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Por que tantas aranhas imitam formigas?

 Figura 1. Aranha imitadora de formiga, registrada na Austrália. 

           Apesar de aranhas e formigas serem popularmente consideradas artrópodes muito distintos entre si, muitas aranhas evoluíram no sentido de imitar a morfologia e o comportamentos de formigas (mimetismo). Existem mais de 200 espécies de aranhas imitadoras de formigas pertencentes a 16 famílias, como a Salticidae (aranhas-saltadoras), e exibindo variados graus de mimetismo (Ref.1). E, no geral, essas aranhas tendem a coabitar ambientes explorados pelas formigas que servem de modelo de imitação, fator que provavelmente aumenta a eficácia do mimetismo.

          Mas por que tantas aranhas imitam formigas?

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          Mimetismo Batesiano ocorre quando animais palatáveis exibem a aparência de modelos impalatáveis ou desagradáveis no sentido de reduzir predação. Formigas são particularmente uma boa escolha de modelo animal para esse tipo de mimetismo. Vários animais consideram formigas desagradáveis ou perigosas para comer. Esses insetos são agressivos durante defesa, possuem uma forte mordida assim como um doloroso veneno, e ainda podem chamar dezenas de outros aliados para se juntarem na briga. Aranhas, por outro lado, não possuem defesas químicas e são tipicamente solitárias, tornando-as vulneráveis para predadores diversos, incluindo grandes aranhas, vespas, louva-a-deus e aves - e esses mesmos predadores geralmente evitam formigas.

           Nesse sentido, aranhas ganham um grande benefício ao se disfarçarem de formigas: proteção contra predadores.

          Mas para se "transformarem" em formigas, as aranhas precisam superar várias diferenças anatômicas entre esses dois grupos de artrópodes. Formigas possuem seis pernas e duas longas antenas, enquanto aranhas possuem oito pernas e nenhuma antena. Além disso, enquanto o abdômen e o cefalotórax das aranhas são anexados bem juntos, o equivalente nas formigas dessas partes corporais são separados por um estreito segmento chamado de pecíolo. Isso sem contar outras notáveis diferenças, como quantidade de olhos.

 

Figura 2. Formigas (subfilo: Hymenoptera) e aranhas (subfilo: Chelicerata) pertencem a classes diferentes que divergiram há aproximadamente 540-600 milhões de anos. Aranhas e formigas possuem planos corporais muito diferentes: formigas possuem cabeça, tórax e abdômen bem delimitados e separados entre si, seis pernas, um par de antenas e um formato corporal alongado e delgado. Por outro lado, aranhas tipicamente possuem uma cabeça fusionada e "tórax" (cefalotórax), oito pernas, dois segmentos extras de pernas (metatarso e patela) comparado com formigas, ausência de antenas e um formato corporal oval. Em termos mecânicos, formigas suam músculos flexor-extensores para mover as pernas, mas aranhas não possuem músculos extensões nas principais articulações das pernas e usam, ao invés disso, pressão hidráulica para movê-las. Ref.2

          No caso das pernas e antenas, as aranhas imitadoras de formigas tipicamente posicionam o par frontal de pernas para frente e levantado no ar de modo a simular duas antenas (Fig.3). Algumas espécies de aranhas também imitam a movimentação de formigas (ex.: movimentos em zig-zag ao andar), e essa estratégia pode ajudar a compensar um mimetismo imperfeito (Ref.3).

 

Figura 3. Em (A), uma aranha imitadora de formiga da espécie Myrmarachne macleayana em comparação (B) com uma real formiga [modelo de imitação].

          Para contornar outras diferenças e alcançar um mimetismo perfeito, mutações e novos traços fenotípicos fixados afetando a morfologia acabam sendo necessários, efetivamente modificando a anatomia e cor corporais (Fig.4-6). Aliás, essas modificações podem reduzir de forma significativa a habilidade dessas aranhas de capturar presas comparado com outras aranhas próximo-relacionadas que não exibem mimetismo (Ref.4). Fecundidade reduzida por modificações no abdômen tem sido também reportada (Ref.2). Em outras palavras, existe um aparente custo para garantir a proteção extra contra predadores, fator que pode ajudar a explicar o alto grau de variação da acuracidade de mimetismo entre as aranhas imitadoras de formigas (ex.: algumas imitam apenas o comportamento locomotor) (Fig.7-8). Por outro lado, existe evidência empírica de que fatores de pressão seletiva e adaptativos além de limitações corporais e funcionais influenciam de forma crítica nos desvios de acuracidade durante a evolução do mimetismo nas aranhas, como nível biogeográfico de predação e habilidade limitada de predadores relevantes em diferenciar entre reais e falsas formigas (Ref.2, 5).

 

Figura 4. Aranhas-saltadoras do gênero Myrmarachne que imitam formigas de táxons diversos: (aM. acromegalis, (bM. cornuta, (cM. hashimotoi, (dM. melanocephala, (eM. maxillosa, e (f) M. plataleoides. A capacidade de salto para captura de presas nessas aranhas - uma habilidade que depende de pressão hidráulica no corpo - parece ser reduzida em prol do mimetismo. Constrição no cefalotórax dessas aranhas faz com que essa parte do corpo lembre uma cabeça e um tórax separados observados em formigas. Alongamento do pedículo, em combinação com um abdômen mais delgado e uma constrição na parte anterior, simula os segmentos do pecíolo e do pós-pecíolo de um abdômen de formiga. Ref.4

  

Figura 5. Aranhas imitadoras de formigas do gênero Sympolymnia exibem mimetismo perfeito, incluindo comportamento locomotor similar. Sympolymnia shinahota: (A) fêmea juvenil, (B-D) fêmeas adultas. Sympolymnia lauretta: (I) juvenil, (J) macho sub-adulto, (K) fêmea adulta. Sympolymnia cutleri: (L) fêmea adulta. Na coluna do meio, potenciais modelos de imitação para as aranhas à esquerda e à direita: (E) formiga Pseudomyrmex ethicus, (F) formiga Crematogaster sp., (GCamponotus sanctaefidei, (H) formiga Camponotus latangulus. Todos os espécimes foram coletados em florestas da Bolívia e pertencem à família Salticidae. Ref.6

  

Figura 6. (A) Aranha imitadora de formiga com mimetismo perfeito, espécie Myrmaplata plataleoides. (B) Modelo de imitação, formiga da espécie Oecophylla smaragdina. A aranha M. plataleoides imita características morfológicas e locomotórias (ex.: velocidade e grau de movimentação) da formiga-modelo. Ref.2

  

 Figura 7. Essa aranha imitadora de formiga - da espécie Siler collingwoodi - não parece em quase nada com uma formiga em termos anatômicos e de coloração (mimetismo imperfeito), mas se movimenta como uma formiga. Junto com o notável corpo colorido que parece servir como camuflagem entre plantas, essa aranha consegue reduzir predação por outras aranhas, mas não consegue deter predadores como louva-a-deus. Ref.7

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> Aranhas imitadoras de formigas são particularmente comuns entre aranhas-saltadoras (Salticidae). O mecanismo de salto usado por essas aranhas envolve o uso de um método de catapulta hidráulica no qual a aranha bombeia fluido de hemolinfa do abdômen para dentro do cefalotórax através do pedículo, e então aumenta a pressão da hemolinfa ao comprimir o cefalotórax. Nesse sistema hidráulico, função apropriada requer um espaço fechado e fluxo de fluido adequados. Modificações para o mimetismo aranha → formiga, portanto, podem prejudicar o funcionamento da "máquina de salto". Ref.4

> Vídeo mostrando um mimetismo perfeito (morfológico e em termos de locomoção) de uma aranha-saltadora imitadora de formiga: acesse aqui.

> Não apenas aranhas evoluíram mimetismo para modelos de formigas (mirmecomorfia). Mais de 2 mil espécies ao longo de 54 famílias de insetos e de aranhas evoluíram semelhança morfológica e comportamental com formigas para reduzir ataques de predadores orientados pela visão. Aparentemente, é o tipo de mimetismo Batesiano conhecido de maior sucesso. Vários artrópodes imitam formigas em um número de traços, mas principalmente na cor e movimentos. Em termos morfológicos, existe grande variação na acuracidade do mimetismo (imperfeito e perfeito) (Fig.8). Ref.8


Figura 8. O grau de perfeição (acuracidade morfológica) do mimetismo entre artrópodes mirmecomórficos pode variar não apenas por causa de limitações filogenéticas, mas também devido a diferentes pressões seletivas exercidas pelas comunidades locais de predadores. O hemíptero exemplificado é um inseto pertence ao gênero Nabis (família Nabidae). Ref.8

 
> Aves predadoras caçam com orientação visual e são geralmente consideradas a principal força seletiva formando mimetismo visual em invertebrados. Com exceção de algumas espécies especializadas (ex.: pica-paus), formigas não são a presa preferida de aves insetívoras. Evidência experimental e ecológica sugere que aves podem ter sido o fator inicial de pressão seletiva para a evolução de mirmecomorfia nas aranhas. Ref.9

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Figura 9. Seleção sexual pode também ser um fator limitando a acuracidade morfológica do mimetismo mirmecomórfico. Por exemplo, nas aranhas imitadoras de formiga da tribo Myrmarachnini, machos geralmente exibem quelíceras alongadas e hipertrofiadas, um traço ausente em fêmeas e juvenis. Em (A), macho adulto da espécie Myrmarachne gisti (Myrmarachnini); em (B), fêmea adulta de M. gisti. Machos com quelíceras maiores ganham vantagem em competições contra outros machos, mas com potencial prejuízo no "disfarce de formiga". Ref.10

          Interessante mencionar que a dieta de aranhas imitadoras de formigas de múltiplos táxons parece incluir de forma importante alimentos de origem vegetal (ex.: néctar), sugerindo evolução convergente de hábito alimentar onívoro em relação às formigas (Ref.11). Embora seja importante ressaltar que fitofagia não é algo anômalo entre aranhas (!), essa forma alternativa e complementar de alimentação pode compensar a menor capacidade de capturar presas causada pelo mimetismo.


Sugestão de leitura:


REFERÊNCIAS

  1. Poinar, G. (2024). Myrmarachne colombiana sp. n. (Araneae: Salticidae), a new species of ant-mimic spider in copal from Colombia, South America. Historical Biology. https://doi.org/10.1080/08912963.2024.2320190
  2. Subramaniam et al. (2023). An arachnid’s guide to being an ant: morphological and behavioral mimicry in ant-mimicking spiders, Behavioral Ecology, Volume 34, Issue 1, Pages 99–107. https://doi.org/10.1093/beheco/arac104
  3. Zeng et al. (2023). Imperfect ant mimicry contributes to local adaptation in a jumping spider. iScience, Volume 26, Issue 6, 106747. https://doi.org/10.1016/j.isci.2023.106747
  4. Hashimoto et al. (2020). Constraints on the jumping and prey-capture abilities of ant-mimicking spiders (Salticidae, Salticinae, Myrmarachne). Scientific Reports 10, 18279. https://doi.org/10.1038/s41598-020-75010-y
  5. Pekár, S. (2021). New drivers of the evolution of mimetic accuracy in Batesian ant-mimics: size, habitat and latitude. Journal of Biogeography, Volume 49, Issue 1, Pages 14-21. https://doi.org/10.1111/jbi.14283 
  6. Perger & Rubio (2020). Sympolymnia, a new genus of Neotropical ant-like spider, with description of two new species and indirect evidence for transformational mimicry (Araneae, Salticidae, Simonellini). Zoosystematics and Evolution 96(2): 781-795. https://doi.org/10.3897/zse.96.55210
  7. Zeng et al. (2023). Imperfect ant mimicry contributes to local adaptation in a jumping spider. iScience, Volume 26, Issue 6, 106747. https://doi.org/10.1016/j.isci.2023.106747 
  8. Pekár et al. (2022). Mimetic accuracy and co-evolution of mimetic traits in ant-mimicking species. iScience 25, 105126. https://doi.org/10.1016/j.isci.2022.105126
  9. Veselý et al. (2021). Predation by avian predators may have initiated the evolution of myrmecomorph spiders. Scientific Reports 11, 17266. https://doi.org/10.1038/s41598-021-96737-2
  10. Zhang et al. (2022). Males armed with big weapons win fights at limited cost in ant-mimicking jumping spiders, Current Zoology, Volume 70, Issue 1, February 2024, Pages 98–108, https://doi.org/10.1093/cz/zoac101
  11. Hyodo et al. (2018). Stable isotope analysis reveals the importance of plant-based diets for tropical ant-mimicking spiders. Entomological Science. https://doi.org/10.1111/ens.12331