelo aparelho bucal das aranhas e mistura do processado com sucos digestivos, permitindo a produção de uma "sopa" de fácil ingestão (Ref.3).

          A evolução de fitofagia em aranhas pode ter acompanhado naturalmente a dieta carnívora desses animais. Por exemplo, insetos diversos capturados e consumidos por aranhas são esperados de ter no aparelho digestivo recursos vegetais previamente ingeridos, como lagartas cheias de folhas mastigadas e moscas e mosquitos cheios de seiva (Fig.11). Para aproveitar ao máximo os nutrientes presentes nas presas capturadas, aranhas podem ter evoluído ferramentas e enzimas necessárias para a digestão de material vegetal, permitindo a exploração direta de recursos nutritivos em plantas.

 

Figura 11. Aranha papa-mosca da espécie Phidippus audax consumindo uma lagarta. Ref.3

          E assim como em outros artrópodes predadores, a habilidade das aranhas de derivar nutrientes de plantas pode garantir maior chance de sobrevivência durante períodos de escassez de presas no ambiente.

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Importante: Até o momento, não conhecemos ou não é comprovado nenhuma espécie de aranha que consegue sobreviver com uma dieta exclusivamente herbívora. Mesmo a espécie Bagheera kiplingi - a única descrita com alimentação fitofágica predominante - morre após uma ou várias semanas se mantida estritamente sob uma dieta "vegana". Ref.13

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REFERÊNCIAS

  1. Meehan et al. (2009). Herbivory in a spider through exploitation of an ant–plant mutualism. Current Biology, Volume 19, Issue 19, PR892-R893. https://doi.org/10.1016/j.cub.2009.08.049
  2. Chomicki et al. (2015). Macroevolutionary assembly of ant/plant symbioses: Pseudomyrmex ants and their ant-housing plants in the Neotropics. Proceedings B, 282(1819):20152200. https://doi.org/10.1098/rspb.2015.2200
  3. Nyffeler, Martin (2016). Phytophagy in jumping spiders: The vegetarian side of a group of insectivorous predators. Peckhamia 137 (1): 1-17. http://zenodo.org/record/7173243
  4. Ward & Branstetter (2017). The acacia ants revisited: convergent evolution and biogeographic context in an iconic ant/plant mutualism. Proceedings B, 284: 20162569. http://dx.doi.org/10.1098/rspb.2016.2569
  5. Ruiz & Edwards (2013). Revision of Bagheera(Araneae: Salticidae: Dendryphantinae). Journal of Arachnology, 41(1), 18–24. https://doi.org/10.1636/K12-67.1
  6. Suzuki & Makoto (2021). "Field observations on consumption of fermented tree sap by spiders in deciduous forests in Japan," The Journal of Arachnology 49(2), 253-256. https://doi.org/10.1636/JoA-S-20-056
  7. Suetsugu et al. (2013). Clubionaspider (Araneae: Clubionidae) visiting flowers of nectariferous orchidNeottianthe cucullata. Entomological Science, 17(2), 262–264. https://doi.org/10.1111/ens.12047
  8. https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/13423
  9. Sanders, D. (2013). Herbivory in Spiders. In: Nentwig, W. (eds) Spider Ecophysiology. Springer, Berlin, Heidelberg. https://doi.org/10.1007/978-3-642-33989-9_28
  10. Nyffeler et al. (2016). Plant-eating by spiders. The Journal of Arachnology, Vol. 44, No. 1, pp. 15-27. https://www.jstor.org/stable/24717357 
  11. Eggs & Sanders (2013) Herbivory in Spiders: The Importance of Pollen for Orb-Weavers. PLoS ONE 8(11): e82637. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0082637
  12. Painting et al. (2017). Nectary feeding and guarding behavior by a tropical jumping spider. Frontiers in Ecology and the Environment, Volume 15, Issue 8, Pages 469-470. https://doi.org/10.1002/fee.1538
  13. Nyffeler et al. (2023). Fungus and fruit consumption by harvestmen and spiders (Opiliones, Araneae): the vegetarian side of two predominantly predaceous arachnid groups. The Journal of Arachnology, 51(1):1-18. https://doi.org/10.1636/JoA-S-22-015