"Blue Balls": Dor nos testículos é um fenômeno real?
Um adolescente de 14 anos de idade apresentou-se ao departamento de emergência de um hospital com um histórico de dor escrotal severa e bilateral que persistia há 1 hora e 30 minutos. Não havia náusea ou vômitos associados. O paciente negou febre, calafrios ou sensação sistemática de mal-estar. Ele descreveu a dor como penetrante, constante e invariável com a postura. Não havia histórico médico de disuria (dor ao urinar), corrimento uretral, infecções no trato urinário ou trauma. Além disso, o paciente nunca havia engajado em atividade sexual de coito (penetração).
Relutante inicialmente de detalhar melhor aos médicos o contexto de emergência da dor, ele eventualmente reportou uma ocorrência similar de dor escrotal, mas menos intensa, 1 semana atrás e que teve gradual resolução ao longo de 2-3 horas. Assim como na nova ocorrência, a dor teve início quando ele estava interagindo sexualmente com sua primeira namorada, mas apenas com beijos e carinhos - e sem ejaculação. A dor iniciava assim que a interação ("preliminares") era finalizada.
No exame físico, o paciente mostrou-se alerta, e parecia desconfortável e em dor moderadamente severa. Sinais vitais estavam normais e nenhuma anormalidade física foi observada, exceto por sensibilidade testicular difusa, acentuada bilateralmente sobre os epidídimos - órgão que conecta os testículos aos canais deferentes, permitindo o transporte de espermatozoides durante o processo ejaculatório. Análise de urina não revelou nenhuma anormalidade.
A dor do paciente eventualmente se resolveu de forma espontânea durante 1 hora de observação no departamento de emergência.
Acompanhamento por telefone várias semanas após a liberação do hospital revelou que o paciente não mais experienciou episódios de dor testicular, coincidindo com o início de relações sexuais com coito entre o paciente e a sua namorada.
O caso foi reportado e descrito em 2001 no periódico Pediatrics (Ref.1).
DOR NOS TESTÍCULOS
O termo em inglês blue balls é amplamente difundido na cultura popular de vários países e basicamente faz referência a uma forte dor testicular ou genital causada por um crescente excitamento sexual sem alívio ejaculatório. Alegadamente, durante atividade sexual de qualquer tipo, dor testicular pode emergir caso o indivíduo do sexo masculino não alcance o orgasmo ou ejaculação. O relato de caso acima parece ser o único descrito em detalhes na literatura médica correspondendo ao significado popular atribuído ao termo blue balls (Ref.3), mas existe evidência observacional de que o fenômeno é real e com prevalência significativa (Ref.4).
Historicamente e no contexto sexual, a condição tem sido frequentemente mencionada na literatura ocidental desde pelo menos o século XVIII, e sob variados termos - desde "hérnia seminal" até "epididimite erótica" (Ref.5). O termo blue balls foi reportado pela primeira vez na América em ~1916. No Brasil, a condição é comumente referenciada como "dor nos testículos".
Por outro lado, apesar da ideia popular de que a condição é comum e caracterizada por uma experiência extremamente dolorosa, a evidência sugere que dor testicular severa afeta apenas uma pequena parcela da população masculina (Ref.6). Além disso, a patofisiologia e a real prevalência dessa condição não são bem esclarecidas.
No geral, a dor testicular sexualmente induzida não é uma séria preocupação médica e parece se resolver de forma espontânea (geralmente dentro de alguns minutos a horas) ou com orgasmo/ejaculação. Outros potenciais sintomas com diferentes intensidades podem incluir dor de cabeça, dificuldade de andar e emoções negativas (Ref.3).
Existem duas hipóteses científicas propostas para explicar a dor nos testículos em questão.
Na primeira hipótese, a condição é referida como hipertensão epididimal e estaria associada - pelo menos em parte - com uma redução na drenagem de sangue dos testículos seguindo excitamento sexual sem orgasmo (Ref.6). Durante uma ereção, sangue enche as estruturas genitais masculinas, o que por sua vez aumenta o tamanho e a pressão local. Para manter uma ereção, fluxo venoso de saída é restringido através da compressão de veias emissárias entre os sinusoides e a túnica albugínea (uma camada fibrosa e densa que envolve os testículos e os corpos cavernosos no pênis). Seguindo o orgasmo, as veias são rapidamente descomprimidas, resultando no esvaziamento de sangue dos órgãos genitais. Nesse sentido, uma drenagem mais lenta de sangue na ausência de ejaculação pode resultar em uma congestão prolongada de sangue, manutenção de alta pressão sanguínea e possível desconforto e dor. O termo blue balls (bolas azuis) nesse contexto faria referência ao sangue venoso acumulado e desoxigenado aparecendo azulado sob a pele escrotal.
A segunda hipótese sugere que a condição é um fenômeno psicogênico compartilhando características de transtornos somatoformes (Ref.7). Ou seja, indivíduos estariam experienciando e comunicando distúrbios e sintomas (ex.: dor) reais no corpo que não podem ser explicados por achados patológicos orgânicos ou fenômenos fisiológicos. Em outras palavras, somatização de dor e outros sintomas, talvez engatilhados ou exacerbados pela forte crença popular associada à condição (!).
----------
(!) Um exemplo notável de provável fenômeno psicogênico: Qual foi a causa da misteriosa Praga da Dança?
---------
Porém, é importante realçar que a patofisiologia da condição é ainda pouco esclarecida, e as duas hipóteses acima expostas são apoiadas sobre evidência científica muito limitada.
Existe também grande preocupação na literatura acadêmica em relação ao uso da condição como uma arma de coerção sexual visando a continuidade ou o início de uma atividade sexual mesmo sob recusa do parceiro ou parceira. Um vídeo postado no Tik Tok em 2021 - e posteriormente deletado - viralizou quando um usuário do sexo masculino alegou que blue balls não causa dor e é usado por homens como uma desculpa para forçar mulheres a manter relações sexuais (Ref.8). Muitos comentários nos vídeos eram de mulheres admitindo que só engajaram sexualmente com alguns homens em certos momentos por que estes alegavam sofrer com a condição.
Aliás, independentemente se a pessoa possui ou não blue balls, não existe necessidade de iniciar ou continuar a relação sexual com a parceira/o, já que o afetado pode obter alívio com masturbação.
É ainda desconhecida a frequência de coerção sexual associada ao blue balls, no entanto é sabido que excitamento sexual aumenta a probabilidade de um indivíduo usar métodos de coerção sexual (ex.: insistência excessiva, mentiras) contra um parceiro/a.
------------
> Existe uma condição similar ao blue balls que parece afetar indivíduos do sexo feminino, apelidada de "blue vulva" ou "blue clit" - e caracterizada medicamente por alguns autores como uma vasocongestão pélvica. Ocorreria com o aumento do fluxo sanguíneo na genitália feminina, resultando em sintomas desagradáveis (ex.: dor) e temporários ao redor do clitóris e da vulva. Os sintomas seriam aliviados quando o fluxo sanguíneo retorna ao normal - parecido com o cenário proposto de hipertensão epididimal. É sugerido que uma das funções do orgasmo feminino é dissipar a vasocongestão pélvica.
> Blue vulva não deve ser confundida com a síndrome de excitação genital persistente ou com a síndrome da genitália agitada. Ambas são condições raras caracterizada por sinas fisiológicos de excitação genital indesejada em indivíduos do sexo feminino, apesar da ausência de desejo sexual ou estímulo. Pode envolver sensações como formigamento, dormência, latejamento, coceira ou dor na região genital, que podem persistir por longos períodos, causar grande desconforto, ansiedade e depressão. No caso da síndrome da genitália agitada, os sintomas podem radiar para os membros inferiores. Orgasmo tipicamente não alivia os sintomas. Ref.16-18
Leitura recomendada: O ponto G existe?
-----------
Torção testicular
É importante também não confundir dor nos testículos com uma emergência urológica chamada de torção testicular. É uma rara condição causada pela torção ou rotação do testículo ao longo do eixo do cordão espermático (Fig.2), cortando o suprimento sanguíneo no tecido testicular (isquemia). Requer reconhecimento imediato e tratamento cirúrgico, e a demora cirúrgica pode levar ao desenvolvimento de necrose e perda do testículo. Apesar dos testículos serem poupados em 97% dos casos quando a intervenção cirúrgica ocorre dentro de 6 horas após a torção, orquiectomia (remoção de um ou ambos testículos) é requerida em 40% dos casos (Ref.9).
![]() |
Figura 2. O testículo pode rotacionar de 180% a 720°. Torção persistente pode causar obstrução arterial, isquemia e necrose do tecido testicular. |
As características clínicas gerais consistem em dor aguda seguida de edema testicular e vermelhidão na região escrotal. Outros sintomas associados podem ser apresentados, como dor abdominal, náusea e vômito. Dor na parte inferior do abdômen representa a manifestação inicial em até 22% dos casos pediátricos, a qual progride para dor escrotal com o tempo (Ref.10). Acredita-se que, após 4 a 6 horas do início dos sintomas, mecanismos patofisiológicos irreversíveis são desencadeados (Ref.11). Falta de conscientização sobre a torção testicular e vergonha de procurar ajuda médica são fatores que podem atrasar atendimento médico e aumentar o risco de orquiectomia.
A etiologia da torção testicular não é ainda bem elucidada. Aparentes fatores de risco incluem aumento do volume testicular em casos de malignidade, traumas locais ou no desempenho de certas atividades físicas - ciclismo em particular -, em que o órgão pode ser facilmente circulado em seu eixo devido aos movimentos das pernas. O reflexo cremastérico é hiperativado por meio do esforço físico ou do ar mais frio. De fato, temperaturas baixas no ambiente e grandes diferenças diurnas de temperatura têm sido associadas com um maior risco para a condição (Ref.12).
Afetando aproximadamente 1 em 4 mil indivíduos do sexo masculino anualmente com menos de 25 anos de idade, a torção testicular ocorre mais comumente logo após o nascimento ou entre 12 e 18 anos de idade (Ref.13-14). Pode ser unilateral (um testículo afetado) ou bilateral (ambos testículos afetados).
A torção testicular pode ser confundida com outras condições fisiológicas bem estabelecidas que podem causar dor aguda escrotal, em especial a torção de um apêndice testicular.
A torção de apêndices testiculares é uma das causas mais comuns de dor aguda escrotal em crianças pré-pubertárias (7-12 anos de idade), mas não é tipicamente considerada uma emergência urológica. Dois apêndices testiculares podem sofrer torção e se tornarem sintomáticos: o apêndice do testículo - um vestígio embrionário dos dutos Mullerianos presente em ~80% dos testículos - e o apêndice do epidídimo - um vestígio embrionário dos ductos mesonéfricos presente em ~25% dos testículos (Ref.15). As causas para a torção desses apêndices não são bem esclarecidas, mas podem estar associadas à hipertrofia testicular no processo de entrada na adolescência.
Diferente da torção testicular, a torção de apêndices testiculares geralmente se resolve espontaneamente e a dor tipicamente é menos severa e se desenvolve de forma mais gradual. Intervenção médica tipicamente visa apenas alívio dos sintomas (ex.: administração de analgésicos). Intervenção cirúrgica pode ser talvez recomendada para dores persistentes.
Independentemente se a dor aguda escrotal é causada por torções, infecções ou traumas, o paciente precisa receber atendimento médico urgente para a identificação da causa da dor e descartar um quadro de torção testicular.
REFERÊNCIAS
- Chalett & Nerenberg (2000). “Blue Balls”: A Diagnostic Consideration in Testiculoscrotal Pain in Young Adults: A Case Report and Discussion. Pediatrics, 106 (4): 843. https://doi.org/10.1542/peds.106.4.843
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC11294672/
- Levang et al. (2023). “Blue balls” and sexual coercion: a survey study of genitopelvic pain after sexual arousal without orgasm and its implications for sexual advances, Sexual Medicine, Volume 11, Issue 2, qfad016. https://doi.org/10.1093/sexmed/qfad016
- Jones et al. (2024). "Does blue balls exist, and why should we care?" The Journal of Sexual Medicine, Volume 21, Issue 2, Pages 88–89. https://doi.org/10.1093/jsxmed/qdad161
- Janssen, D. F. (2025). Blue balls: a brief history. Sexual Medicine Reviews, Volume 13, Issue 3, Pages 423–430. https://doi.org/10.1093/sxmrev/qeaf015
- Henkelman et al. (2023). Blue Balls: Fact or Fiction? Experiences of Genitopelvic Pain and Sexual Coercion Among People with Penises and Vulvas, The Journal of Sexual Medicine, Volume 20. https://doi.org/10.1093/jsxmed/qdad061.046
- Jones et al. (2024). "Does blue balls exist, and why should we care?" The Journal of Sexual Medicine, Volume 21, Issue 2, February 2024, Pages 88–89, https://doi.org/10.1093/jsxmed/qdad161
- https://www.buzzfeed.com/kristatorres/blue-balls-tiktok
- Anderson et al. (2025). Experiences and perceptions of acute testicular pain, with a focus on reasons for delayed presentation to hospital: a qualitative evidence synthesis. Emergency Medicine Journal, Volume 42, Issue 4. https://doi.org/10.1136/emermed-2024-214125
- Mantica et al. (2025). Frequency of testicular torsion presenting with abdominal pain in adults: a retrospective analysis of diagnostic and management implications. Abdominal Radiology. https://doi.org/10.1007/s00261-025-04841-y
- Paladino et al. (2021). Torção testicular e diferenças climáticas nas macrorregiões do estado de São Paulo, Brasil. Einstein (São Paulo), 19. https://doi.org/10.31744/einstein_journal/2021AO5472
- Wu et al. (2025). Association between meteorological factors and testicular torsion: A scoping review of clinical research evidence. Journal of Pediatric Urology, Volume 21, Issue 2, Pages 482-488. https://doi.org/10.1016/j.jpurol.2024.10.026
- Anderson et al. (2024). Experiences and perceptions of acute testicular pain, with a focus on reasons for delayed presentation to hospital: a qualitative evidence synthesis. Emergency Medicine Journal, Volume 42, Issue 4. https://doi.org/10.1136/emermed-2024-214125
- Keefe et al. (2025). Patient and caregiver knowledge of pediatric testicular torsion: A scoping review. Journal of Pediatric Urology. https://doi.org/10.1016/j.jpurol.2025.05.015
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK546994/
- Pereira et al. (2010). Transtorno da excitação genital persistente: uma revisão da literatura. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 59(3). https://doi.org/10.1590/S0047-20852010000300009
- Ari & Sahin (2024). Restless Genital Syndrome: A Case Report of the Challenging Diagnosis. Cureus 16(6): e61994. https://doi.org/10.7759/cureus.61994
- Silva et al. (2025). Evolutionary Role of the Female Orgasm: Insights into Mate Choice and Beyond. Archives of Sexual Behavior 54, 323–334. https://doi.org/10.1007/s10508-024-03011-3