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Vírus com alta taxa de mortalidade alcançou 'super-disseminação' na Argentina

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          Devido à atual e trágica pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), a atenção de cientistas e do público aumentou para potenciais novos patógenos virais de alto potencial de transmissibilidade e associados a altas taxas de mortalidade. Nas últimas semanas, o vírus Chapare, oriundo da Bolívia, ganhou forte repercussão na mídia, após cientistas confirmarem que esse patógeno zoonótico era efetivamente transmitido entre humanos (!). Agora, em um estudo publicado esta semana no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1), pesquisadores reportaram e alertaram que eventos de "super-disseminadores" e extensivo contato pessoa-para-pessoa fomentaram um sério surto de infecções por uma cepa do vírus dos Andes - responsável pela síndrome pulmonar do hantavírus - em uma pequena vila na Argentina em 2018-2019. Foram 34 casos confirmados e 11 mortes (taxa de mortalidade de 32%).

> (!) Leitura recomendada: Cientistas confirmam que vírus letal na Bolívia é também transmitido entre humanos

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   VÍRUS DOS ANDES

           A síndrome pulmonar do hantavírus (SPH) é uma rara doença zoonótica com uma ampla distribuição nas Américas, e cada vez mais sendo reconhecida como uma doença infecciosa emergente. A síndrome foi primeiro descrita em 1993 nos EUA e pode ser causada por pelo menos 24 vírus distintos, classificados no gênero Orthohantavirus (subfamília Mammantavirinae, família Hantaviridae, ordem Bunyavirales). Na Argentina e países ao redor, a maioria dos casos de SPH são causadas por vírus dos Andes (ANDV), os quais englobam vários membros da espécie Andes orthohantavirus: ANDV, vírus do Castelo dos Sonhos, vírus Lechiguanas (LECHV), e vírus de Orán (cepas oficialmente classificadas); vírus de Araucária, vírus Araraquara, vírus Bermejo, vírus de Buenos Aires, vírus de Juquitiba, vírus Paranoá, e vírus da Plata (cepas não-classificadas). 

           Os vírus dos Andes possuem um material genético constituído de uma fita única de RNA, e a principal rota de infecção em humanos é através da inalação de partículas virais aerolisadas presentes nas excretas de roedores da família Cricetidae. Porém, esses vírus também podem ser transmitidos de pessoa-para-pessoa, com a primeira ocorrência desse tipo de transmissão descrita em 1996. O principal reservatório desses vírus são os roedores das espécies Oligoryzomys longicaudatus e Oligoryzomys flavescens. Durante a fase aguda da doença, o RNA desses vírus pode ser detectado no sangue, secreções respiratórias, saliva, fluído crevicular gengival, e urina. Dados epidemiológicos até o momento acumulados têm sugerido que a transmissão entre humanos ocorre principalmente através de contato próximo com fluídos orais durante as fases prodromal e aguda de infecção.

           Dois estudos recentes também revelaram que esses vírus podem ser transmitidos entre mãe e filhos durante o parto (ou gestação) e durante a amamentação. No primeiro estudo, publicado em agosto deste ano no periódico Emerging Infectious Disease (Ref.3), pesquisadores reportaram a infecção de um bebê do sexo feminino previamente saudável pelo vírus dos Andes e a presença de RNA viral no leite materno da mãe (21 anos), em Parral, no Chile. O bebê sofreu mialgia nas extremidades inferiores e fraqueza, com subsequente febre de 39,5°C, dor de cabeça severa e diaforese, e acabou sendo hospitalizado 15 dias após o parto (transpiração intensa). No segundo estudo, publicado em setembro de 2019 no periódico Clinical Michobiology and Infection (Ref.4), os pesquisadores reportaram que um bebê recém-nascido estava infectado com o vírus dos Andes, com possível transmissão intrauterina (vertical), via contato com o sangue da mãe durante o parto ou durante a amamentação. Nesse último caso, a mãe morreu com a infecção, oito dias após o parto; o bebê desenvolveu trombocitopenia e sintomas respiratórios. 

            No geral, o período de incubação das infecções pelo vírus dos Andes é estimado de 7 a 39 dias, com uma média de 18 dias. Existem quatro estágios que caracterizam a apresentação clínica da SPH: prodromal, cardiopulmonar, diurese e convalescente. A fase prodromal é caracterizada por febre, dor de cabeça e mialgia. A fase cardiopulmonar manifesta taquipneia e tosse seca secundário ao edema pulmonar que pode rapidamente progredir para falha respiratória, choque cardiogênico e morte. Após vários dias, diurese espontânea ocorre entre os sobreviventes do estágio cardiopulmonar. A fase convalescente (robusta produção de anticorpos) têm sido pouco caracterizada. Os primeiros sintomas da fase cardiopulmonar podem progredir rápido para  uma doença severa com a necessidade de ventilação mecânica, uso de medicamentos vasoativos, e até mesmo o uso de membrana de oxigenação extracorpórea.

          Notavelmente, alguns pacientes exibem uma doença bem leve, apenas com um mínimo ou total ausência de suplementação hospitalar com oxigênio. Em um estudo publicado em 2019 no periódico Viruses (Ref.5), pesquisadores encontraram que variações genéticas específicas - particularmente a mutação L33P na proteína β3 integrina - estavam fortemente associadas com uma maior ou menor suscetibilidade à infecção por esses vírus.

           A taxa de mortalidade entre as pessoas com SPH causada pelo vírus dos Andes é alta e tem variado de 21% a 50%. Até meados de julho de 2018, um total de 1141 casos da doença têm sido reportados no Chile, com uma letalidade de 30% a 35%.

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   POTENCIAL DE SUPER-DISSEMINAÇÃO

          No novo estudo, um time internacional de cientistas reportou as características genéticas, clínicas e epidemiológicas de um surto causado pelo vírus dos Andes cepa Epuyén/18−19, e suspeito de ter sido propagado a partir de um único indivíduo. O surto ocorreu em Epuyén, uma pequena vila rural com uma população de aproximadamente 2800 pessoas, na região Andina da Província de Chubut, sul da Argentina. Foram um total de 34 casos confirmados, e uma taxa de mortalidade de 32%.

          Análises filogenéticas confirmaram que o surto foi causado por um único evento inicial de transmissão, e três pacientes mostraram ser as principais fontes de infecção (super-disseminadores), respondendo por 64% dos casos secundários (21 de 33 casos). As investigações epidemiológicas traçaram o primeiro evento de transmissão em uma festa de aniversário com aproximadamente 100 convidados, onde a fonte primária (paciente 1) estava sintomática, com febre e mal-estar. Cinco pessoas que ficaram próximas do paciente 1 na festa ficaram sintomáticas 17 e 24 dias após o evento. O paciente 2 foi provavelmente a fonte para 6 outros casos de infecção durante a fase prodromal inicial durante seu dia-a-dia social ativo; esse paciente morreu 16 dias após a manifestação dos sintomas, e sua esposa também acabou infectada (Paciente 9). No velório, outras 10 pessoas que entraram em contato com a paciente 9 também ficaram doentes 14 e 40 dias após o velório. Os outros 12 casos de infecção também exibiram histórico de contato com algum dos infectados prévios, como pode ser observado no esquema abaixo.

          Os períodos de incubação nesse surto variaram de 9 a 40 dias. Com base nos eventos de transmissão, os pesquisadores concluíram que a rota de transmissão nos casos secundários foi possivelmente através da inalação de gotículas ou aerossóis contendo partículas virais infecciosas (similar ao SARS-CoV-2). O dia da manifestação inicial de febre parece ser crítico para as transmissões do vírus, e todos os casos secundários estão ligados a esse dia. Para reforçar isso, mesmo grande parte dos profissionais de saúde não usando equipamentos mínimos de proteção (ex.: máscara N95), e realizando procedimentos de alto risco de exposição nos pacientes infectados (limpeza de fluídos corporais, intubação orotraqueal, etc.), praticamente nenhum deles se tornou infectado (doença já avançada). No total, foram 82 profissionais de saúde expostos aos pacientes sintomáticos, e apenas um caso de infecção intra-hospitalar desse total.

          O número de reprodução (R) - número de indivíduos infectados a partir de um único indivíduo infectado -  médio antes de medidas de controle (isolamento de casos) serem implantadas foi de 2,12, e o valor médio após as medidas de controle caiu para 0,96. Porém, em todo o período de surto, a taxa R média foi de 1,19, indicando grande potencial de transmissão auto-sustentada (R>1). 

          Em 25 de 33 pacientes, houve comprometimento em algum grau das funções respiratórias. Pacientes com casos severos da doença tiveram hipotensão, progressivo edema pulmonar, e hipóxia (frequentemente resultando em intubação). Pacientes com casos leves da doença precisaram somente de suplementação com oxigênio. Casos fatais foram caracterizados por severo comprometimento da função hemodinâmica. O tempo médio entre a manifestação dos sintomas e a morte do paciente foi de 6,7 dias.

          Importante mencionar que a cepa Epuyén/18-19 mostrou grande similaridade genética com a cepa Epilink/96, de um surto que ocorreu em 1996. Junto com as altas taxas de contágio entre pessoas, isso sugere que o vírus dos Andes não precisa de adaptações genéticas para otimizar as transmissões entre humanos após infecção inicial a partir de roedores. Fatores genéticos que facilitaram as transmissões pessoa-para-pessoa no último surto podem ter sido conservadas em hospedeiros roedores antes da transmissão inter-espécies que ocorreu em outubro de 2018 (paciente 1), o que aumenta a periculosidade desses vírus.

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   CONCLUSÃO

          A capacidade de super-disseminação do vírus dos Andes cepa Epuyén/18-19 durante transmissão pessoa-para-pessoa mostra uma grande facilidade (R>2) para cadeias contínuas auto-sustentadas de transmissão se nenhuma medida de controle for implementada, incluindo potencial pandêmico. Existe também evidência de transmissão entre mãe para filho via amamentação e possivelmente via intra-uterina. Isso aumenta a necessidade de alerta em regiões onde os vírus dos Andes são endêmicos, e rápidas medidas de controle epidêmico a partir de qualquer caso reportado. A situação tende a ficar mais séria com a crescente devastação ambiental e avanço das comunidades humanas para dentro do habitat natural de outras espécies, aumentando o risco de exposição aos reservatórios naturais.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2009040
  2. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/zph.12690
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7392419/
  4. https://www.clinicalmicrobiologyandinfection.com/article/S1198-743X(19)30497-5/fulltext
  5. https://www.mdpi.com/1999-4915/11/2/169/htm