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Qual é a relação entre Lobo-Guará e Cão-Vinagre?

Figura 1. Ilustrações de um (A) lobo-guará e de um (B) cachorro-vinagre.

          Evidência genômica recente aponta que os canídeos da América do Sul são monofiléticos, evoluindo a partir de uma única espécie que entrou no continente entre 3,5 e 4 milhões de anos atrás (Ref.1). No total, existem 10 espécies de canídeos ainda vivas nativas e habitando o território sul-americano. Seis delas são raposas. O restante são: lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), cachorro-vinagre (Speothos venaticus), cachorro-do-mato (Cerdocyon thous) e cachorro-do-mato-de-orelhas-curtas (Atelocynus microtis).

Figura 2. Em (A), relação filogenética entre as espécies de canídeos (Carnivora: Canidae) da América do Sul. A caixa pontilhada agrupa as espécies de raposas do gênero Lycalopex, popularmente conhecidas como "raposas  sul-americanas". As letras "e" (leste do Andes), "c" (região central do Andes) e "w" (oeste do Andes) indicam a atual distribuição desses canídeos no território sul-americano em relação à cordilheira dos Andes. Os Andes parecem ter servido como importante barreira biogeográfica no processo de radiação dos canídeos sul-americanos. Em (B), uma raposa-de-darwin (Lycalopex fulvipes), uma das raposas nativas da América do Sul e endêmica do Chile. Ref.1

 

Figura 3. O cachorro-do-mato-de-orelhas-curtas é o único canídeo endêmico da floresta Amazônica. Embora historicamente considerado um carnívoro, evidência recente sugere uma dieta onívora para essa espécie, incluindo artrópodes, vertebrados, frutas e sementes. Com focinho relativamente longo e fino e orelhas curtas, possui porte médio (9-10 kg). É uma espécie elusiva e raramente registrada ao longo da sua distribuição geográfica. Atualmente é considerada ameaçada pelo desmatamento na Amazônia. Ref.2-3

 

Figura 4. O cachorro-do-mato é um canídeo com hábitos noturnos e crepusculares. Similar a uma raposa e com ampla distribuição na América do Sul, é a espécie dominante na Caatinga entre os mamíferos de médio e grande porte. Generalista, possui uma dieta onívora e oportunística. Nesse último ponto, consome um amplo espectro de frutas e atua como um dispersador de sementes nos biomas de ocupação. Possui porte médio (5-10 kg) e alcança ~1 metro de comprimento. Ref.4-6

          Entre os canídeos sul-americanos, e como pode ser observado na Fig.2, temos uma notável relação: lobos-guarás e cachorros vinagres são táxons irmãos! Apesar da dramática diferença morfológica e ecológica entre essas duas espécies, ambas possuem relação filogenética muito próxima. Em outras palavras, o parente evolutivo ainda vivo mais próximo dos lobos-guarás é o cão-vinagre.

 

Figura 5. O cão-vinagre é um carnívoro com ampla distribuição ao longo da Amazônia e de outros biomas neotropicais como o Pantanal, Cerrado e a Mata Atlântica. É encontrado também no Panamá (América Central). Porém, é muito raro na maioria das regiões de ocupação. É um canídeo altamente social que exibe adaptações únicas para a caça cooperativa e é especializado na captura de presas elusivas dentro de habitats densamente vegetados. Caçando em ambientes aquáticos e terrestres, possui uma dieta composta primariamente de cutias (Dasyprocta spp.), pacas (Cuniculus paca) e tatus (Dasypus spp.). É um caçador também oportunista, predando aves, répteis e anfíbios quando disponíveis. Um ótimo nadador, pode inclusive capturar presas grandes semi-aquáticas, como capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris). Ref.7-8

 

Figura 6. O lobo-guará é o maior canídeo selvagem da América do Sul. Possui ~90 cm de altura até o ombro e massa corporal de ~23 kg quando adulto. Em relação ao status na IUCN, é uma espécie considerada vulnerável no Brasil e quase ameaçada globalmente. Embora seja encontrado em seis países sul-americanos, a maior parte da população (>90%) é restrita ao território brasileiro. Além disso, o lobo-guará é também comumente criado em zoológicos e centros de reprodução ao redor do mundo. É um canídeo onívoro, consumindo derivados tanto vegetais e quanto animais em quantidades similares, e com hábitos oportunísticos. O alimento vegetal mais consumido pelo lobo-guará é uma fruta parecida com o tomate (Solanum lycocarpum) popularmente conhecida como "lobeira". Presas incluem uma variedade de animais, desde aves, répteis e pequenos mamíferos (ex.: roedores e tatus) até invertebrados. Ref.9-11

          O cachorro-vinagre é o único canídeo carnívoro obrigatório (hipercarnívoro) das Américas que sobreviveu à extinção do Pleistoceno Superior. Ávido predador, possui um conjunto de especializações dentárias e esqueléticas ligadas à sua capacidade de capturar e processar presas. Essas características incluem pernas curtas e robustas com membranas interdigitais para cavar tocas para caça e abrigo; corpo longo com cauda curta; uma extensão única da lâmina cortante nos dentes pré-molares superior (P4) e inferior (M1); e a ausência de molares que, em outros canídeos, têm a função de triturar alimentos vegetais duros. A espécie possui pequeno porte: altura até o ombro de 20 a 30 cm e massa corporal de 5 a 7 kg (Ref.12-13).

          Já o lobo-guará é o único canídeo de grande porte da América do Sul a sobreviver às extinções da megafauna do Pleistoceno Superior (1), talvez refletindo sua capacidade de explorar uma ampla gama de alimentos no ambiente de Cerrado, incluindo uma grande proporção de frutas em sua dieta. Além disso, o lobo-guará possui os membros mais longos entre os canídeos, mas não é um corredor veloz: sua velocidade é limitada pela sua marcha peculiar, caracterizada pelo levantamento simultâneo de ambas as patas de cada lado do corpo. Esse modo de locomoção facilita o movimento em meio à vegetação alta. 

Figura 7. Trato gastrointestinal de um lobo-guará. É similar àquele de outros canídeos e carnívoros: não é muito complexo, relativamente curto, estômago simples, ceco pequeno e um cólon sem saculações. As frutas comumente consumidas pelos lobos-guarás - lobeira no Brasil e guava selvagem (Alibertia edulis) na Bolívia - possuem grande quantidade de polissacarídeos que são indigeríveis para carnívoros. Esses canídeos parecem ter mutações únicas que permitem ótimo aproveitamento dos produtos de fermentação bacteriana desses carboidratos no ceco. Barra de escala = 5 cm. Ref.1

 

Figura 8. Grupo de cachorros-do-mato atravessando um riacho. Existiram várias espécies de canídeos hipercarnívoros nativos da América do Sul e relacionados ao cachorro-do-mato. É possível que esses táxons extintos possuíam maior porte e, como resposta à competição com outros carnívoros, foram ficando cada vez menores. Paralelamente, os ancestrais do lobo-guará foram ficando mais altos e eventualmente pararam de competir por carne. Ref.1

           O cachorro-vinagre e o lobo-guará apresentam as maiores diferenças de tamanho corporal e proporções de membros entre os canídeos com relação próxima, o que pode representar adaptações divergentes para facilitar a escavação de tocas para caça e abrigo no caso dos cachorros-do-mato e para a navegação em ambientes dominados por gramíneas altas no caso dos lobos-guará. Nesse último cenário, existe uma hipótese similar que busca explicar a evolução da postura ereta nos humanos como resposta ao ambiente aberto de savana na África (2).


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            O lobo-guará e o cachorro-vinagre foram as primeiras espécies a divergirem da população ancestral de canídeos - estimada em ~11600 indivíduos - que colonizou a América do Sul, seguindo imigração através do Istmo do Panamá. Essa divergência parece ter ocorrido há 3,1 milhões de anos. A invasão da América do Sul por canídeos parece ter ocorrido por um corredor natural conhecido como "rota da savana", dispersando o canídeo ancestral da América Central para o leste sul-americano.

          "Os canídeos sul-americanos são os cães domésticos do reino animal selvagem, porque variam enormemente no comprimento das pernas e na dieta, e essas mudanças ocorreram muito rapidamente, na ordem de 1 a 2 milhões de anos", comentou em entrevista o professor de Biologia Evolucionária Dr. Robert Wayne, pesquisador na Universidade da Califórnia, EUA (Ref.14). "É um paralelo natural com o que fizemos com os cães. Tudo isso aconteceu porque a América do Sul estava desprovida desse tipo de carnívoro. Havia muitas presas e nenhum carnívoro de grande ou médio porte para competir. Nesse nicho vazio, a natureza permitiu essa radiação tão rápida."


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REFERÊNCIAS

  1. Chavez et al. (2022). Comparative genomics uncovers the evolutionary history, demography, and molecular adaptations of South American canids. PNAS, 119 (34) e2205986119. https://doi.org/10.1073/pnas.2205986119
  2. Lemos et al. (2023). Atelocynus microtis. Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade, ICMBio. https://doi.org/10.37002/salve.ficha.14022.2
  3. Pitman et al. (2024). Endemic and elusive trophic interactions: The first comprehensive description of the diet of short-eared dogs (Atelocynus microtis) in Amazon rainforests. Food Webs, Volume 41, e00366. https://doi.org/10.1016/j.fooweb.2024.e00366
  4. Santos et al. (2024). Spatial and temporal ecology of Cerdocyon thous: a mesopredator canid coping with habitat loss, fragmentation, and chronic anthropogenic disturbances. Landscape Ecology 39, 157. https://doi.org/10.1007/s10980-024-01913-0
  5. Carvalho et al. (2025). Frugivory by the Crab-Eating Fox (Cerdocyon thous) and Its Seed Dispersal Potential: A Review. Mammal Review, e70008. https://doi.org/10.1111/mam.70008
  6. Zimmer et al. (2025). Crab-eating foxes (Cerdocyon thous) coexist with dogs (Canis familiaris) through spatiotemporal segregation. Discover Conservation 2, 35. https://doi.org/10.1007/s44353-025-00055-x
  7. Kazmi et al. (2025). Fishing behaviour and novel geographic records of Speothos venaticus (Carnivora: Canidae) in the department of Madre de Dios, Peru. Mammalogy Notes 11(1), 510. https://doi.org/10.47603/mano.vol11n1.510
  8. Oliveira et al. (2025). New records of bush dogs in fragmented landscapes of southwestern Goiás, central Brazi. Brazilian Journal of Mammals, v.94: e942025163.
  9. Brito et al. (2024). "Maned wolves (Chrysocyon brachyurus) differ in their responses to environmental enrichment: Why?" Applied Animal Behaviour Science, Volume 280, 106432. https://doi.org/10.1016/j.applanim.2024.106432
  10. Silva et al. (2025). Digestive anatomy and diet of free-ranging maned wolf (Chrysocyon brachyurus). Mammalian Biology 105, 479–488. https://doi.org/10.1007/s42991-025-00493-z
  11. https://nationalzoo.si.edu/animals/maned-wolf 
  12. https://www.chesterzoo.org/animals/bush-dog
  13. https://animaldiversity.org/accounts/Speothos_venaticus/
  14. https://newsroom.ucla.edu/releases/south-american-canids-evolved-from-single-ancestor