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Alerta de saúde mental: Alto risco de Transtorno do Estresse Pós-traumático após enchentes

Figura 1. Inúmeras pessoas e outros animais ilhados têm sido resgatados nas trágicas inundações no Rio Grande do Sul, por bombeiros, policiais, militares e voluntários .

          Uma enchente (!) é um processo natural ou quasi-natural que pode causar um significativo risco para a estrutura socioeconômica de uma comunidade dependendo da magnitude do evento (profundidade da enchente, duração, ocorrência de inundações) e da vulnerabilidade comunitária. Nos últimos anos, a ocorrência e a severidade das enchentes está aumentando devido às mudanças climáticas e às atividade antropogênicas [humanas] (1). Anualmente, milhares de vidas humanas são perdidas e até ~20 milhões de pessoas perdem suas moradias ao redor do mundo devido a eventos de enchentes (Ref.1). Em 2021, foram reportadas mais de 4 mil mortes, 43% delas ocorrendo nas Américas (Ref.2). O Brasil é uma das regiões globais sob maior maior suscetibilidade a enchentes, e nos últimos dias fortes inundações vêm atingindo o estado do Rio Grande do Sul, causando massivos danos sociais, econômicos e estruturais e mais de 100 óbitos (Ref.3).

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          Mortes e problemas de saúde diversos associados aos eventos de enchentes podem ser causados por forças físicas diretas e indiretas, como afogamento, eletrocussão e hipotermia, e contaminação da água e alimentos expostos a patógenos (fungos, bactérias e vírus) (2), acesso dificultado a serviços de saúde e prejuízos psicológicos. Nesse último ponto, desastres dessa natureza podem ter severas consequências de curto, médio e longo prazo na saúde mental dos afetados. Além de ansiedade e depressão, um sério problema comumente ignorado é o Transtorno do Estresse Pós-Traumático.

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(1) Mudanças climáticas fomentadas pelo atual aquecimento global antropogênico podem exacerbar eventos de seca e de inundações fluviais e costeiras ao intensificar o ciclo hidrológico. Fica a sugestão de leitura: Por que chuvas extremas e inundações estão ligadas ao aquecimento global?

(2) O exemplo mais notável nesse contexto é a leptospirose, uma doença causada por bactérias patogênicas liberada na urina de animais infectados, como ratos. Para mais informações: Mordida de rato pode transmitir leptospirose?

> Enchente é o mais comum tipo de desastre natural. As mudanças climáticas representam um desafio especial relativo às enchentes porque reduz o valor da experiência com eventos passados para a avaliação de risco e desenvolvimento de estratégias de defesa. Como resultado de precipitações [chuvas] extremas e aumento dos níveis dos mares, eventos de enchente são projetados de aumentar em severidade, duração e frequência. Ref.4-5

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          O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é um transtorno psiquiátrico e debilitante que afeta adultos, adolescente e crianças. Envolve a participação em um evento violento e traumático, onde o afetado pode ter participação direta, quando é a própria vítima; ou indireta, no caso de testemunhar a situação violenta, ou saber sobre um evento traumático que ocorreu com algum familiar ou amigo próximo, ou ser exposto de forma repetida à detalhes de um evento traumático.

          Pessoas com TEPT têm sintomas intrusivos associados ao trauma, no qual revivesciam a situação traumática por meio de sonhos (pesadelos), lembranças (flashbacks, imagens vívidas) e reações dissociativas. Outro sintoma característico do TEPT é a evitação persistente de estímulos associados ao evento traumático (ex.: barulho de chuva no caso de enchentes). Ocorrem também alterações negativas no humor e na cognição, com sentimentos de distanciamento, incapacidade de recordar detalhes do evento estressor, crenças negativas em relação a si e aos outros (ex.: perda de confiança), estado emocional negativo persistente, interesse diminuído em atividades significativas, humor disfórico e incapacidade persistente de sentir emoções positivas. Somado a estes sintomas também ocorrem alterações na excitabilidade, levando o sujeito a ter perturbações do sono, hipervigilância, surtos de raiva - incluindo comportamentos agressivos e de violência -, comportamento imprudente, problemas de concentração e resposta de sobressalto exagerada.

          Todos os sintomas descritos acima devem ter duração superior a um mês e causar prejuízos significativos no âmbito profissional e social do sujeito.

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> O TEPT é definido como uma resposta sintomática envolvendo revivência, esquiva de estímulos associados ao trauma e entorpecimento da responsividade geral e excitabilidade aumentada a um evento estressor (hiperestimulação do sistema nervoso autônomo, através da manifestação de taquicardia, sudorese e disforia).

> Indivíduos com TEPT podem enfrentar um prolongado processo de recuperação seguindo o evento traumático, com aproximadamente 10% dos pacientes experienciando impactos psicológicos de longo prazo e diagnosticados com TEPT crônica. O TEPT pode alimentar outros transtornos, como depressão, ansiedade e abuso de substâncias. Tratamentos ainda são limitados. Prevalência global estimada para o TEPT é de ~4% (Ref.8).

Leitura complementar:

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           As torrenciais chuvas e enchentes mostram o poder da natureza contra a fragilidade humana. A violência desses desastres naturais - cada vez mais intensificada com o aquecimento global antropogênico - devasta infraestruturas e tudo mais no caminho. E os efeitos dessa destruição generalizada podem persistir e se tornar mais sérios ao longo do tempo, devido às perdas de moradias, poluição, doenças, situações profissionais degradadas, apagamento de memórias físicas, e perda de familiares e outras pessoas próximas. É comum ouvir as vítimas dizerem "eu perdi tudo", "o trabalho de uma vida inteira foi perdido", ou "todas as memórias do meu passado foram destruídas". Desastres naturais como grandes enchentes e terremotos fragmentam laços de comunidade, continuidade e familiaridade. Rotinas diárias normais são severamente comprometidas enquanto vínculos ao lar, posses pessoais, relacionamentos pessoais sofrem disrupção e segurança alimentar é comprometida. Tudo isso alimenta fortemente sentimentos de desamparo, estresse e ansiedade.

           Em várias partes do mundo, enchentes representam um dos principais fatores psicotraumatogênicos para o desenvolvimento de TEPT, emergindo como uma reação atrasada à situação catastrófica. Indivíduos que tiveram que ser relocados das suas casas após inundações enfrentam um risco >2x maior para o desenvolvimento de TEPT, ansiedade e depressão (Ref.2). Aliás, o TEPT é considerado o transtorno mental mais prevalente e debilitante que emerge seguindo uma enchente (Ref.9).

          Um estudo de revisão sistemática e meta-análise publicado em 2022 no periódico Frontiers in Psychiatry (Ref.10) encontrou que a prevalência de TEPT nas vítimas de enchentes é alta e independente da idade: próximo de 30%. Nesse sentido, os autores do estudo reforçaram a necessidade de ações efetivas para conscientização comunitária, prevenção, suporte psicológico e tratamento no sentido de proteger vítimas de enchentes em relação ao desenvolvimento de TEPT.

          No Paquistão, um país em desenvolvimento no Sudeste Asiático com mais de 222 milhões de habitantes - em sua maior parte vivendo em áreas rurais - e comumente afetado por pesadas chuvas de monções e enchentes, a prevalência reportada de TEPT engatilhada por esses eventos é muito alta, afetando a maioria das vítimas de inundações. Análise conduzida 5 meses após fortes enchentes no país em 2010 revelou uma prevalência de >59% de TEPT severa nas populações afetadas (Ref.11).

          Em 2018, o estado de Kerala, na Índia, enfrentou sua pior enchente desde 1924, causando quase 500 mortes, desaparecimento de várias pessoas e elevada perda de casas e bens pessoais. Análise de 600 vítimas desse evento encontrou uma prevalência próxima de 50% para TEPT (Ref.12).

          Prevalência de TEPT na população adulta após 5 meses seguindo grandes enchentes no Irã em 2019 alcançou 39% em um recente estudo (Ref.13).

          Mulheres, indivíduos sem suporte familiar, casas inundadas a uma altura de >1 m, histórico de transtornos mentais e pessoas que perderam suas propriedades nas enchentes parecem ser mais vulneráveis ao TEPT. Intensidade das enchentes está diretamente associada com a prevalência de TEPT. Pessoas com fraco suporte social são menos prováveis de se recuperarem do TEPT mesmo após >10 anos. O transtorno pode causar prejuízo crônico no bem-estar e saúde mental por até 13 anos entre pessoas expostas às enchentes (Ref.14).

          Nas enchentes costeiras de 2017 na região de Piura, no Peru, causadas pelo El Niño, análise de 179 mães afetadas pelo evento encontrou uma prevalência de 38% de TEPT nos primeiros três meses (14). Entre alguns dos relatos sintomáticos das participantes:

- ansiedade sobre o futuro:

"Quando nós chegamos em casa, estávamos com muito medo de que a mesma coisa acontecesse novamente".

hiperexcitabilidade com distúrbios no sono:

"Eu dormia muito pouco, acordava à meia-noite, e então não conseguia mais cair no sono."

"De repente, eu acordava à noite e chorava por causa de todas as circunstância que eu vivi ao longo do desastre."

- evitação de memórias do evento 1 ano pós-evento:

"Nós não queremos pensar sobre o que aconteceu."

"Eu não gosto de lembrar ou pensar sobre as coisas que eu vi."

"Eu tento usar meu tempo em diferentes atividades, para não ter que lembrar ou pensar sobre o que aconteceu."

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          Infelizmente, TEPT é uma consequência pós-desastre frequentemente ignorada pelas ações governamentais. Campanhas efetivas de conscientização sobre saúde mental e melhora no acesso dos sobreviventes de inundações e outros desastres naturais aos serviços de saúde são medidas essenciais para reduzir a prevalência e/ou impacto desse transtorno a médio e a longo prazo. Investimento no capital social também têm se mostrado muito importante para reduzir as chances de TEPT e sintomas relacionados. 

          O capital social pode ser definido como resultante de uma coesão social ou redes sociais informais com objetivos comuns, pautados em normas com alguns atributos como cooperação mútua, confiança, solidariedade, reciprocidade e tolerância (Ref.16). É a habilidade de atores em assegurar benefícios aos integrantes de redes sociais e outras estruturas sociais. Especificamente, o capital social fornece redes nas quais as pessoas podem ter acesso a recursos ou trocar recursos, e, consequentemente, podem melhorar a saúde mental e aumentar a conexão com outras pessoas, fortalecendo as respostas adaptativas em cenários de pós-desastre.


(!) DEFINIÇÕES RELEVANTES

Enchente (ou Cheia): temporária elevação do nível d'água normal da drenagem, devido a acréscimo de descarga. Geralmente é uma situação natural de transbordamento de água do seu leito natural, qual seja, córregos, arroios, lagos, rios, ribeirões, provocadas geralmente por chuvas intensas e contínuas. Em mares e oceanos, os alagamentos devidos a ressacas também são denominados de enchentes.

Inundação: tipo particular de enchente, na qual a elevação do nível d'água normal atinge tal magnitude que as águas transbordam de um canal de drenagem e extravasam para áreas marginais (planície de inundação ou área de várzea), habitualmente não ocupadas pelas águas. É um desastre natural que pode ser exacerbado pelas atividades humanas.


Figura 2. Representação ilustrativa dos fenômenos de enchente e de inundação. 


Alagamentos: são caraterizados pela extrapolação da capacidade de escoamento de sistemas de drenagem urbana e consequente acúmulo de água em ruas, calçadas ou outras infraestruturas urbanas, em decorrência de precipitações intensas. Consequentemente, o alagamento não conforma um desastre natural.

> As enchentes no Rio Grande do Sul em atual curso referem-se às inundações que ocorrem na região devido em especial à cheia do lago Guaíba que banha a capital Porto Alegre, após excesso de precipitação (chuva). A cota de alerta do Guaíba é de 2,5 metros, enquanto a de inundação é de 3 metros. O nível mais alto nos últimos dias alcançou 5,33 metros. Níveis de inundação também têm sido ultrapassados em vários rios Gaúchos. É a pior tragédia climática na história do estado. Ref.


REFERÊNCIAS

  1.  Islam et al. (2023). Translating victims’ perceptional variations into policy recommendations in the context of riverine floods in a tropical region. International Journal of Disaster Risk Reduction, Volume 87, 103557. https://doi.org/10.1016/j.ijdrr.2023.103557
  2. Pretorius et al. (2023). Global Warming and Psychotraumatology of Natural Disasters: The Case of the Deadly Rains and Floods of April 2022 in South Africa. Annales Médico-psychologiques, revue psychiatrique, Volume 181, Issue 3, March 2023, Pages 234-239. Annales Médico-psychologiques, revue psychiatrique, Volume 181, Issue 3, Pages 234-239. https://doi.org/10.1016/j.amp.2022.07.004
  3. https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/02/temporais-no-rs-saiba-quem-sao-as-vitimas.ghtml
  4. Grigg, N. S. (2023). Comprehensive Flood Risk Assessment: State of the Practice. Hydrology 10(2), 46. https://doi.org/10.3390/hydrology10020046
  5. https://www.bmj.com/content/383/bmj-2023-075081
  6. Emygdio et al. (2019). Efeitos do Transtorno de Estresse Pós-Traumático na Memória. Psicologia: Ciência e Profissão, 39. https://doi.org/10.1590/1982-3703003174817
  7. Almeida et al. (2022). Análise do transtorno do estresse pós-traumático em profissionais de enfermagem durante a pandemia da COVID-19. Texto & Contexto Enfermagem, 31:e20220139. https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2022-0139pt
  8. Nöthling et al. (2024). Change in emotional distress, anxiety, depression and PTSD from pre- to post-flood exposure in women residing in low-income settings in South Africa. Archives of Women's Mental Health 27, 201–218. https://doi.org/10.1007/s00737-023-01384-3
  9. Motlagh et al. (2024). Prevalence of post-traumatic stress disorder and its relationship with coping strategies among flood victims: Evidence from Iran. Journal of Affective Disorders Reports, Volume 15, 100704. https://doi.org/10.1016/j.jadr.2023.100704  
  10. Golitaleb et al. (2022). Prevalence of Post-traumatic Stress Disorder After Flood: A Systematic Review and Meta-Analysis. Frontiers in Psychiatry, Volume 13. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2022.890671
  11. Yousuf, J. (2023). Effects of floods on the mental health of Pakistanis: a commentary. Annals of Medicine & Surgery, 85(5):p 2253-2255. https://doi.org/10.1097/MS9.0000000000000590
  12. Mathew et al. (2024). Community-based screening for post-traumatic stress disorder among flood victims – A cross-sectional study from Kerala, India. Indian Journal of Psychiatry, 66(4):p 367-372. https://doi.org/10.4103/indianjpsychiatry.indianjpsychiatry_749_22
  13. Shabani, A., Rasoulian, M., Naserbakht, M. et al. Prevalence and determinants of post-traumatic stress disorder five months after the 2019 huge flooding in Iran. BMC Public Health 24, 346 (2024). https://doi.org/10.1186/s12889-024-17861-y
  14. Culquichicón et al. (2024) Post-traumatic stress disorder, food insecurity, and social capital after the 2017 coastal El Niño flooding among mothers from Piura, Peru: A mixed method study. PLOS Global Public Health 4(4): e0002996. https://doi.org/10.1371/journal.pgph.0002996
  15. Puechlong et al. (2020). Role of personality traits and cognitive emotion regulation strategies in symptoms of post-traumatic stress disorder among flood victims. International Journal of Disaster Risk Reduction, Volume 50, 101688. https://doi.org/10.1016/j.ijdrr.2020.101688
  16. Ribeiro & Araújo (2018). Capital social e pobreza no Brasil. Brazilian Journal of Political Economy, 38(4). https://doi.org/10.1590/0101-35172018-2806
  17. Drenagem Urbana: Soluções Alternativas Sustentáveis / Adacto Benedicto Ottoni; Jeane Ap. R. de Godoy Rosin; Fernanda Moço Foloni (orgs). 1 ed. – Tupã: ANAP, 2018.
  18. http://www2.cemaden.gov.br/inundacao/
  19. http://www.ufrgs.br/ufrgs/noticias/iph-amplia-informacoes-em-mapa-de-inundacao-de-porto-alegre