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Mitos e verdades sobre o camelo


- Atualizado no dia 23 de outubro de 2022 -

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          Os camelos são um dos animais mais conhecidos do planeta e muito famosos pelas suas habilidades de sobrevivência em ambientes extremos, especialmente em termos de aridez. Mesmo sob uma temperatura de 30-35°C em temporadas de seca nos desertos do Saara e do Sahel, os dromedários conseguem ficar de 10 a 15 dias sem consumir água (incluindo de alimentos)! Toda essa fama, contudo, acabou gerando alguns mitos sobre esses mamíferos, os quais acabaram fincando raízes bem profundas no imaginário popular. Entre esses mitos, três se destacam, com dois deles envolvendo suas corcovas. O mais engraçado é que, entre esses dois mitos, um é bem simples e o outro é bem complexo em seus supostos mecanismos científicos de plausibilidade.

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   CAMELOS

          Os camelos (gênero Camelus, família Camelidae) são mamíferos com casco de dedos pares (ordem Artiodactyla) que são muito bem adaptados à vida em desertos gelados ou quentes, e bastante singulares por possuírem notáveis corcovas em suas costas. Basicamente, os camelos são divididos, hoje, em três espécies: os dromedários (C. dromedarius), camelos-Bactrianos (C. bactrianus) e o camelo-Bactriano selvagem (C. ferus), este último em crítico estado de conservação. Os dromedários - os quais englobam cerca de 94% da população total de camelos hoje - possuem apenas uma corcova nas costas, enquanto os Bactrianos possuem duas corcovas.



          Enquanto o dromedário é muito bem adaptado às condições áridas e quentes, os Bactrianos são muito bem adaptados para viverem em regiões secas e frias. Ambos são espécies domesticadas de suma importância para as atividades humanas em várias localidades áridas e semi-áridas na Ásia e na África, desempenhando principalmente a função de transporte, mas também servindo para inúmeras outras funções, como fornecedor de leite, carne, fibras e pele. Em relação às suas adaptações para o calor e a falta de água, os dromedários vencem, de longe, qualquer outro mamífero no quesito sobrevivência.

          De acordo com registros fósseis e genéticos, as primeiras espécies da família Camelidae  emergiram há cerca de 45-46 milhões de anos na América-do-Norte; um representante nessa época é o gênero Protylopus, o qual media cerca de 80 cm de comprimento e tinha uma massa corporal em torno de 2,6 kg, lembrando um pouco as atuais lebres. No Oligoceno (33,9 a 23 milhões de anos atrás), os camelídeos sofreram dramáticas transformações; o gênero Poebrotherium perdeu dois dedos laterais - lembrando a estrutura de 'dois-dedos' dos camelos modernos -, mas ainda sem corcova e possuía o porte de um veado moderno. Após esses animais migrarem para a Ásia via Estreito de Bering durante o Mioceno Superior (~7,25-4,90 milhões de anos atrás) - e posteriormente evoluírem para as espécies do gênero Camelus - os seus ancestrais acabaram desaparecendo no território Norte-Americano. Alguns, porém, tinham migrado antes para a América-do-Sul, há cerca de 3 milhões de anos, evoluindo para três espécies do gênero Lama e uma espécie do gênero Vicugna. A primeira grande divergência na família Camelidae - dando origem aos grupos Camelini e Lamini, e eventualmente origem aos ancestrais diretos dos gêneros LamaVicugna e Camelus - ocorreu há cerca de 16-17 milhões de anos. Já a divergência entre dromedários e camelos-Bactrianos ocorreu há cerca de 4,4 milhões de anos.


          A domesticação dos camelos Bactrianos ocorreu entre 5 e 6 mil anos atrás, próximo provavelmente do Usbequistão e atual Oeste do Cazaquistão. A domesticação do dromedário parece ser mais recente (3-4 mil anos atrás) e provavelmente ocorreu no sudeste da Península Árabe (atual Sultanato de Omã, Emirados Árabes Unidos e sul da Arábia Saudita). Criação de novas linhagens de camelos via cruzamentos é ainda comum hoje, e inclusive existe registro da hibridização entre um dromedário e uma lhama em uma fazenda experimental, gerando animais estéreis chamados de cama (Ref.13). Criação de camelos não é mais limitada a países de clima árido e a indústria de leite produzido por esses animais está crescendo no Ocidente.



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> O nome 'Bactriano' faz referência a uma região (antigo reino conquistado pelo Alexandre o Grande) localizada entre o Afeganistão, Irã e Cazaquistão. Mais de 90% da população de camelos Bactrianos atualmente é encontrada na China (>400 mil indivíduos), Mongólia (~170 mil) e Cazaquistão (>380 mil) (Ref.14).
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   MITOS sobre os camelos

          Começando com as corcovas, não, elas não são uma reserva de água. Esse é o primeiro e mais difundido mito. Na verdade, elas são ricas em gordura, ou seja, são primariamente uma reserva de energia para o camelo. Agora, o segundo mito é relativo à gordura dessa corcova e envolve uma bioquímica que faz sentido, mas não se encaixa para esse caso.



           Em todo processo de metabolização energética, tanto de gorduras quanto do carboidratos, na presença de oxigênio (oxidação), ocorre a formação de água e gás carbônico como produtos finais de uma complexa cascata de reações bioquímicas, envolvendo a formação de piruvato, o ciclo de Krebs e a cadeia respiratória. Muitos pensam que essa grande reserva de gorduras dos camelos serve, além de fornecer energia, para a produção massiva de água, a qual manteria o corpo hidratado durante os momentos de extrema escassez hídrica. Porém, se o camelo oxidasse grande quantidade de gordura com o objetivo de gerar água, ele perderia parte considerável dela durante a respiração (troca massiva de gás carbônico produzido e oxigênio reagente) e aumento excessivo da temperatura durante o processo de 'queima calórica', mesmo com esses animais possuindo mecanismos que minimizam ao máximo essas perdas. O fato é que o camelo aproveita sua reserva de gordura principalmente como fonte de energia e de forma gradativa. Por outro lado, obviamente, ele também ganha uma água extra durante sua metabolização, mas não para resolver o problema da sede/desidratação em situações de emergência.

            O terceiro mito é em relação à suposta água ingerida em excesso pelo camelo durante os períodos de oferta hídrica. Nesse sentido, é alegado que o camelo bebe quantidades absurdas de água armazenando o excedente no seu corpo para ser usado posteriormente nos períodos de prolongada falta de água no ambiente. Essa alegação é distorcida. O camelo, quando bebe água, apenas ingere o suficiente para reidratar o seu corpo, o qual geralmente perde quantidades massivas de água durante as longas jornadas no deserto. De qualquer forma, esse 'suficiente' é muita coisa, sendo que o camelo consegue beber enormes quantidades de água em poucos minutos (um camelo de 500-600 quilos pode beber até 200 litros de água em cerca de 3 minutos!). Suas hemácias sanguíneas até possuem um formato diferenciado do habitual entre os mamíferos - bem arredondadas - para suportarem grandes quantidades de água entrando na corrente sanguínea (a pressão osmótica aumenta significativamente nesse cenário).

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   VERDADES sobre os camelos

             Mas se todas essas alegações expostas não passam de mitos, como o camelo se vira tão bem nos desertos, enfrentando longos períodos de completa falta de água no seu habitat? Simples: eles possuem diversas adaptações que não são, infelizmente, tão populares quanto os mitos.

           Os camelos são mestres em preservar a água do seu corpo e sobreviver em ambientes extremos. Enumerando:

1. Eles produzem muito pouca urina e, quando produzem, fazem com que ela seja a mais concentrada possível para minimizar a perda de água. Se um homem adulto excretasse urina como um camelo desidratado faz, isso significaria um volume diário de apenas 0,08 litro na média. Suas fezes também são incrivelmente secas, saindo com aparente falta absoluta de umidade. Por exemplo, os camelos-Bactrianos (C. bactrianus e C. ferus) possuem diferenças no número de cópias de genes CYP2 relativo ao gado e outros mamíferos, as quais podem contribuir de forma importante para otimizar a produção de um vasodilatador de vasos renais pré-glomerulares que estimulam a reabsorção de água nos rins (Ref.11).

2. Suas narinas possuem uma área superficial muito grande e possuem diversas estruturas espiraladas, com ambas características se unindo para forçar grande parte da água arrastada pela respiração a condensar dentro do nariz e ser reabsorvida pelo corpo, possibilitando também efetiva capacidade de detecção de fontes de água no ambiente. Aliás, recentemente, no periódico ACS Nano (Ref.), pesquisadores reportaram o desenvolvimento de um sensor de umidade de alta sensibilidade e performance inspirado na estrutura e propriedades da estrutura nasal desses animais.

3. Durante períodos de desidratação, o metabolismo do camelo se torna bastante baixo, quase metade do metabolismo de um gado vivendo no mesmo ambiente. Isso diminui a produção de calor, o que, consequentemente, impede que a temperatura corporal suba muito, reduzindo a eliminação de água via transpiração e respiração.

4. Diferente de outros mamíferos com bastante pelagem, as gotículas de suor geradas nas glândulas sudoríparas do camelo evaporam diretamente da pele, e não da ponta dos pelos. Isso otimiza bastante a dissipação de calor via evaporação.

5. Como já mencionado, um camelo de 500 kg consegue beber 150-200 litros de água, em poucos minutos e de uma só vez, após ficar sem bebê-la durante 5-7 dias. Ou seja, eles compensam o estado de desidratação bebendo acima de 30% da própria massa corporal de água. Mesmo um camelo bem alimentado consegue beber de 10 a 20 litros de água por minuto, e sem parar. Isso evita desperdícios e longas interrupções de jornada quando uma fonte abundante de água é encontrada, além de mais rápida recuperação do estado de desidratação.

6. Vasos sanguíneos faciais presentes nos dromedários funcionam como um preciso mecanismo de resfriamento do tecido cerebral durante momentos de estresse de calor. O sangue resfriado na cavidade nasal via perda de calor evaporativa é desviado para as cavidades ósseas (sinus) cerebrais através das veias nasal e angular. No sinus cavernoso, o sangue arterial na rede carótida é resfriado pelo sangue venoso frio antes de entrar no cérebro, levando a um substancial resfriamento - onde as variações de temperatura ficam na faixa de 33-45°C.

7. Os camelos conseguem suportar altas temperaturas corporais, acima dos 40°C. Isso faz com que pouca água seja necessária para resfriar o corpo, ou através do suor ou ofegando. Eles aproveitam as baixas temperaturas do deserto à noite para perderem o excesso de calor corporal. De 40,7°C, a temperatura corporal do camelo pode cair para pouco acima de 34°C durante a noite. Essa diferença de temperatura de 6,2°C em um espécime pesando cerca de 500 kg é equivalente a aproximadamente 2500 kcal, a qual, se fosse dissipada via transpiração (evaporação), iria requerer quase 5 litros de água, poupando o camelo dessa significativa perda. Somando-se a isso, as longas pernas desses animais mantêm seu corpo bem afastado das areias quentes, contribuindo para o resfriamento;

8. Mesmo perdendo água do corpo durante períodos muito grandes de seca, os camelos conseguem ainda caminhar 'tranquilamente' sob o forte Sol do deserto em condições de desidratação que ficam na faixa de incríveis 30-40%! Para se ter uma ideia, se um humano perde de 1-2% da massa corporal na forma de água, isso é suficiente para deflagrar uma forte sensação de sede; se a perda ultrapassa 5%, subsequentes graves prejuízos no organismo são observados; se a perda ultrapassa um pouco mais de 20%, a morte é quase certa! No geral, mamíferos não adaptados às regiões desérticas não conseguem suportar perdas de água em torno de 15%.

9. Por fim, os camelos conseguem consumir dietas tóxicas a outros mamíferos devido a caminhos metabólicos especiais e capacidades únicas de desintoxicação. Isso permite a exploração de uma ampla gama de plantas em busca de água e outros nutrientes em ambientes de extrema escassez alimentar.

            Além dessas incríveis habilidades de 'manipulação hídrica', a gordura na corcova dos camelos ainda serve para proteger do aquecimento solar, já que os lipídios em geral são péssimos condutores de calor. Os pelos mais grossos por cima das corcovas também servem para a proteção dos raios solares (alguns possuem verdadeiras jubas nessa região) e conservação da temperatura corporal. E olha que não foram listadas todas as adaptações do camelo. Sem sombra de dúvidas, o camelo é um dos mais bem adaptados representantes do Reino Animal.
         

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://www.djur.cob.lu.se/Djurartiklar/Kamel.html
  2. https://pag.confex.com/pag/xxiv/webprogram/Paper18655.html
  3. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/030096299290522R
  4. Mohandesan et al. (2017). Mitogenome Sequencing in the Genus Camelus Reveals Evidence for Purifying Selection and Long-term Divergence between Wild and Domestic Bactrian Camels. Scientific Reports, 7: 9970. https://doi.org/10.1038%2Fs41598-017-08995-8
  5. http://www.nma.gov.au/__data/assets/pdf_file/0017/19421/Extremes_desert_science.pdf
  6. https://www.environment.gov.au/system/files/pages/a117ced5-9a94-4586-afdb-1f333618e1e3/files/60-ind.pdf 
  7. http://www.iucnredlist.org/details/63543/0
  8. The ship of the desert. The dromedary camel (Camelus dromedarius), a domesticated animal species well adapted to extreme conditions of aridness and heat. Special Issue No.3, 1990: 231-236 
  9. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25333821
  10. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/1348454
  11. Rocha et al. (2021). Life in Deserts: The Genetic Basis of Mammalian Desert Adaptation. Trends in Ecology & Evolution, Volume 36, Issue 7, Pages 637-650. https://doi.org/10.1016/j.tree.2021.03.007
  12. Li et al. (2022). A Camel Nose-Inspired Highly Durable Neuromorphic Humidity Sensor with Water Source Locating Capability. ACS Nano, 16, 1, 1511–1522. https://doi.org/10.1021/acsnano.1c10004 
  13. Faye B. (2022). Is the camel conquering the world? Animal Frontiers : the Review Magazine of Animal Agriculture 12(4):8-16. https://doi.org/10.1093/af/vfac034 
  14. Ji et al. (2022). Review of genetic diversity in Bactrian camel (Camelus bactrianus). Animal Frontiers, Volume 12, Issue 4, Pages 20–29. https://doi.org/10.1093/af/vfac027