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Guerra foi o promotor primário de complexidade das sociedades humanas, conclui estudo

           Acadêmicos geralmente concordam que a agricultura representou um dos principais fatores - se não o maior - que fomentou a ascensão de complexas sociedades humanas, ao permitir populações maiores, coesas e mais sedentárias, e promover divisões no trabalho. Outro fator explorado na literatura acadêmica é a assim chamada Hipótese dos Grandes Deuses - onde entidades sobrenaturais e os sistemas moralistas e punitivos associados teriam permitido a coesão harmoniosa de grandes sociedades (1). Agora, em um estudo publicado no periódico Science Advances (Ref.1), pesquisadores trouxeram forte evidência suportando a controversa hipótese de que conflitos externos armados (guerras) e as inovações militares associadas representam o mais importante fator que tornou as sociedades humanas cada vez mais complexas. 

(1) Leitura recomendadaDeuses moralistas foram cruciais para a emergência das grandes civilizações humanas?

          "A maioria dos arqueólogos são contra a teoria da guerra", afirmou o Dr. Peter Turchin, um antropólogo evolucionário na Universidade de Connecticut, EUA, e o novo autor principal do estudo, em entrevista para a Science (Ref.2). "Ninguém gosta dessa repugnante ideia porque, obviamente, guerra é uma coisa horrível, e nós não gostamos de pensar que esse tipo de evento possa ter quaisquer efeitos positivos."


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          Durante o Holoceno - aproximadamente os últimos 10 mil anos - a escala e a complexidade das sociedades humanas se transformaram dramaticamente, um processo caracterizado por fatores multidimensionais. A escala social na qual os humanos interagem e cooperam aumentou por 6 ordens de magnitude, de sociedades constituídas de centenas (ou poucos milhares) de indivíduos até sociedades constituídas de centenas de milhões e até mesmo bilhões. Uma forma particular de organização política, o Estado, emergiu em meados do Holoceno, eventualmente se tornando a forma dominante de organização social ao redor do mundo. Outras dimensões de mudança incluem não apenas crescentes economias produtivas e disseminada adoção da escrita e da alfabetização mas também profundas desigualdades socioeconômicas e entrincheiradas classes hierárquicas. 

          Existem várias propostas teóricas que tentam explicar esse notável processo. Nesse contexto, a agricultura é tipicamente considerada uma condição essencial para a evolução de complexas sociedades, implicitamente e/ou explicitamente endossada pela maior parte dos acadêmicos. A produção de alimento em larga escala seria não apenas necessária mas também uma causa suficiente. A ampla adoção da agricultura está associada a um aumento da sedentarização (2), armazenamento do excesso de alimentos (ex.: grãos), e explosão da população humana. O excesso de produção alimentar suportou a divisão do trabalho em unidades cada vez mais especializadas. Isso, por sua vez, permitiu a emergência de inventores, artesãos, ferreiros e outros trabalhadores especializados e criativos, dedicados a esse tipo de trabalho por tempo integral, fomentando o crescente acúmulo de tecnologia. Essa economia produtiva também abriu as portas para o surgimento de governantes e elites, burocratas, oficiais militares, e soldados, resultando em centralização política, estratificação social e aumento nos conflitos violentos.

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(2) Isso inclui a tão famosa e popular Hipótese da Cerveja. Para mais informações, acesse: Evidência de consumo de cerveja há 9 mil anos no sul da China: Hipótese da Cerveja?

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            Porém, apesar de amplamente aceito, o argumento de que a agricultura contribuiu de forma crucial para a ascensão de complexidade sociopolítica é motivo ainda de debate, onde cita-se, por exemplo, evidência de complexas sociedades de caçadores-coletores. 

            Nesse sentido, desde a década de 1960, duas linhas teóricas alternativas ou complementares foram propostas para explicar o fenômeno: teorias funcionalistas e teorias do conflito. Teorias funcionalistas argumentam que o Estado evoluiu e se expandiu em resposta aos desafios organizacionais das sociedades cada vez mais complexas e maiores, como a necessidade de expandir rotas comerciais de longa distância, de administrar os riscos de produtividade, ou de desenvolver e manter infraestruturas responsáveis por irrigação. Teorias do conflito tendem a enfatizar que conflitos internos resultantes de desigualdade e luta de classes, ou guerras externas, foram fatores mais decisivos nesse processo. Atualmente, muitas propostas teóricas combinam as perspectivas funcionalistas e conflituosas.

            O grande problema sempre foi testar empiricamente essas propostas teóricas alternativas. Nos últimos anos, um grande banco de dados históricos chamado de Seshat (em homenagem à antiga Deusa Egípcia da sabedoria) têm aberto uma nova estrada para explorar essas teorias. O Seshat contém informações sobre os tamanhos, governos, forças militares, religiões e economias de centenas de sociedades dos últimos 10 mil anos, associadas a 35 áreas geográficas naturais. Isso torna possível uma análise comparativa das sociedades humanas ao longo da pré-história e história, incluindo a evolução da complexidade social.

           Porém, mesmo com o Seshat, robustos e complicados modelos matemáticos e estatísticos são necessários para analisar de maneira adequada e comparativa o enorme acumulado de dados históricos, sociais, políticos e econômicos nesse banco de dados.


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           No novo estudo, os pesquisadores utilizaram a mais recente atualização do Seshat, a qual inclui informação de >100 variáveis para 373 sociedades com cobertura temporal entre 9600 anos atrás e início do século XX, e a Teoria da Evolução Cultural para analisar o acumulado de dados e investigar de forma compreensiva a validade de várias hipóteses que tentam explicar a evolução de complexidade das sociedades humanas. 

          A teoria da evolução cultural fornece um robusto sistema para conceitualizar e investigar mudanças sócio-culturais de longo prazo em sociedades humanas. Um elemento chave dessa teoria para os estudos de complexidade social é a macroevolução cultural. Na evolução biológica, temos a macroevolução (mudanças no nível de espécie ou acima) e a microevolução (mudanças genéticas e fenotípicas dentro da população de uma espécie); esse mesmo conceito se aplica no contexto cultural: microevolução cultural é definida como a mudança na frequência de variantes culturais dentro de uma população, e macroevolução cultural é definida como mudanças de larga escala em traços culturais de grupos inteiros.

          Para as análises - auxiliadas por um algoritmo baseado nas dinâmicas da macroevolução cultural -, os autores do estudo definiram complexidade social com base em três métricas quantificáveis: o tamanho de uma sociedade e o seu território, a complexidade da sua hierarquia dominante, e o quão especializado é o governo associado, desde a presença de soldados profissionais, sacerdotes e burocratas até o nível de sofisticação dos códigos legais e sistemas de corte.

           Os resultados das análises revelaram dois principais fatores de fomento à complexidade social. Como esperado, quanto mais tempo a região analisada vinha praticando agricultura, mais provável que fosse socialmente complexa. Porém, um fator ainda mais preditivo nesse sentido mostrou ser a inovação militar - particularmente a introdução da cavalaria de guerra e a emergência das armas de ferro. Inovações na tecnologia militar resultaram em uma mudança evolucionária significativamente mais rápida das sociedades quando comparado à adoção da agricultura.

           No geral, a evolução das maiores políticas territoriais durante os últimos 5 mil anos mostrou ser caracterizada por uma série de ascensões, seguidas por períodos de relativa estabilidade, ou mesmo declínio. Por exemplo, a disseminação da metalurgia do bronze dentro da Afro-Eurásia a partir de 3000 a.C., associada com uma súbita proliferação de armas de mão como as espadas (de bronze), resultaram na primeira emergência de macroestados (políticas controlando um território maior do que 100 mil quilômetros quadrados), Império Acádio na Mesopotâmia e o Antigo Reinado no Egito. A próxima revolução militar mostrou estar associada com a disseminação das bigas de guerra, as quais precisavam de cavalos para puxá-las e poderosos arcos compostos usados pelos arqueiros para atirar a partir dessas plataformas móveis. A disseminação das bigas de guerra também engatilharam a necessidade de produzir armaduras para os combatentes, o que resultou na proliferação de escudos e de elmos.


          Governos no final da Idade do Bronze, como os Hititas na Anatólia e a Dinastia Shang na China foram uma ordem de magnitude maiores do que os impérios prévios, com um deles, o Império Novo (ou Egípcio), ultrapassando o limite mínimo para caracterizá-lo como um mega-império (domínio sobre 1 milhão de quilômetros quadrados). Esses impérios, porém, colapsaram durante a Crise da Idade do Bronze Tardia, resultando em uma redução da área política máxima.

           A próxima revolução militar resultou na disseminação conjunta da metalurgia do ferro e da cavalaria. Essa revolução engatilhou outro aumento na sofisticação das armaduras de guerra, espelhada na rápida disseminação de peças peitorais (couraça) e de proteção dos membros. A Revolução da Cavalaria levou à ascensão de impérios muito grandes, cujas extensões territoriais ultrapassavam os 3 milhões de quilômetros quadrados. Os pesquisadores encontraram que em todas as regiões da Eurásia, poderosos impérios emergiam 300 a 400 anos após a emergência da cavalaria. Para exemplificar, o Império Aquemênida - um grande império Iraniano situado no sudoeste da Ásia e fundado no século VI a.C. por Ciro, o Grande - adquiriu tanto o domínio do ferro quanto a cavalaria ao redor de 900 a.C.; no ano de 500 a.C., o território desse império já englobava 3 milhões de quilômetros quadrados. 


          Esse atraso temporal de 300-400 anos mostrou-se particularmente consistente com a velocidade de mudança predita pelo modelo macroevolucionário utilizado nas análises.

           Seguindo a Revolução Ferro-Cavalaria, o território imperial máximo flutuou ao redor do mesmo nível (~3 milhões de quilômetros quadrados) pelos próximos dois milênios. Esse equilíbrio dinâmico foi quebrado pela Revolução da Pólvora, a qual resultou em outro aumento no território máximo. O tempo de atraso entre a emergência de armas de fogo efetivas e a ascensão dos impérios coloniais Europeus foi também de 300 a 400 anos. 

          Segundo os pesquisadores, uma vez que uma sociedade adotava armamentos superiores e, em especial, formava cavalarias, ela conseguia proteger a si mesma de rivais e sobrepujá-los. Essa competição é o que fomentaria as sociedades a se tornarem mais complexas, construir exércitos mais hierárquicos para lutar em guerras cada vez mais complexas, e organizar governos cada vez mais burocráticos para administrar recursos diversos e crescentes populações.

           Enquanto que na África Saariana, América, Ilhas do Pacífico e outros lugares eram dominados na antiguidade por sociedades culturalmente complexas, estas eram tipicamente muito limitadas em termos populacionais e territoriais, e com governos bem menos hierárquicos e especializados do que aqueles observados no mesmo período no norte da África e na Eurásia. Quando colonizadores Europeus introduziram ferro e cavalos a essas sociedades, estas também experienciaram um pulo em traços sociais considerados complexos no novo estudo (!). Porém, o Império Inca (3) mostrou-se um ponto fora da curva no estudo: não precisou de cavalos nem de ferro para desenvolver uma massiva população e um complexo governo. Aliás, os Incas representaram o único mega-império da América. Por outro lado, os Incas domesticaram lhamas nos Andes - um mamífero similar a um camelo - e usaram esses animais como importante meio de transporte, o que pode ter dado uma vantagem competitiva sobre outros rivais na América do Sul.

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(3) O Reino Chimú foi um dos que sucumbiram ao poder do Império Inca no século XV. Leitura recomendadaReino Chimú e o maior sacrifício em massa de crianças da história

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          Nesse mesmo caminho, mesmo o poderoso Império Asteca na Mesoamérica - o qual se expandia e dominava violentamente outros grupos na região (4) - não conseguiu controlar grandes territórios (<30 mil quilômetros quadrados). A ascensão dos Astecas foi precedido por um número de inovações militares, incluindo arco e flecha - o qual chegou a partir da América do Norte ao redor de 1100 d.C. - e espadas largas baseadas em pedra. Junto com lanças e sofisticadas armaduras já disponíveis, essas tecnologias militares eram altamente efetivas e permitiram que os Astecas derrotassem e conquistassem vários povos e territórios. Porém, um sério empecilho na expansão territorial e populacional era logístico: os Astecas precisavam mover suas tropas e suprimentos a pé. Ou seja, cavalaria e outros meios efetivos de transporte militar (ex.: lhamas) parecem ser essenciais para alavancar a ascensão de grandes impérios.

(4) Leitura recomendadaAstecas, Sacrifícios Humanos e os Espanhóis


(!) "EXPERIMENTOS NATURAIS"

          Para reforçar os resultados do estudo, os pesquisadores citaram dois notáveis exemplos de eventos que ocorreram em séculos mais recentes.

          O primeiro foi a introdução dos cavalos na América do Norte pelos Espanhóis no século XVI. A disseminação dos cavalos e da prática de montaria a partir do México até as Grandes Planícies resultaram em uma evolução sócio-cultural nessa região com notáveis paralelos em relação às confederações de estepe do Velho Mundo (territórios conhecidos pelos Europeus do século XV, ou seja, a Eurásia e a África). A mais poderosa confederação nômade foi o "Império" Comanche. Durante o século XVIII, os Comanches se tornaram um poder hegemônico, controlando todo o sul das Grandes Planícies. As invasões dessa confederação se estenderam profundamente no México e no Texas. No entanto, a chegada da cavalaria nas Américas ocorreu tardiamente nas Américas, e os efeitos da Revolução da Cavalaria foram rapidamente sobrepujadas pela Revolução da Pólvora. Durante o século XIX, os Comanches (e outros governos de Nativos Americanos nas Planícies) foram atropelados pelo governo dos EUA, resultando na ascensão do mais poderoso mega-império moderno.


          Outro notável exemplo da influência da tecnologia militar sobre a evolução de sociedades de larga escala é o Havaí. Antes da chegada da Expedição Cook em 1778, as Ilhas Havaianas eram governadas por quatro ou mais chefaturas, focadas nas principais ilhas de Kaua'i, O'ahu, Maui, e Hawai'i. A Grande Ilha (Hawai'i) alternou várias vezes entre estar unida sob um líder-governante ou estar dividida em dois ou mais governos menores. Pouco após as armas Ocidentais se tornarem disponíveis no Havaí, o governante de um território, Kamehameha I, as usou para unir o arquipélago inteiro dentro do seu reino.


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   CONCLUSÃO

          Segundo os achados do novo estudo, o aumento da produtividade associada à agricultura é necessário mas não suficiente para explicar o crescimento de complexidade social e eventual estabelecimento de grandes impérios ou civilizações. As análises indicaram que o aumento de complexidade das sociedades também não é fomentado por fatores associados com modelos teóricos funcionalistas ou de conflitos internos. Ao invés disso, conflitos externos e importantes inovações tecnológicas associadas com o aumento da intensidade das guerras - em especial a emergência da cavalaria e da metalurgia de ferro - parecem ser os fomentadores primários do crescimento dos Estados, junto com robusto crescimento populacional e de recursos fornecidos pelo aumento da produtividade agrícola. 

> É crítico realçar que o fator primário específico de crescente complexidade das sociedades ao longo da história não seria, obviamente, a violência (5) associada às guerras, e, sim, as inovações associadas à competitividade entre grupos humanos.  

(5) Leitura recomendadaA sociedade humana está menos violenta do que no passado?


REFERÊNCIAS

  1. Turchin et al. (2022). Disentangling the evolutionary drivers of social complexity: A comprehensive test of hypotheses. Science Advances, Vol. 8, No. 25. https://doi.org/10.1126/sciadv.abn3517 
  2. https://www.science.org/content/article/does-warfare-make-societies-more-complex-controversial-study-says-yes