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O que é o Lúpus Eritematoso Neonatal?

           Um bebê previamente saudável de 2 meses de idade e do sexo masculino foi apresentado a uma clínica dermatológica com um histórico de 2 semanas de placas anulares caracterizadas por bordas edematosas e crosta central sobre o rosto, escalpo e tronco. Resultados de análises sanguíneas (contagem de células sanguíneas) e metabólicas não apontaram nenhuma anormalidade. Análise de uma amostra das feridas na pele (biópsia) revelou dermatite de interface vacuolar e perivascular e infiltrados linfocitários perianexiais.

           Análises subsequentes identificaram anticorpos anti-Ro e anti-La tanto na mãe quanto no paciente. A mãe estava assintomática e não tinha um histórico médico de doença autoimune. Com base nos achados, o bebê foi diagnosticado com lúpus eritematoso neonatal ou simplesmente lúpus neonatal.

          O caso foi reportado no periódico New England Journal of Medicine.


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   O que é Lúpus?

          O Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) - ou simplesmente lúpus - é uma doença inflamatória crônica autoimune e multissistêmica, podendo afetar diversos órgãos do corpo (rins, coração, pele, etc.) e resultando em um amplo espectro de manifestações clínicas, desde lesões cutâneas leves até disfunções endoteliais e catastrófica falência de órgãos. No lúpus, o corpo do próprio paciente ataca seus órgãos e tecidos, através de anticorpos. Aproximadamente 90% das pessoas afetadas por essa condição são jovens do sexo feminino (Ref.1). E próximo de 40% dos pacientes com lúpus desenvolvem nefrite lúpica (inflamação dos rins) que pode progredir para insuficiência renal ao longo de 10 anos em cerca de 10% dos casos (Ref.1). Principais causas de mortalidade em pacientes com lúpus são doenças infecciosas e cardiovasculares (Ref.2).

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> Lúpus é ainda uma das principais causas de morte em mulheres jovens. Mulheres com lúpus possuem um risco de morte 2-3 vezes maior do que a população feminina em geral. Ref.2

> Lúpus é uma doença rara, cuja prevalência e incidência variam dramaticamente dependendo do país ou população analisada. 

> A etiologia da doença é ainda pouco esclarecida, mas o seu desenvolvimento é associado a fatores genéticos, epigenéticos, imunorreguladores, étnicos, hormonais e ambientais. 

> Pacientes com lúpus exibem disfunção endotelial. Células endoteliais se tornam ativas e perdem a capacidade de regular inflamação nos tecidos, aumentando o risco para o desenvolvimento de doenças renais e cardiovasculares. Ref.3

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           A patogênese do lúpus é complexa e envolve a interação entre múltiplos genes e ambiente. Mais de 30 mutações raras em humanos e mais de 60 em camundongos têm sido associadas com o fenótipo do lúpus, além de >100 alelos comuns que contribuem para o risco da doença (Ref.4). Ativação insuficiente do receptor de hidrocarboneto arila - um fator de transcrição que atua na resposta do corpo a substância ambientais e endógenas - parece estar também envolvido no desenvolvimento do lúpus (Ref.5).  A manifestação autoimune lúpica é caracterizada pela intolerância a ácidos nucleicos e a ativação do sistema interferon - a primeira linha de defesa viral do corpo. Pacientes com lúpus produzem anticorpos  autoreativos,  frutos  de  fragmentos  apoptóticos  identificados  como antígenos,  que  reagem  contra  os  componentes  do  núcleo  celular  (DNA,  ribonucleoproteínas, histonas).

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> Potencial envolvimento do transcrito específico do X inativo (Xist) - um RNA não codificante no cromossomo X e exclusivo do sexo feminino - na patogênese do lúpus pode ajudar a explicar por que a doença afeta predominantemente a população feminina. Expressão excessiva ou ganho de função associada ao receptor do tipo toll 7 (TLR7) é um fator causal para o desenvolvimento de lúpus, e o Xist parece interagir fortemente com o TLR7 nesse sentido. Ref.6

> O sexo feminino na nossa espécie (Homo sapiens) está associado com aumento da função de caminhos imunes inatos e adaptativos, incluindo produção de interferon e ativação do receptor do tipo Toll (TLR). Nesse sentido, mulheres em geral possuem uma defesa viral aumentada e melhor resposta às vacinas, mas também um maior risco para condições autoimunes.

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          Entre os principais sintomas do lúpus podemos destacar:

- fadiga;

- febre;

- dor nas articulações;

- dor no peito;

- problemas renais;

- lesões avermelhadas na pele, especialmente nas maçãs do rosto e dorso do nariz (Fig.2).


Figura 2. Lesões cutâneas típicas do lúpus no rosto (A) e nos membros superiores e peito (B). Manifestações cutâneas são o segundo sintoma mais comum do lúpus e marcadas por um amplo espectro de lesões na pele divididas em subtipos agudo, subagudo e crônico. Existem também várias manifestações inespecíficas, incluindo anormalidades vasculares, alopecia, problemas de pigmentação, anormalidades nas unhas e nódulos reumatoides. Ref.7-8

           Atualmente não há cura para o lúpus, mas existem tratamentos disponíveis que visam controlar os sintomas, prevenir a progressão da doença e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. 

           Os medicamentos comumente usados no tratamento incluem antimaláricos (ex.: hidroxicloroquina), anti-inflamatórios, corticoides e terapias biológicas. Medicamentos citotóxicos ou imunossupressores são usados para as formas mais graves da doença. O manejo do lúpus inclui também o controle de fatores desencadeantes, como exposição ao sol, gerenciamento do estresse e manutenção de um estilo de vida saudável. O acompanhamento médico regular é essencial para ajustar o tratamento conforme necessário (terapia personalizada) e monitorar a progressão da doença.

          A severidade do lúpus tende a diminuir em idades mais avançadas, a partir de 60-70 anos. Evidência recente aponta que o avanço da idade faz com que silenciamento epigenético - via mudanças no padrão de metilação - reduza tanto a expressão de genes estimulados pelo sistema interferon quanto a circulação da proteína IFN-α2, atenuando a manifestação sintomática do lúpus (Ref.9).

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   Lúpus Eritematoso Neonatal

          Apesar do nome, o lúpus eritematoso neonatal  - ou lúpus neonatal - não está necessariamente associado ao lúpus. O lúpus neonatal é uma doença rara e autoimune, causada pela  transmissão transplacentária de autoanticorpos maternos para o feto. Em outras palavras, é uma doença autoimune adquirida, passada da mãe para o feto através da placenta. Os autoanticorpos mais comuns associados com a condição são o anti-SSA (anti-Ro) e o anti-SSB (anti-La), embora alguns pacientes testem positivo para o anti-U1-RNP (Ref.10).

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> Os autoanticorpos anti-Ro e anti-La são imunoglobulinas g (IgG) que atacam o próprio corpo. O IgG é a classe de anticorpos mais abundante do sangue e capaz de atravessar a placenta, fornecendo proteção passiva para o feto durante a gravidez. O feto não é capaz de produzir IgG.

> A incidência de lúpus neonatal é de aproximadamente 2% entre bebês nascidos de grávidas positivas para os autoanticorpos anti-Ro e anti-La, e de 18-20% nas gravidezes subsequentes. E não parece haver significativa diferença de incidência entre os sexos. Ref.11

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          Os autoanticorpos anti-Ro e anti-La são frequentemente encontrados em mulheres com doenças autoimunes, estando presentes em 90% das mulheres com síndrome de Sjögren e em 20-30% das mulheres com lúpus (Ref.12). Portanto, o lúpus neonatal não ocorre apenas em grávidas com lúpus. Além disso, 50% dos recém-nascidos com lúpus neonatal nascem de grávidas assintomáticas (25%) ou de grávidas com uma síndrome autoimune indiferenciada (Ref.12). E apesar da presença de anticorpos materno específicos ser, à princípio, necessária para a condição, não é o único fator de risco; nível de autoanticorpos maternos circulantes e fatores genéticos também estão associados com o desenvolvimento de lúpus neonatal.

          Os autoanticorpos transplacentários se ligam a antígenos fetais e tipicamente levam a danos em múltiplos órgãos de recém-nascidos, podendo causar manifestações cutâneas, hematológicas, endócrinas e cardíacas no feto ou no neonato. Essas manifestações podem podem ser acompanhadas por envolvimento gastrointestinal e neurológico em alguns pacientes. Manifestações clínicas comuns incluem lesões cutâneas e arritmias.

          Com exceção de macrocefalia benigna, manifestações que não envolvem o sistema cardíaco são geralmente transientes e se resolvem espontaneamente com a eliminação dos autoanticorpos materno circulando no recém-nascido ou bebê. É uma doença autolimitante, que se resolve sozinha dentro de 6-12 meses com a redução endógena de anticorpos maternos circulando no bebê. Porém, pode causar retardo de crescimento e outras complicações devido aos danos causados.

Figura 3. Lesões cutâneas eritematosas anulares em dois bebês do sexo masculino causadas por lúpus neonatal. Ref.13

            A manifestação mais severa do lúpus neonatal é o bloqueio cardíaco congênito, o qual é geralmente irreversível e ocorre frequentemente entre a 18° e 26° semana de gestação. A condição pode levar a uma frequência cardíaca muito baixa (bradicardia) e dificuldade de bombeamento sanguíneo. Pacientes com bloqueio cardíaco congênito frequentemente requerem implante de marcapasso dentro do primeiro ano de vida (Ref.14).

          Lesões cutâneas podem estar presentes no nascimento, mas aparecem mais comumente várias semanas depois do parto e após o bebê ter sido exposto ao sol. Manifestações clínicas em geral tipicamente aparecem dentro de 4-6 semanas. 


REFERÊNCIAS

  1. Siegel & Sammaritano (2024). Systemic Lupus Erythematosus, A Review. JAMA, 331;(17):1480-1491. https://doi.org/10.1001/jama.2024.2315
  2. Barber et al. (2021). Global epidemiology of systemic lupus erythematosus. Nature Reviews Rheumatology 17, 515–532. https://doi.org/10.1038/s41584-021-00668-1
  3. Russell et al. (2025). Lupus nephritis serum induces changes in gene expression in human glomerular endothelial cells, which is modulated by L-sepiapterin: implications for redox-mediated endothelial dysfunction. Lupus, Science & Medicine, Volume 12, Issue 1. https://doi.org/10.1136/lupus-2025-001568
  4. Caielli et al. (2023). Systemic Lupus Erythematosus Pathogenesis: Interferon and Beyond. Annual Review of Immunology, Volume 41. https://doi.org/10.1146/annurev-immunol-101921-042422
  5. Law et al. (2024). Interferon subverts an AHR–JUN axis to promote CXCL13+ T cells in lupus. Nature 631, 857–866. https://doi.org/10.1038/s41586-024-07627-2
  6. Crawford et al. (2023). The XIST lncRNA is a sex-specific reservoir of TLR7 ligands in SLE. JCl insight. https://doi.org/10.1172/jci.insight.169344
  7. Vale & Garcia (2022). Cutaneous lupus erythematosus: a review of etiopathogenic, clinical, diagnostic and therapeutic aspects. Anais Brasileiros de Dermatologia,  Vol. 98, Issue 3, Pages 355-372. : https://doi.org/10.1016/j.abd.2022.09.005
  8. Fijalkowska et al. (2024). The Spectrum of Cutaneous Manifestations in Lupus Erythematosus: A Comprehensive Review. Journal of Clinical Medicine, 13(8), 2419. https://doi.org/10.3390/jcm13082419 
  9. Narendra et al. (2025). Epigenetic attenuation of interferon signaling is associated with aging-related improvements in systemic lupus erythematosus. Science Translational Medicine, Vol. 17, Issue 804. https://doi.org/10.1126/scitranslmed.adt5550
  10. Fu et al. (2024). Neonatal lupus erythematosus as a rare trigger of gastrointestinal involvement in neonates. Scientific Reports 14, 3791. https://doi.org/10.1038/s41598-024-54091-z
  11. Zhu et al. (2024). Neonatal lupus erythematosus: an acquired autoimmune disease to be taken seriously. Annals of Medicine, Volume 57, Issue 1. https://doi.org/10.1080/07853890.2025.2476049
  12. Diaz et al. (2021). Ethnicity and Neonatal Lupus Erythematosus Manifestations Risk in a Large Multiethnic Cohort. The Journal of Rheumatology, 48:1417–21. https://doi.org/10.3899/jrheum.201338
  13. Vanoni et al. (2017). Neonatal Systemic Lupus Erythematosus Syndrome: a Comprehensive Review. Clinical Reviews in Allergy & Immunology 53, 469–476. https://doi.org/10.1007/s12016-017-8653-0
  14. Jin et al. (2025). Clinical characteristics of neonatal lupus erythematosus complicated by congenital heart block: a multi-center retrospective study in East China. Scientific Reports 15, 14031. https://doi.org/10.1038/s41598-025-98368-3
  15. Sun et al. Neurological and endocrinological involvement in neonatal lupus erythematosus: a retrospective study at a tertiary hospital in Eastern China. Clinical Rheumatology 42, 2461–2468 (2023). https://doi.org/10.1007/s10067-023-06622-8