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É seguro consumir levedo de cerveja como suplemento proteico?

Figura 1. Levedura (Saccharomyces cerevisae) inativa e seca de cerveja.

 
          O levedo de cerveja, também chamado de levedura de cerveja, é um fermento natural inativo derivado do processo de fermentação da cevada.

          A biomassa de levedura constitui um subproduto importante das indústrias de cerveja e tem sido usada amplamente para suplementar a alimentação de animais de criação diversos, desde suínos até peixes (Ref.1). Nesse sentido, o suplemento nutricional levedo de cerveja é um extrato concentrado, amargo e seco constituído de leveduras da espécie Saccharomyces cerevisiae, uma fonte natural de vitaminas do complexo B, minerais diversos, proteínas de algo valor biológico e nutracêuticos como beta-glucanas ou oligossacarídeos. Na produção tradicional de cerveja, esse fungo fermenta carboidratos da cevada, produzindo dióxido de carbono (CO2) e álcool (etanol) no processo. Na produção de cerveja, levedura residual responde por 15% do total de subprodutos gerados: estima-se que 15 a 18 toneladas de levedo em excesso são produzidas para cada 10000 hectolitros (1hL = 100 L) de cerveja (Ref.2). Considerando que o levedo de cerveja residual possui de 45% a 60% de proteína (Ref.3), temos uma farta fonte proteica de baixo custo.

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> Levedura é um organismos fúngico unicelular eucariótico, ou seja, exibe uma célula similar àquela de humanos. Cada célula de levedo é envolta por membrana e parede celulares. A espécie Saccharomyces cerevisiae, a principal levedura usada na produção de cerveja, contêm 16 cromossomos dentro do núcleo celular. Podem crescer anaerobicamente [fermentação] ou aerobicamente.

Figura 2. Em (A), células de levedo (Saccharomyces cerevisae) visualizadas através de micrografia de escaneamento eletrônico. As células exibem um formato esférico a ovoide, com dimensões médias de 7,5 x 5,5 micrômetros (µm). Em (B), equação simplificada do processo de fermentação realizado por leveduras, onde um açúcar simples (glicose) é quebrado em duas moléculas de etanol e duas moléculas de dióxido de carbono, liberando energia no processo. Ref.4

> Múltiplas espécies de levedo do gênero Saccharomyces são usadas na produção de variados tipos de cerveja. Além de CO2 e etanol, leveduras também produzem outros compostos durante a fermentação que dão sabor e outras características para a cerveja, como ésteres, cetonas, aldeídos e outras moléculas de álcool.

> O conteúdo proteico do levedo de cerveja é alto (>40-60%) e com 40% do total constituído por aminoácidos essenciais. O valor biológico da proteína de levedo é equivalente a 70-85% da caseína (Ref.5).

> A parede celular da espécie S. cerevisiae constitui de 15% a 30% da massa seca da célula e é constituída principalmente de beta-glucanos (50-60%), polissacarídeos ligados a vários benefícios à saúde - em especial na forma de fibras solúveis.

> O levedo de cerveja é uma boa fonte de magnésio, potássio, cromo, ferro, zinco, manganês, cobre, selênio, entre outros sais minerais, e de antioxidantes fenólicos e glutationa. É também uma excelente fonte de vitaminas do complexo B, especialmente niacina (B3), tiamina (B1), ácido pantotênico (B5), piridoxina (B6) e ácido fólico (B9). 

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           Apesar do grande potencial nutritivo, existem poucos estudos sobre o consumo humano de levedo de cerveja puro. Mesmo assim, o levedo de cerveja é comumente vendido como suplemento alimentar, incluindo pó e cápsulas. No geral, o levedo de cerveja residual e inativo é considerado seguro para o consumo humano (Ref.6). Porém, existe um aspecto do levedo tipicamente ignorado e que deveria ser alertado aos consumidores. Assim como outros suplementos baseados em micoproteínas (proteínas de fungos)*, o levedo de cerveja possui altos níveis de ácidos nucleicos na sua composição: de 6 a 15% da massa total (Ref.7-8). Outras fontes tradicionais de proteína exibem níveis de ácidos nucleicos muito menores; por exemplo, 0,2% a 2% em carnes diversas.


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           O alto nível de ácidos nucleicos - particularmente RNA - é um importante fator limitante para o uso de levedo de cerveja na dieta humana. É sugerido que um consumo seguro de ácidos nucleicos por um humano adulto é de 2 g por dia, com um máximo recomendado de 4 g por dia (Ref.9). Mas essas recomendações não são baseadas em estudos clínicos envolvendo humanos - e, sim, extrapoladas de estudos in vivo com animais não-humanos - e têm sido questionadas (Ref.10). Considerando uma média de ~10% de ácidos nucleicos na biomassa de levedo, esse limite de segurança diário seria alcançado com o consumo de apenas 20 g do extrato concentrado e seco. 

          Purinas e pirimidinas são dois grupos de bases nitrogenadas que constituem os ácidos nucleicos (DNA e RNA), além de outras biomoléculas importantes em organismos diversos, como a adenina trifosfato (ATP). Um consumo elevado de purinas (adenina e guanina) resulta em aumento nos níveis de ácido úrico no sangue (urato), potencialmente contribuindo para o desenvolvimento de hiperuricemia e a manifestação de doenças como gota (!). Para cada 1 g de ácidos nucleicos, existe aproximadamente 0,3 g de purinas (Ref.11). 

Figura 3. Estrutura química das purinas de ácidos nucleicos e seus produtos metabólicos. Após ingestão de ácidos nucleicos, purinas são hidrolisadas em adenina e guanina. Uma porção é usada primariamente pelo corpo para sintetizar DNA e RNA, enquanto o restante é degradado no fígado para produzir xantina e hipoxantina. Subsequente catálise desses compostos pela enzima xantina oxidase produz ácido úrico. As purinas, no geral, são bases nitrogenadas compostas por um anel pirimidínico fundido a um anel imidazólico. Ref.12

Figura 4. Quantidade de purinas para cada 100 gramas (g) de diferentes fontes proteicas. Órgãos de suínos, bovinos e galináceos como fígado e coração possuem maiores quantidades de purina do que músculos (~0,2 a ~0,4 g/100 g). Ref.12

          Portanto, como precaução, levedo não deve ser usado como uma fonte prioritária de proteína na dieta. Esse é um alerta importante para praticantes de musculação buscando uma fonte proteica mais barata e de alto valor biológico. É um alerta ainda mais importante para pacientes com gota ou indivíduos com variantes genéticas que favorecem maiores níveis de ácido úrico na circulação sanguínea. Aliás, é crucial apontar que NÃO existem estudos clínicos avaliando o levedo de cerveja como suplemento proteico para humanos e muito menos sua eficácia ou segurança para fins de hipertrofia muscular no contexto de treinos de musculação. 

          Nesse último ponto: a parede celular de baixa digestibilidade dos levedos pode reduzir de forma significativa o aproveitamento de nutrientes no trato gastrointestinal humano. Qual seria a real assimilação de aminoácidos e de ácidos nucleicos a partir do consumo de levedo? De qualquer forma, talvez seja prudente manter o consumo abaixo de 20 g por dia e, idealmente, buscar orientação de um/a nutricionista antes do uso.

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> Existem métodos de processamento térmico e químico para a redução do conteúdo de RNA de leveduras, mas que ainda não são aplicados em extratos de levedo de cerveja no mercado. Por exemplo, algumas empresas que vendem micoproteínas como suplemento alimentar seguem recomendações de agências de saúde (FAO, WHO, UNICEF) e usam processamento térmico para reduzir o conteúdo de RNA para menos de 2 g por 100 g de massa seca. Sem processamento térmico ou químico, suplementos baseados em micoproteínas podem ter ~10 g de nucleotídeos para cada 100 g de massa seca. Ref.13

*Micoproteínas derivadas de fungos filamentosos como o Fusarium venenatum e o Pleurotus ostreatus possuem um conteúdo de ácidos nucleicos significativamente menor do que leveduras, variando de 2% a 8%. Comercialmente, o F. venenatum é amplamente usado como micoproteína, com suplementos proteicos (ex.: Quorn®) contendo apenas ~1% de ácidos nucleicos. Ref.14

> O consumo alimentar de nucleotídeos (primariamente na forma de RNA e de DNA) pode variar amplamente entre indivíduos e dietas, mas é tipicamente inferior a 1 g/dia (estima-se que entre 0,1 e 1 g). Consumo de levedo e de outras proteínas baseadas em microrganismos unicelulares (bactérias, algas e fungos), dependendo do nível, pode facilmente dobrar ou triplicar o típico valor diário de ácidos nucleicos ingerido pela população geral. Ref.1312

Importante realçar que a parede celular de leveduras é de baixa digestibilidade, sendo incerto o real aproveitamento de nutrientes e assimilação de purinas por humanos a partir de suplementos baseados em levedo de cerveja.

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   (!) Hiperuricemia e Gota

          No corpo humano, ácido úrico ou urato é um subproduto da metabolização de purinas, representando um dos três compostos nitrogenados que fazem o intermédio da excreção de nitrogênio - os outros dois sendo a amônia e a ureia. O uso primário de ácido único para excretar nitrogênio (uricotelismo) é realizado por aves e répteis. Mamíferos usam primariamente ureia para excretar nitrogênio (ureotilismo) e, tipicamente, exibem baixos níveis circulantes de ácido úrico. Porém, uma peculiar exceção são primatas hominídeos, os quais são ureotélicos mas, paradoxalmente, exibem níveis relativamente altos de ácido úrico. Esse fenômeno é causado, em parte, pelo silenciamento do gene que expressa a enzima uricase devido ao acúmulo progressivo de múltiplas mutações em regiões genômicas codificantes e não-codificantes. Além disso, capacidade de excreção de urato foi reduzida em hominídeos.  

Figura 5. (A) Ácido úrico existe como dois tautômeros, com aquele clinicamente relevante sendo a forma enólica (à direita). Existem dois prótons (H+) dissociáveis dando origem ao ácido de urato e ao urato (ambos comumente chamados de urato) com pKa1 =5.4 e pKa2 = 9.8; o primeiro sendo relevante à urina de mamíferos e com o último não estando presente em estados fisiológicos humanos. Em (B), podemos ver que a solubilidade do urato é dramaticamente reduzida com o aumento ou redução do pH. Por causa do seu caráter anti-lipofílico, o ácido úrico não consegue passar de forma passiva pela bicamada lipídica das células e, nesse sentido, são necessários transportadores (ex.: URAT1, GLUT9, ABCG2) para esse fim em órgãos como fígado, rins e intestino delgado. Ref.15-16

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> Ácido úrico é um ácido fraco com um próton dissociável na faixa do pH fisiológico humano. Urato é a base conjugada (ânion) do ácido úrico - e presente no sangue em condições normais (pH levemente básico, em torno de 7,4). A solubilidade desse ácido em um ambiente urinário é limitada a ~96 mg/L. Considerando que a excreção de ácido úrico tipicamente excede 600 mg/dia em aproximadamente 1-2 L de urina, o risco de precipitação desse composto está sempre presente - e sugere que a urina humana é supersaturada e metaestável em relação ao ácido úrico. Sais de urato (K+ ou Na+) - que aparecem com o aumento de pH do meio - são mais solúveis do que o ácido úrico.

> Purinas incluem moléculas no corpo contendo os nucleosídeos adenina e guanina, como DNA, RNA e ATP/ADP.

> Nível clinicamente aceitável de ácido úrico (ou urato) circulante em humanos adultos: <420 μmol/L em homens e <360 μmol/L em mulheres (pré-menopausa). Ref.16

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           É ainda incerto os potenciais benefícios adaptativos associados à evolução de maiores níveis de urato circulante em primatas hominídeos. Uma hipótese proeminente - baseada em seleção natural - sugere que a inativação do gene codificando a enzima uricase favoreceu sobrevivência em um período de crise alimentar. A inativação desse gene na linhagem dos primatas ocorreu gradualmente há quase 50 milhões de anos, com total perda de função enzimática nos primatas hominídeos ocorrendo há 20-8 milhões de anos, no Mioceno. Notavelmente, isso coincidiu com um período de resfriamento climático global, com florestas encolhendo no sentido do equador. Consequentemente, hominídeos frugívoros passaram por temporadas de fome, especialmente durante os meses de inverno. Evidência experimental mostra que a inibição da uricase em mamíferos resulta em:

- aumento de reserva adiposa (gordura corporal) a partir de frutose;

- redução na oxidação de gorduras;

- maior gliconeogênese (síntese de glicose);

- e aumento da pressão sanguínea.

           Isso sugere que primatas hominídeos sem a atividade enzimática da uricase eram mais efetivos em armazenar gordura corporal a partir do consumo de frutas e em produzir glicose, ambos fatores que ajudam a enfrentar períodos de escassez alimentar. Além disso, restrição alimentar reduz de forma significativa a pressão sanguínea (Ref.17), e a inibição da uricase ajudaria também nesse sentido. Múltiplas evidências também apontam que o ácido úrico é um potente antioxidante - sequestrando radicais livres e protegendo células de danos oxidativos (Ref.18-19). Como hominídeos não sintetizam vitamina C de forma endógena, o urato circulante pode compensar parcialmente a redução do consumo dessa importante vitamina antioxidante em períodos de baixa disponibilidade de frutas e de fome (Ref.20).   

Figura 6. Humanos possuem um nível de urato 5 a 10 vezes maior do que outros mamíferos ainda vivos, devido à perda de atividade enzimática da enzima uricase - traço também compartilhado com outros primatas hominídeos - e robusta maior reabsorção renal de ácido úrico. O gene uricase em humanos é um pseudogene. No geral, hominídeos possuem níveis de urato circulante em torno de 3-4 mg/dL, comparado com uma faixa variando entre 1 e 2 mg/dL na maioria dos outros mamíferos. Atualmente, nível médio de urato circulante varia de 5 a 6 mg/dL na população humana. Em mamíferos com uricase funcional, essa enzima converte urato em um composto (alantoína) mais solúvel. Ref.21-22

          Independentemente dos benefícios adaptativos, esse traço [altos níveis circulantes de urato] hoje favorece cristalopatias em humanos, incluindo gota, nefropatia aguda de ácido úrico e vários tipos de urolitíases contendo cristais de urato monossódico - e a manifestação dessas patologias tipicamente dependerá de fatores de risco genéticos, problemas metabólicos, doenças renais e talvez, em alguma extensão, da dieta. 


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          Um dieta rica em purinas resulta em maiores níveis circulantes de urato (Ref.13) e potencialmente facilita a cristalização dessa substância no corpo quando níveis de urato excedem o ponto de saturação de aproximadamente 6,8 mg/dL nos fluidos fisiológicos. Hiperuricemia é definida como um nível elevado e crônico de urato no soro sanguíneo, geralmente maior do que 6 mg/dL em mulheres e 7 mg/dL em homens, e resulta de produção aumentada de ácido úrico, redução na excreção de ácido úrico, ou de uma combinação dos dois processos. Existem vários fatores causais ligados à hiperuricemia, incluindo (Ref.23):

- uso de certos medicamentos (ex.: diuréticos);

- mutações em genes associados ao metabolismo de purinas; 

- doenças e atividades que provocam maior degradação de células (ex.: psoríase, rabdomiólise, exercícios físicos extremos);

- condições que afetam negativamente a excreção do ácido úrico, como doença renal crônica, hipotiroidismo e sarcoidose.

- dieta rica em frutose (ao interferir com o metabolismo hepático);

- e dieta rica em purinas.

          Existem muitos alimentos com um teor notável de purinas, como cerveja, carnes e órgãos de animais - incluindo bife, bacon e certos peixes e frutos do mar - e micoproteínas. Nesse último grupo, entra o levedo de cerveja. O consumo alcoólico também pode elevar de forma significativa o nível de urato circulante, ao fazer o fígado consumir grande quantidade de adenosina trifosfato (ATP) para metabolizar o álcool (etanol) - produzindo adenosina monofosfato (AMP) em excesso que será degradada em ácido úrico (Ref.24).

            Purinas na dieta são responsáveis por ~30% da produção diária de ácido úrico no corpo, enquanto o restante é sintetizado a partir de fontes endógenas (Ref.23). Em condições normais, cerca de 65-70% do ácido úrico é excretado através dos rins e o restante através do trato gastrointestinal. Existe forte evidência de que a atividade bacteriana anaeróbica no intestino humano é parte essencial da degradação de ácido úrico produzido no corpo, compensando em parte a perda de funcionalidade da enzima uricase (Ref.25). Urato circulante é filtrado e secretado nos rins, então 90% é reabsorvido no túbulo proximal.

          A maioria das pessoas com hiperuricemia (85% a 90%) são assintomáticas, mas níveis elevados de urato no sangue ou na urina podem levar ao desenvolvimento de gota ou nefrolitíase. Hiperuricemia não indica necessariamente um estado patológico, já que é muito prevalente na população em geral (~21%) e comumente assintomática. Porém, hiperuricemia tem sido associada a vários outros problemas de saúde, como síndrome metabólica, diabetes tipo 2, doença cardiovascular, hipertensão, aterosclerose, processos inflamatórios, obesidade e doença renal crônica.            

           A hiperuricemia é particularmente prevalente nos nativos de ilhas no Pacífico. Nos EUA, aproximadamente 15% da população adulta possui hiperuricemia e ~3,9% sofre de gota (Ref.13). Gota é uma artrite inflamatória que envolve primariamente as articulações e é considerada um fator de risco para hipertensão e doença cardiovascular. Gota é mais comum na população masculina do que na feminina, com uma prevalência crescente nas últimas décadas - especialmente nos países desenvolvidos - devido aparentemente a mudanças na dieta e no estilo de vida. A doença é causada primariamente por um aumento anormal nos níveis de ácido úrico e a cristalização de urato monossódico.

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> Gota é a artrite inflamatória mais comum, caracterizada por períodos de hiperuricemia e deposição de cristais de urato monossódico na cartilagem articular, no osso subcondral, na membrana sinovial, na cápsula, nos tecidos periarticulares e em áreas de menor temperatura, tais como os tecidos superficiais das extremidades, que leva a reação inflamatória dolorosa. Afeta 41 milhões de adultos ao redor do mundo, sendo 3-4 vezes mais comum em homens do que em mulheres.

> Aumento da produção endógena de urato ou redução na excreção de ácido úrico pode aumentar o nível de urato circulante além do limite de solubilidade, acelerando a cristalização de urato monossódico dentro e ao redor das articulações. A solubilidade do urato nos fluidos articulares pode ser influenciada por outros fatores na articulação, como temperatura, nível do pH, concentração de cátions, nível de desidratação articular e a presença de agentes de nucleação. Mobilização de cristais de urato monossódico pode engatilhar uma resposta inflamatória, conhecida como "ataques de gota".

> Um ataque de gota, ou crise de artrite gotosa, é caracterizado por dor intensa, inchaço e vermelhidão em uma ou mais articulações, geralmente o dedão do pé (hálux).

> Não existe um exame físico que indicará hiperuricemia, exceto se o paciente exiba sintomas de gota ou nefrolitíase de ácido úrico.

Para mais informações: 


> Gota é uma doença crônica, portanto o tratamento é para a vida toda, geralmente envolvendo fármacos. Terapias para gota incluem medicamentos que reduzem o nível de urato circulante (ex.: via bloqueio de reabsorção de ácido úrico no túbulo renal proximal), visando valores inferiores a 5-6 mg/dL de urato no soro sanguíneo.

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          Ao longo da história, a gota tem sido fortemente associada com consumo alimentar abundante e consumo alcoólico elevado. Aliás, a gota é comumente referenciada como "doença de rei" e simbolizava alto status social na antiguidade, à medida que apenas a classe mais rica possuía acesso a vinhos e carnes. Embora ainda exista a errônea ideia de que "gota só se desenvolve em pessoas com um hábito alimentar irresponsável", evidência acumulada desde 2016 mostra que fatores genéticos são o fator primário no desenvolvimento da doença, influenciando na resposta imune e inflamatória aos cristais de urato monossódico depositados (Ref.27). Desequilíbrio no microbioma intestinal e fatores ambientais diversos (ex.: poluição dor ar) tem sido também associados como um fator de risco importante para o desenvolvimento de gota (Ref.28-29).

           Hiperuricemia é um pré-requisito para o desenvolvimento de gota e existe evidência clínica de que quanto maior o nível de urato circulante, maior o risco para episódios sintomáticos da doença - com 98% dos ataques de gotas ocorrendo quando nível de urato é igual ou superior a 5-6 mg/dL no soro (Ref.30). A enzima urase é inclusive usada no tratamento de gota descontrolada (Ref.31). Porém, apenas nível de urato circulante não é suficiente para o desenvolvimento de gota. E o próprio quadro de hiperuricemia é dependente em grande parte de fatores genéticos. Aliás, hiperuricemia e gota são historicamente comuns em povos nativos na região do Pacífico - particularmente naqueles de descendência Polinésia -, e antes mesmo da colonização Europeia, fato que fortemente aponta predisposição genética (Ref.32). Na comunidade nativa Guam, prevalências de hiperuricemia e de gota alcançam 51% e 23% da população, respectivamente (Ref.33). Na Polinésia Francesa, hiperuricemia afeta mais de 70% da população, com uma prevalência de gota próxima de 15% (Ref.34). Nativos dessa região experienciam gota precoce, severa, com frequentes ataques sintomáticos, altas taxas de hospitalização e forma avançada da doença (gota tofácea).

 

Figura 7. Mãos com múltiplos depósitos tofáceos em um paciente de 60 anos de idade com gota avançada. Existem quatro estágios clínicos possíveis em pacientes hiperuricêmicos: hiperuricemia assintomática, artrite gotosa aguda, gota intercrítica e gota tofácea crônica. A gota tofácea crônica é caracterizada clinicamente pela presença de tofos, secundários ao acúmulo de ácido úrico, matriz proteica, células inflamatórias e células gigantes de corpo estranho nos tendões, ligamentos, nas cartilagens, bolsas, no tecido celular subcutâneo e nas regiões periarticulares. Os tofos são mais frequentes nas superfícies extensoras das mãos, nos cotovelos, pés, joelhos, apêndices auriculares e na ponta do nariz. Ref.35-36

  

Figura 8. Entre os Mãori (povo nativo da Nova Zelândia), prevalência de gota alcança 8,5% da população adulta. Em comparação, prevalência da doença varia de 0,3% a 3% na Europa e é inferior a 4% nos EUA. Em algumas ilhas do Pacífico, prevalência de gota pode ultrapassar 20%. Enquanto obesidade parece favorecer o desenvolvimento de gota no Pacífico, dieta como um componente isolado não parece ser um fator de risco significativo relativo aos fatores genéticos. Ref.32

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> Os níveis de urato no soro acima de 6,8 mg/dL podem levar a precipitação e deposição de cristais de urato nas articulações e nos tecidos moles, mas quadros de gota aguda podem ocorrer mesmo em pacientes com níveis normais de urato no soro sanguíneo.

> Enquanto fatores alimentares específicos, como consumo de alimentos ricos em purina (ex.: carne vermelha e pescado), bebidas alcoólicas e de frutose, podem engatilhar ataques de gota - ao elevar o nível de urato circulante - , a causa fundamental da doença são hiperuricemia, deposição de cristais nas articulações e um sistema imune predisposto a "atacar" os cristais - e genética é essencial em todos esses processos, incluindo variantes em genes que codificam transportadores de urato nos rins e no intestino (Ref.37-38).

> Dieta, no geral, possui um papel muito limitado no desenvolvimento de níveis anormalmente altos de urato no sangue, mas é um gatilho bem estabelecido para ataques sintomáticos [gota] em pacientes com cristais de urato monossódico depositados nas articulações. Hidratação inadequada também aumenta o risco para ataques de gota; maior consumo de água ajuda a eliminar o ácido úrico em excesso através da urina.

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            Voltando ao caso do levedo de cerveja, é importante realçar que é improvável um consumo moderado desse suplemento (<20-30 g/dia) causar hiperuricemia e muito menos gota. Preocupação maior seria para pessoas com a doença estabelecida ou com níveis anormalmente altos de urato circulante.

           Idealmente, busque orientação de um nutricionista e/ou médica antes de usar levedo de cerveja como suplemento alimentar.


   Ácidos Nucleicos na Dieta: Desnecessários?

           Os ácidos nucleicos são essenciais para o crescimento, desenvolvimento, proliferação e diferenciação celulares, e atuam de forma crucial em processos biológicos. A maioria dos alimentos são organismos (ou partes de organismos) compostos de células, e todas as células contém tanto DNA quanto RNA. Em outras palavras, estamos diariamente consumindo quantidades significativas de material genético. A digestão dessas macromoléculas começa no estômago e é intensificada no intestino delgado, com liberação de nucleotídeos, nucleosídeos e até mesmo bases nitrogenadas livres que serão em parte absorvidos pelas células endoteliais intestinais (Ref.39). Enquanto a ingestão de ácidos nucleicos é essencial para o rápido desenvolvimento de bebês, para indivíduos adultos esses nutrientes têm sido considerados semi-essenciais ou nutrientes essenciais condicionais. 

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> Em células metabolicamente ativas, RNA constitui aproximadamente 6% da massa total das células de mamíferos (e até 20% da massa seca), a maior parte (>95%) na forma de macromoléculas (ex: rRNA). O total de DNA em uma célula é geralmente menor do que 10% do total de RNA.

> Nucleosídeo é uma molécula constituída por uma base nitrogenada (purina ou pirimidina) ligada a um açúcar pentose (ribose ou desoxirribose), enquanto um nucleotídeo é um nucleosídeo que possui um ou mais grupos fosfato ligados ao açúcar. Em outras palavra, um nucleotídeo é um nucleosídeo "fosforilado" e uma uma unidade básica dos ácidos nucleicos.

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           Evidências experimentais acumuladas sugerem que a digestão e o metabolismo de ácidos nucleicos oriundos da dieta podem ajudar a complementar a produção endógena do corpo, beneficiando o organismo ao poupar o gasto de recursos internos e durante desafios imunes, idade avançada e fome (Ref.40). Nucleotídeos e nucleosídeos exógenos parecem promover diferenciação de células epiteliais intestinais, fornecer energia (usando uridina) e nitrogênio para o crescimento celular, beneficiar a saúde hepática, facilitar o desenvolvimento intestinal, melhorar a composição da microbiota intestinal e otimizar a função imune (Ref.41). Durante suprimento comprometido de glicose, nucleosídeos exógenos podem fornecer ribose para manter o metabolismo de carbono no corpo (Ref.42). 

          Mas é importante ressaltar que estudos sobre o papel nutritivo dos ácidos nucleicos no corpo humano são ainda escassos e limitados. Não existem recomendações de consumo para essas macromoléculas e um consumo excessivo pode causar mais efeitos adversos do que benéficos.


Leitura recomendada:


REFERÊNCIAS

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  3. Oliveira et al. (2025). Valorisation of protein-rich extracts from spent brewer’s yeast (Saccharomyces cerevisiae): an overview. Biomass Conversion and Biorefinery 15, 1771–1793. https://doi.org/10.1007/s13399-022-02636-5
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