"Ratos" gigantes: Heróis que podem em breve auxiliar o trabalho dos bombeiros
O rato-gigante-Africano (Cricetomys ansorgei) é notável pelo seu olfato superdesenvolvido, possuindo extensos bulbos olfatórios (19% do comprimento total do cérebro) e grande córtex relativo ao seu tamanho corporal, além de um rico repertório de receptores olfativos. Aliás, o neocórtex dessa espécie responde por 75% do córtex cerebral, com a razão resultante comparável àquela observada em primatas.
De hábitos noturnos e nativo das savanas Africanas, o nome 'rato' pode gerar confusão, porque esse roedor é um parente relativamente distante de ratos tradicionais (gênero Rattus); a aparência similar a um rato é provavelmente fruto de evolução convergente a partir de ancestrais próximos distintos (Ref.1). Dentro da superfamília Muroidea, compartilha um ancestral comum com ratos e camundongos (gênero Mus) há aproximadamente 18-20 milhões de anos. E, assim como outros membros da subfamília Cricetomyinae, esse roedor exibe grandes bolsas na bochecha para armazenar alimento durante forrageio. Machos de C. ansorgei frequentemente ultrapassam 40 cm de comprimento (desconsiderando a cauda) e podem alcançar uma massa corporal de até 2,8 kg (Ref.3). Mas geralmente machos e fêmeas possuem menos de 1,5 kg.
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> Importante apontar que o nome "rato-gigante-africano" faz referência genérica a qualquer espécie de roedores no gênero Cricetomys (ex.: C. ansorgei, C. emini, C. gambianus, C. kivuensis).
> O genoma do C. ansorgei possui 41 cromossomos únicos (2n = 80, com 39 cromossomos autossômicos e cromossomos sexuais X e Y). Já os genomas do camundongo doméstico (Mus musculus) e do rato (Rattus norvegicus) possuem 21 cromossomos únicos (2n = 40) e 22 cromossomos únicos (2n = 40), respectivamente. O notável aumento do número de cromossomos associado ao gênero Cricetomys provavelmente ocorreu através, primariamente, de splitting cromossômico (fragmentação de cromossomos). Corroborando esse último ponto, o tamanho genômico entre camundongos e ratos-gigantes-africanos é similar: ~2,5 Gbp e ~2,7 Gbp, respectivamente. Ref.3
> O genoma do C. ansorgei codifica 1571 receptores olfativos distintos. Em comparação, humanos possuem aproximadamente 400 receptores olfativos distintos.
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Devido às características neurobiológicas e olfativas do C. ansorgei, esses roedores têm se mostrado fáceis de treinar, e já são amplamente usados para a detecção de tuberculose pulmonar (1) e de explosivos como TNT (ex.: minas terrestres) em áreas de pós-conflito militar. Em particular, o projeto APOPO (associado à instituição Belga de caridade Apopo, na Tanzânia) vem também treinando esses roedores nos últimos anos para salvar vidas humanas em acidentes (ex.: desabamentos) e também para a detecção de múltiplas pistas olfativas (Ref.2-3), nesse último caso com potencial de um único indivíduo conseguir detectar, por exemplo, múltiplas doenças - e com notável destaque para infecções com bactérias Brucella (2).
Tão fáceis de treinar quanto cães, o C. ansorgei possui ainda duas vantagens: são bem menores do que os cães - tornando possível penetrarem em locais muito estreitos - e não são apegados a apenas um único treinador. Em países como a Angola, Camboja e Moçambique, esses roedores já ajudaram a clarear mais de 23 milhões de metros quadrados de terra ao encontrarem mais de 107600 minas terrestres e artefatos não-detonados, além de ajudarem a identificar milhares de casos de tuberculose de forma rápida, simples e barata. Apesar de muito massivos, esses roedores não são pesados o suficiente (<1,5 kg) para ativar as minas mesmo passando sobre esses explosivos.
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> A notável capacidade do rato-gigante-Africano de detectar trinitrotolueno (TNT) pode ter relação com a similaridade desse composto com certos feromônios (nitromusks) usados para comunicação química e interações sexuais. Ref.3
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Talvez o mais conhecido C. ansorgei é Megawa, o qual inclusive ganhou uma medalha de ouro em 2020 pelo seus trabalhos: ao longo de 5 anos de serviço, Megawa identificou mais de 100 minas terrestres e outros explosivos no Camboja (país no Sudeste Asiático), clareando mais de 141 mil metros quadrados (Ref.4). Falecido recentemente aos 8 anos de idade, Megawa foi treinado pela APOPO, e era altamente efetivo em identificar e alertar seus tratadores sobre a presença de minas, para que estas pudessem ser removidas com segurança. É estimado que ainda hoje existam até 6 milhões de minas terrestres espalhadas no Camboja.
No campo de resgates, os pesquisadores têm planejado enviar esses roedores na procura por sobreviventes de desabamentos e afins após os times caninos e humanos terem trabalhado na área de forma mais superficial (Ref.3). O C. ansorgei serviria para complementar o trabalho, penetrando entre os destroços e buscando pessoas presas em profundidades de até 20-30 metros, onde cães e humanos não alcançariam de forma imediata. Os roedores estariam munidos de microfone, luz e câmera, incluindo áudio com mensagens do tipo "Oi, eu sou do time de resgate, e estou aqui para ajudar você".
Esses roedores também têm mostrado potencial para identificar mercadorias associadas ao tráfico de animais selvagens, como escamas de pangolins, chifres de rinocerontes e presas de elefantes (3), complementando o trabalho de cães usados para o mesmo fim (Ref.7).
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(1) Ratos-gigantes-africanos são capazes de detectar tuberculose a partir de compostos orgânicos voláteis associados a amostras de saliva dos pacientes. Um único "rato" pode analisar 100 amostras de saliva em 20 minutos. Apesar de prevenível e curável, em 2021 a tuberculose afetou 10,6 milhões de pessoas, resultando em 1,6 milhão de mortes. A África responde por quase um terço dos casos de tuberculose no mundo, e a doença é um sério problema em regiões como a Tanzânia. Métodos baratos de rápida e acurada detecção da doença são especialmente importantes na África subsaariana. O uso de ratos-gigantes-africanos nesse contexto é capaz de aumentar a detecção de casos de tuberculose em ~40%. Ref.8
(2) Brucelose é uma zoonose contagiosa causada por bactérias do gênero Brucella (12 espécies descritas), transmitida por animais domésticos e selvagens. Estima-se mais de 500 mil casos anualmente. A doença pode causar pesada debilidade e até aborto. Enquanto a brucelose tem sido erradicada na maioria dos países desenvolvidas, ainda continua endêmica na África subsaariana, onde acesso a diagnósticos confiáveis é limitado. O rato-gigante-africano pode identificar a doença ao cheirar amostras fecais. Ref.5
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Curiosidade: Diferente da maioria dos outros mamíferos do sexo feminino, a abertura vaginal (introito) das fêmeas de C. ansorgei permanece selada até a fase adulta. Esse selamento persiste até pelo menos 4 anos de idade, enquanto a longevidade da espécie é de ~8 anos em cativeiro. E mais: o introito da fêmea pode voltar a ficar selado mesmo após eventos de gravidez e parto. A abertura da vagina em outros mamíferos ocorre antes do nascimento ou antes/durante a puberdade, geralmente sob influência de estrógenos (!).
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Fêmea com o introito (seta) fechado (A) e (B) aberto. Ref.6 |
(!) Importante alertar sobre um mito ainda muito disseminado: a abertura vaginal de humanos NÃO é normalmente selada, independentemente da idade ou se houve penetração. A narrativa popular de "rompimento do hímen" é falsa. Para mais informações: Toda mulher sangra quando "perde a virgindade"?
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- Freeman et al. (2020). The giant pouched rat (Cricetomys ansorgei) olfactory receptor repertoire. PLoS ONE 15(4): e0221981. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0221981
- Webb et al. (2020). Rapidly training African giant pouched rats (Cricetomys ansorgei) with multiple targets for scent detection. Behavioural Processes, Volume 174, 104085. https://doi.org/10.1016/j.beproc.2020.104085
- Bentz & Ophir (2022). Chromosome-scale genome assembly of the African giant pouched rat (Cricetomys ansorgei) and evolutionary analysis reveals evidence of olfactory specialization. Genomics, Volume 114, Issue 6, 110521. https://doi.org/10.1016/j.ygeno.2022.110521
- https://www.bbc.com/news/world-asia-59951255
- Mwampashi et al. (2023). Scent detection of Brucella abortus by African giant pouched rats (Cricetomys ansorgei). BMC Veterinary Research 19, 226. https://doi.org/10.1186/s12917-023-03786-y
- Ophir et al. (2023). Extreme plasticity of reproductive state in a female rodent. Current Biology, Volume 33, Issue 6, PR215-R216. https://doi.org/10.1016/j.cub.2023.02.004
- Szott et al. (2024). Ratting on wildlife crime: training African giant pouched rats to detect illegally trafficked wildlife. Frontiers in Conservation Science, Volume 5. https://doi.org/10.3389/fcosc.2024.1444126
- Agizew et al. (2024). Increased tuberculosis case detection in Tanzanian children and adults using African giant pouched rats. BMC Infectious Diseases 24, 401. https://doi.org/10.1186/s12879-024-09313-0
- https://www.science.org/content/article/forget-dogs-these-rats-could-be-future-search-and-rescue