Qual a função das galhadas nos alces e outros cervídeos?
![]() |
Figura 1. Alce adulto macho exibindo massivas galhadas. |
O alce (Alces alces) é o maior dos cervídeos (!), e pode alcançar uma altura até os ombros de 2 metros, um comprimento de 3 metros e uma massa corporal de 600-730 kg. Na Europa, é o segundo maior mamífero, ficando atrás apenas do bisão-Europeu (Bison bonasus). Habitando florestas boreais e decíduas, é um mamífero herbívoro, se alimentando de gramíneas, plantas aquáticas, folhas, galhos, cascas de árvores e raízes, e possui uma longevidade de ~22 anos.
-----------
(!) Cervídeos, cervos ou veados são termos sinônimos entre si para fazer referência a mamíferos ungulados artiodáctilos e ruminantes da família Cervidae. Cervídeos são o segundo grupo mais diverso de ruminantes e são nativos das Américas, Europa e Ásia, ocupando um amplo espectro de habitats. Existem atualmente 56 espécies vivas descritas.
-----------
Mas o mais notável traço fenotípico dos alces são, sem sombra de dúvida, as enormes galhadas presentes nos machos, as quais podem atingir 1,6 metro de extensão e uma massa de até 30 kg! As galhadas são uma marca característica nos cervídeos (alces, corças, veados diversos), e são um par de apêndices ósseos que crescem a partir de apófises permanentes dos ossos frontais (pedículos) e que são submetidos a um periódico processo de crescimento e de perda ao longo da vida do indivíduo. Essa alta capacidade regenerativa de um apêndice/tecido representa um caso único de regeneração epimórfica nos mamíferos, um clado que tipicamente exibe capacidade muito limitada para a regeneração de apêndices.
------------
> É importante não confundir chifres com galhadas. Chifres são projeções permanentes da cabeça dos animais e feitos de queratina (proteína das unhas e cabelos) e de proteínas que cercam um núcleo ósseo. Essas estruturas geralmente iniciam crescimento na puberdade, mantém o crescimento contínuo e não são trocadas ao longo da vida do animal. Por exemplo, antílopes (incluindo bovinos e caprinos), exibem chifres. Para mais informações: Qual é a relação entre vacas e antílopes?
> Uma notável exceção nos cervídeos é o veado-d'água (Hydropotes inermis). Essa espécie não exibe galhada. Para mais informações: Qual a função dos longos caninos do veado-d'água?
> Em geral, as galhadas dos cervídeos são regeneradas anualmente na primavera, quando a estrutura endurecida é perdida, e então cresce rapidamente no verão e passa por ossificação no outono, para subsequentemente a pele de cobertura ("veludo") ser removida, e completa regeneração ser completada na primavera seguinte. Os ciclos de crescimento das galhadas são controlados por andrógenos e fatores imunes, particularmente macrófagos. Ref.18
> Todo o processo de crescimento das galhadas pode ser dividido em: estágio de crescimento e estágio de ossificação. A taxa extremamente alta de crescimento das galhadas pode alcançar 2,75 cm/dia e alcançar 15 kg de massa e 120 cm de comprimento em apenas ~3 meses, representando uma das mais rápidas taxas de desenvolvimento de órgãos no reino animal. Uma população de células progenitoras de blastema (ABPCs) - um tipo de célula-tronco - são responsáveis pelos ciclos anuais de completa regeneração anatômica, fisiológica e funcional das galhadas. Existem também mecanismos moleculares e celulares regulatórios que permitem essa alta taxa de crescimento - e alta taxa de divisão celular associada - e ao mesmo tempo evitando processos cancerosos, incluindo forte pressão seletiva no gene p53 (responsável por supressão de células cancerígenas). Ref.4-6
-----------
As galhadas possuem o mais rápido crescimento ósseo nos vertebrados e, para sustentar a alta taxa de crescimento, essas estruturas são ricamente supridas com sangue (e, portanto, nutrientes e oxigênio) através de ramificações da artéria superficial temporal. Nos alces, a perda periódica das galhadas varia ao longo do ano dependendo da idade; em adultos a galhada é perdida entre outubro e fevereiro. O crescimento de uma nova galhada é iniciada entre abril e julho e termina 2 a 2,5 meses após início do processo regenerativo. Aliás, a grande demanda de cálcio e de fósforo para o crescimento das galhadas em um período tão curto de tempo causa desmineralização temporária do esqueleto desses animais (Ref.26).
Assim como em vários outros cervídeos, a galhada dos alces muda em sua forma nos primeiros anos de vida do animal, primeiro assumindo conformações simples, sem estruturas ramificadas (spiked antlers). No terceiro ano de vida, a galhada consiste de um 'garfo' com duas pontas e, no quarto ano de vida, assume uma forma com três ramificações (Fig.2). A partir dessa última fase, a galhada finalmente assume sua forma de "palma aberta" observada nos machos adultos.
A função primária das galhadas nos cervídeos é ainda motivo de debate acadêmico. Como é um investimento muito custoso a curto e a longo prazo, essas estruturas obviamente oferecem uma vantagem adaptativa. É tradicionalmente proposto que as galhadas evoluíram primariamente como armas durante combates intraespecífico entre machos para estabelecer dominância e garantir acesso às fêmeas. De fato, esses combates são violentos e são focados nessas estruturas ósseas e estas últimas exibem pontas perfurantes. Existe também sugestão de que as galhadas servem como órgãos de exibição que permitem a avaliação entre machos no sentido de se ganhar disputas sem necessidade de real luta, como ocorre em camaleões (2) e gorilas (3). Nesse sentido, no geral, as galhadas parecem ser primariamente influenciadas por competição intraespecífica por fêmeas e possivelmente acesso a outros recursos. E, de fato, como regra geral, galhadas são exclusivas de cervídeos machos. Porém, existe uma notável exceção (Ref.8): em renas (Rangifer tarandus), tanto machos quanto fêmeas crescem galhadas (Fig.3).
Para mais informações:
- (2) Camaleões mudam instantaneamente a cor do corpo para camuflagem?
- (3) Cientistas revelam por que os gorilas batem no peito: sinalização honesta sobre o tamanho corporal
O tamanho e a complexidade variáveis das galhadas entre as espécies de cervídeos têm sido associados a pressões seletiva por seleção sexual e seleção natural. Na seleção sexual, machos com galhadas maiores e mais "carnavalescas" (como nos alces) seriam preferidos pelas fêmeas, por sinalizarem de forma honesta uma melhor qualidade genética, boa saúde física e maturidade. Já na seleção natural, traços de atração sexual seriam limitados dependendo do tipo de habitat: cervídeos vivendo em áreas abertas, tenderiam a ter galhadas maiores e mais complexas, e aqueles vivendo em ambientes fechados (ex.: vegetação densa) tenderiam a ter galhadas menores e mais simples no sentido de não dificultar a movimentação - incluindo fuga de predadores (Ref.21). De fato, pequenos cervídeos sul-americanos conhecidos como "pudus" habitam florestas densas e exibem galhadas pequenas, com a ponta virada para trás - outro traço prevenindo fisgadas em galhos - e sem ramificações (Fig.4).
É sugerido que as galhadas caem anualmente ou periodicamente nos cervídeos como uma estratégia evolutiva no sentido de reduzir o grande fardo do peso extra imposto sobre a cabeça desses animais (Ref.9). Isso também sugere que grandes galhadas são o traço ancestral, com o fenômeno da regeneração periódica sendo conservado em cervídeos ainda vivos com galhadas pequenas. Vídeo mostrando o flagra das galhadas de um alce caindo: acesse aqui.
----------
Curiosidades:
> Rudolph ou Rodolfo, a Rena do Nariz Vermelho - famoso personagem fictício natalino cujo nariz brilhante ilumina o caminho para o trenó do Papai Noel - é tipicamente retratado como uma rena macho. Porém, no período do Natal, geralmente apenas renas fêmeas exibem galhadas. Aliás, nesse sentido, todas as renas com galhada puxando o trenó do Papai Noel são mais prováveis de serem fêmeas. Tipicamente, machos perdem a galhada no final do outono, ao redor de novembro, ficando sem essa estrutura até a próxima primavera, enquanto fêmeas mantêm a galhada ao longo do inverno até o nascimento de filhotes na primavera. Na data do Natal (25 de dezembro), todos os machos são esperados de perder a galhada. Após a temporada de acasalamento, as pesadas galhadas nos machos podem deixar de trazer benefícios - função primária de competição intraespecífica entre machos - enquanto as fêmeas podem usar as galhadas para se defender de predadores enquanto estão grávidas. Além disso, fêmeas usam as galhadas para buscar no solo coberto por neve e defender recursos alimentares durante o inverno. Ref.8, 10-11
> Durante o Holoceno, populações de alces cobriam quase toda a Europa, mas na Idade Média, populações nas regiões central, ocidental e sul começaram a declinar significativamente, principalmente devido à caça excessiva promovida por humanos. Mais tarde, devido ao aumento das atividades antropogênicas, como desenvolvimento infraestrutural, desmatamento e fragmentação de habitats eventualmente limitaram os alces a certas áreas do leste Europeu e no território Escandinavo (onde estão mais concentrados). Ref.14
> Devido à natureza regenerativa dessas estruturas, dentes e galhadas são os registros fósseis mais abundantes dos cervídeos. Ref.15-16
------------
REFERÊNCIAS
- https://www.zoodelahautetouche.fr/en/especes/moose-elk-2584
- https://animals.sandiegozoo.org/animals/reindeer-caribou
- https://www.zoodelahautetouche.fr/en/especes/moose-elk-2584
- Wang & Landete-Castillejos (2023). Stem cells drive antler regeneration. Science, Vol 379, Issue 6634, pp. 757-758. https://doi.org/10.1126/science.adg99
- Bi et al. (2020) Analysis of genetic information from the antlers of Rangifer tarandus (reindeer) at the rapid growth stage. PLoS ONE 15(3): e0230168. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0230168
- Li et al. (2023) Deer antlers: the fastest growing tissue with least cancer occurrence. Cell Death Differ 30, 2452–2461. https://doi.org/10.1038/s41418-023-01231-z
- https://journals.openedition.org/paleo/5126
- Natalka et al. (2013). Scaling of antler size in reindeer (Rangifer tarandus): sexual dimorphism and variability in resource allocation, Journal of Mammalogy, Volume 94, Issue 6, Pages 1371–1379. https://doi.org/10.1644/12-MAMM-A-282.1
- Liu & Li (2023). Mechanical analysis of bovid horns and cervid antlers: a possible ultimate cause for antler casting. Animal Production Science, 63(16) 1664-1668. https://doi.org/10.1071/AN23031
- https://www.fda.gov/animal-veterinary/animal-health-literacy/fun-facts-about-reindeer-and-caribou
- https://healthcare.utah.edu/the-scope/health-library/all/2021/12/santas-reindeers-are-probably-female
- Janík et al. (2021). The declining occurrence of moose (Alces alces) at the southernmost edge of its range raise conservation concerns. Ecology and Evolution, Volume 11, Issue 10, Pages 5468-5483. https://doi.org/10.1002/ece3.7441
- Kalén et al. (2022). Using citizen data in a population model to estimate population size of moose (Alces alces). Ecological Modelling, Volume 471, 110066. https://doi.org/10.1016/j.ecolmodel.2022.110066
- Severud et al. (2022) Statistical population reconstruction of moose (Alces alces) in northeastern Minnesota using integrated population models. PLoS ONE 17(9): e0270615. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0270615
- Heckeberg et al. (2022). Antler tine homologies and cervid systematics: A review of past and present controversies with special emphasis on Elaphurus davidianus. The Anatomical Record, Volume 306, Issue 1, Pages 5-28. https://doi.org/10.1002/ar.24956
- Samejima & Matsuoka (2020). A new viewpoint on antlers reveals the evolutionary history of deer (Cervidae, Mammalia). Sci Rep 10, 8910. https://doi.org/10.1038/s41598-020-64555-7
- Huber et al. (2023). Reindeer in the Arctic reduce sleep need during rumination. Current Biology. https://doi.org/10.1016/j.cub.2023.12.012
- Li et al. (2025). Antlers on does: An unexpected role of macrophages in deer biology. PNAS, 122 (24) e2424448122. https://doi.org/10.1073/pnas.2424448122
- Heckeberg et al. (2020). The systematics of the Cervidae: a total evidence approach. PeerJ, 8:e8114. https://doi.org/10.7717/peerj.8114
- https://lazoo.org/explore-your-zoo/our-animals/mammals/southern-pudu/
- Oliveira et al. (2025). Eco-morphological convergence among Neotropical deer, Biological Journal of the Linnean Society, Volume 144, Issue 3, blaf008. https://doi.org/10.1093/biolinnean/blaf008
- Barrio et al. (2024). The first living cervid species described in the 21st century and revalidation of Pudella (Artiodactyla), Journal of Mammalogy, Volume 105, Issue 3, Pages 577–588. https://doi.org/10.1093/jmammal/gyae012
- Barrio, J. (2025). Pudella mephistophiles (Artiodactyla: Cervidae). Mammalian Species, 57(1042):1-12. https://doi.org/10.1093/mspecies/seaf001
- https://mammalogynotes.org/ojs/index.php/mn/article/view/457
- Colihueque et al. (2025). Habitat use by pudu deer (Pudu puda) in native forests of coastal range in Southern Chile. Mammal Research 70, 245–254. https://doi.org/10.1007/s13364-025-00786-1
- Carranza & Heffelfinger (2025). Evolutionary Significance of Antlers. In: Melletti, M., Focardi, S. (eds) Deer of the World. Fascinating Life Sciences. Springer, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-031-17756-9_3