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Como hanseníase é transmitida?

Figura 1. Paciente com hanseníase.

          Um homem de 40 anos de idade apresentou-se à clínica dermatológica com histórico de um ano de inchaço indolor nos lóbulos das orelhas. O paciente também relatou congestão nasal e epistaxes (sangramentos nasais) intermitentes. 

           No exame médico, foram observados nódulos indolores, endurecidos e contíguos ao longo das hélices de ambas as orelhas (Fig.1A). Também foi constatado espessamento do nervo auricular magno (Fig.1B) bilateralmente e perda irregular de sensibilidade nas extremidades distais dos braços e pernas. 

          Análise laboratorial de fluido dérmico extraído do lóbulo de uma orelha do paciente - incluindo coloração com o método de Ziehl-Neelsen - revelou inúmeros bacilos do gênero Mycobacterium (Fig.1C).

          Com base nos achados, diagnóstico de hanseníase virchoviana foi feito.

          Nesse sentido, tratamento uniforme com poliquimioterapia foi prescrito por um curso de 12 meses, mas o paciente não compareceu às consultas de acompanhamento após 2 meses.

          O relato de caso foi reportado e descrito em 2022 no periódico New England Journal of Medicine (Ref.1).


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   HANSENÍASE: Patógenos e Patologia 

           A hanseníase - antigamente chamada de lepra (!) - é uma das doenças mais antigas no registro da história humana e ainda é prevalente na Ásia, África e na América do Sul. É uma patologia infecciosa e a principal causa de neuropatia causada por duas bactérias intracelulares obrigatórias e aeróbicas do gênero Mycobacterium: M. leprae e M. lepromatosis. A causa mais comum de hanseníase em humanos é a infecção com a espécie Mycobacterium leprae (Fig.2). Ambas as espécies produzem mudanças patológicas similares nos infectados, porém a M. lepromatosis está associada a quadros mais severos.

Figura 2. Bacilos da espécie Mycobacterium leprae, coloridos em roxo. As bactérias M. leprae e M. lepromatosis compartilham um ancestral comum há ~aproximadamente 13,9 milhões de anos e possuem tamanhos genômicos similares (~3,27 Mb). Durante a evolução, as duas espécies sofreram extensiva redução genômica, perdendo significativa parte do DNA. Cepas de M. leprae circulando na Índia, Brasil, Tailândia e EUA exibem dramática conservação de identidade genômica (99,995%). Ref.2-3

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(!) Aqui no Brasil, o termo "lepra" e derivados foram abolidos em documentos oficiais com a Lei N° 9.010, de 29 de março de 1995. Na literatura médica brasileira, o termo também não é empregado. A substituição pelo termo hanseníase visa combater o estigma social e histórico associado à doença.

> O nome "hanseníase" homenageia o médico norueguês Gerhard Armauer Hansen, que descobriu no final do século XIX a principal bactéria que causa a doença, a Mycobacterium leprae. Esse achado refutou a "teoria da hereditariedade" da doença e mudou a forma como a hanseníase era encarada.

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          As duas espécies de bactérias patogênicas são caracterizadas por patogenicidade mínima, com progressão tipicamente lenta da doença. A epiderme e os nervos periféricos são os alvos primários desses patógenos. As células de Schwann - cruciais para a transmissão de impulsos nervosos - e histiócitos dérmicos (macrófagos teciduais) são os dois principais tipos celulares infectados.

          A hanseníase causa uma ampla gama de lesões cutâneas, danos nos nervos, neuropatia periférica e anestesia, afetando principalmente a pele e os nervos periféricos, e resultando em lesões desfigurantes e danos progressivos aos nervos que podem levar à fraqueza ou atrofia muscular, perda óssea, amputações e cegueira. 

           Quando as bactérias infectam os nervos, estes se tornam inchados sob a pele. Isso pode fazer a área afetada perder o senso de tato e dor, aumentando o risco de acidentes, cortes e queimaduras devido à perda de sensação cutânea. Sem tratamento, a progressiva perda de tato pode levar a desfigurações severas dos membros devido às lesões acidentais.

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> A bactéria M. leprae possui crescimento lento (aproximadamente 12–14 dias) e pode sobreviver fora do corpo humano por 46 dias. Esse patógeno prefere crescer em temperaturas mais baixas (27-33°) e, portanto, afeta áreas predominantemente com temperaturas mais baixas, como a pele e extremidades do corpo (3). O período de incubação da hanseníase é longo e amplo, variando geralmente de 2 a 10 anos, mas podendo alcançar 20 ou mesmo 50 anos. Ref.4-5

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          A variabilidade nas manifestações clínicas da hanseníase está relacionada à capacidade do hospedeiro de desenvolver respostas imunes eficazes contra o patógeno bacteriano, dependendo da interação entre as respostas celulares e humorais. Aliás, existe uma resistência genética geral ao desenvolvimento da hanseníase em humanos, com ~95% das pessoas apresentando imunidade natural à doença (Ref.6). Para os indivíduos que desenvolvem a doença, a interação entre a imunidade celular e humoral contra o M. leprae resulta em um espectro imunológico e clínico da hanseníase. Dependendo da gravidade da doença, esta é classificada em três tipos principais:

- hanseníase tuberculoide

- hanseníase bordeline: média, tuberculoide e virchowiana 

- e hanseníase virchowiana.

          As formas tuberculoide e virchowiana estão nos polos extremos de severidade (Fig.3). A hanseníase tuberculoide é a menos severa e está ligada a uma forte imunidade celular, baixa imunidade humoral e lesões locais granulomatosas na pele. A forma virchowiana é a mais severa e é caracterizada por imunidade humoral robusta. A forma bordeline é instável e pode tender para as formas tuberculoide ou virchowiana ou permanecer no meio termo (Fig.4). No contexto de infecção com a espécie M. leprae, o sistema imune adaptativo agrava o dano em nervos e define o tipo de hanseníase (Ref.7). 

Figura 3. Em (A), hanseníase tuberculoide: lesão com uma única placa estável, sem pelos e com bordas bem definidas. Em (B), hanseníase virchowiana: lesão com espessamento difuso, numerosos nódulos discretos e confluentes. Ref.4

 

Figura 4. Hanseníase tuberculoide (a). Mácula hipopigmentada bem delimitada com sensibilidade reduzida e perda de cabelo. Hanseníase tuberculoide borderline (b,c). Lesão anular hipopigmentada anestésica bem definida no antebraço (b) e na parte superior das costas (c) com borda infiltrada. Hanseníase borderline (d). Lesão anular com borda irregular e centro perfurado hiperpigmentado. O nervo superficial aumentado na proximidade da lesão está marcado (seta). Hanseníase virchowiana  borderline (e,f). Múltiplas lesões anulares hipopigmentadas anestésicas no pescoço e na parte superior das costas (e) e no tórax e abdômen com repigmentação central (f). Hanseníase virchowiana (g,h,i). Orelhas infiltradas apresentando múltiplos nódulos (g), espessamento difuso da pele com madarose (perda de pelos nas sobrancelhas) (h) e úlceras crônicas (i). Ref.6

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> Em 1982, a Organização Mundial de Saúde (OMS) desenvolveu um sistema de classificação simplificado - para propósitos de tratamento - no qual os pacientes com hanseníase são classificados em casos paucibacilares (PB) e multibacilares (MB): 5 ou menos lesões são classificadas como PB e 6 ou mais lesões são classificadas como MB. Porém, esse sistema é muito limitado e pode levar a uma considerável taxa de erros no diagnóstico.

> Sem tratamento, a hanseníase pode afetar diretamente o tecido ósseo em algumas partes do corpo, principalmente através de invasão bacilar nos ossos faciais. Por exemplo, lesões severas em pacientes com baixa resistência ao patógeno podem incluir mudanças na área rinomaxilar (ex.: atrofia da espinha nasal anterior). Ref.8

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           A lepra é uma doença muito antiga, descrita em registros escritos desde pelo menos 600 a.C. (Ref.6). Vestígios osteo-arqueológicos apontam a presença da hanseníase na humanidade desde pelo menos 1500-3500 a.C. (Ref.6,9). Estudos moleculares têm apontado que a doença se espalhou na Eurásia seguindo as rotas migratórias, guerras, campanas de colonização e rotas comerciais - como a Rota da Seda, ligando a Europa à China. É ainda incerta a origem da doença em humanos: tradicionalmente está associada com antigos grupos humanos que migraram para fora da África Oriental, mas evidências genéticas nos últimos anos têm apontada possível origem na Eurásia, durante a transição do Neolítico há ~7 mil anos (Ref.6). Durante a Idade Média, a hanseníase - causada pela espécie M. leprae - era endêmica na Europa e subsequentemente foi introduzida na África Ocidental e na América através de exploradores.

          Nesse último ponto, é importante ressaltar que evidência de DNA antigo mais recente aponta que a hanseníase afeta humanos que habitam a América do Sul há pelo menos 4 mil anos (Ref.10). No caso, infecção causada pela bactéria M. lepromatosis, identificada em duas múmias de indivíduos adultos do sexo masculino, descobertas no Chile. Isso sugere que a doença em si não foi uma novidade trazida pelos colonizadores europeus como historicamente argumentado. Um novo patógeno causador da doença, sim, teria sido introduzido pelos colonizadores: M. leprae.


   Estigma da Doença

          Apesar de ser curável, a hanseníase continua sendo uma significativa preocupação em várias regiões do mundo devido ao estigma que dificulta a busca dos pacientes por tratamento médico adequado, levando ao aumento de risco para o desenvolvimento de deficiências físicas.

          Desde a Antiguidade, a doença têm sido comumente associada a punições divinas, impureza e imoralidade. Ao longo da história, os afetados eram frequentemente forçados ao isolamento social e essa era uma prática amplamente normalizada. Referência à hanseníase é encontrada na Bíblia, particularmente no Velho Testamento, com a palavra hebraica zaraath - um termo que eventualmente foi traduzido do hebraico para o Grego como "lepra" no Novo Testamento (Ref.9). As terríveis descrições bíblicas das consequências da doença são responsáveis por grande parte do estigma associado à hanseníase que ainda persiste nos dias atuais.

          A hanseníase se tornou muito prevalente na Europa Medieval, particularmente entre 1000 d.C. e 1400 d.C, com a doença alcançando níveis pandêmicos após ser introduzida por aqueles retornando das Cruzadas (Ref.11). No século XII, os leprosários se tornaram comuns na Europa: hospitais ou "colônias" onde as pessoas afetadas pela doença eram tratadas e forçadas a viver em isolamento, sofrendo profunda exclusão social.

          O estigma da hanseníase pode ser baseado na moralidade percebida dos infectados, em crenças culturais e religiosas, no medo da transmissão e na associação com pessoas consideradas "inferiores".


   Modo de Transmissão

          Em meados da década de 1980, o número de casos de hanseníase registrados anualmente era em torno de 5 milhões. Hoje, ~200 mil novos casos são detectados anualmente. Essa dramática redução é amplamente atribuída à massiva implementação da terapia poliquimioterapia ao redor do mundo, a qual alcançou mais de 18 milhões de indivíduos ao longo das últimas quatro décadas (Ref.6). Além disso, a vacina do BCG, contra o bacilo da tuberculose e derivada da bactéria Mycobacterium bovis, também parece ter contribuído nesse sentido (imunidade cruzada).

          Porém, a hanseníase ainda ocorre em mais de 120 países, a maioria em regiões de renda baixa ou média (Fig.5). Em 2023, Brasil, Índia e Indonésia reportaram cada um mais de 10 mil novos casos, juntos representando quase 80% de todos os novos casos reportados ao redor do mundo (Ref.6). Os fatores que contribuem para a persistência da hanseníase em áreas endêmicas incluem pobreza, acesso limitado a serviços de saúde, infraestrutura inadequada de saúde pública, falta de conscientização e o estigma e a discriminação associados à doença. Além disso, o longo período de incubação e a complexa interação dos patógenos com o sistema imune humano são fatores também contribuintes.

 

Figura 5. Em 2023, aproximadamente 183 mil novos casos de hanseníase foram documentados pela OMS em 184 de 221 países e territórios, representando um aumento de ~5% em comparação com 2022. No Brasil, entre 2014 e 2019, mais de 215 mil casos foram diagnosticados. A hanseníase é uma uma doença endêmica no território brasileiro e um significativo problema de saúde pública. Mais de 90% dos casos de infecção na América são restritos ao Brasil. Ref.12

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> Atualmente, a hanseníase é considerada uma doença tropical negligenciada. Estima-se que 3-4 milhões de pessoas convivem hoje com a doença ao redor do mundo. Um dos objetivos da OMS é reduzir em 70% os novos casos da doença até 2030. Melhorar a capacidade de diagnósticos é essencial para esse fim. Ref.13, 27

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          Embora não seja considerada uma doença altamente infecciosa, o modo exato de transmissão da hanseníase é ainda pouco entendido. Evidências diversas apontam que o modo primário de transmissão é através de gotículas respiratórias contaminadas. Indivíduos com hanseníase sem tratamento são capazes de liberar até 107 bacilos por dia a partir de secreções nasais. Mas esse aparente modo dominante de transmissão geralmente requer períodos prolongados de contato próximo para que o patógeno seja efetivamente transmitido entre pessoas. Como já mencionado, fatores genéticos parecem atuar de forma crítica para uma transmissão de sucesso, já que ~95% da população é naturalmente imune à doença.

          Contatos que dividem a mesma moradia com pacientes infectados e sem tratamento possuem um risco 5-10 vezes maior de desenvolver hanseníase do que a população em geral.

          Indivíduos mais jovens estão sob maior risco de adquirir e transmitir a infecção sob exposição, com a suscetibilidade sendo influenciada pelo status socieconômico, imune e nutricional do indivíduo.

          Aqui no Brasil, historicamente, o estado do Pará e a região Amazônica no geral têm registrado uma das maiores taxas de hanseníase (Ref.14). As razões para isso estão bem documentadas e incluem viver em uma área hiperendêmica, baixo índice de desenvolvimento humano (IDH, que combina expectativa de vida ao nascer, renda per capita e nível de escolaridade), conviver com um infectado sem tratamento ou a menos de 200 metros de um infectado, alta densidade domiciliar (mais de 2 pessoas por quarto), estado nutricional precário e falta de acesso a serviços de saúde.

          Um outro fator que pode estar contribuindo para as altas taxas de hanseníase no Pará são os tatus da espécie Dasypus novemcinctus - popularmente conhecida como tatu-galinha (Fig.6). Esses animais são reservatórios naturais da bactéria M. leprae e a população humana na região mantém contato direto e frequente com os tatus. Pessoas que caçam, matam, processam ou comem carne de tatu parecem estar sob maior risco de infecção e mais de 60% dos tatus na parte oeste do Pará testam positivo para a M. leprae (Ref.14). Nas Américas, tatus selvagens do gênero Dasypus são reservatórios naturais de M. leprae (Ref.15) e respondem de forma similar à infecção com essa bactéria comparado com humanos, incluindo sintomas e espectro de severidade da doença. A maior parte dos tatus são altamente suscetíveis ao patógeno e geralmente morrem dentro de 1 ou 2 anos seguindo a infecção (Ref.15).

Figura 6. Interessante apontar que o fígado de tatus-galinhas infectados com a bactéria M. leprae exibe robusto crescimento. A bactéria infecta de forma extensiva o fígado desses animais, fazendo o órgão ficar ~35% maior em comparação com tatus sem infecção. E ainda mais curioso: a hipertrofia do fígado ocorre sem efeitos adversos, incluindo fibrose e tumorigênese. As células hepáticas infectadas se comportam de forma similar a células-tronco. E o fenômeno talvez seja um mecanismo adaptativo da bactéria: quanto maior o tecido hepático, mais células para infectar e proliferar. Ref.16

           Nesse último ponto, certos mamíferos selvagens podem servir como reservatório natural de bactérias M. leprae e M. lepromatosis, servindo como potencial fonte de infecção para humanos. 

          Na Inglaterra Medieval, existe evidência genômica de que a hanseníase era disseminada entre esquilos-vermelhos (Sciurus vulgaris) e humanos (Ref.17). Na Europa da Idade Média, a pelagem de esquilos era amplamente comercializada e usada na produção de roupas. Além disso, esses roedores eram populares como pets, sendo capturados em estado selvagem para esse fim. 

Figura 7. Esquilos-vermelhos parecem ter contribuído para a transmissão da hanseníase na Europa Medieval.

          A bactéria M. leprae tem sido detectada também em várias espécies de primatas não-humanos e a doença [hanseníase] ocorre em chimpanzés no ambiente natural. Roedores selvagens das espécies Necromys lasiurus e Proechimys roberti parecem também servir como reservatórios naturais dessa bactéria (Ref.18). Isso sugere que o espectro de mamíferos suscetíveis à infecção pela M. leprae pode estar sendo subestimado.

           Finalmente, carrapatos do gênero Amblyomma - que comumente infestam humanos e tatus no sul dos EUA - podem ser infectados e aparentemente sustentar transmissão vertical da bactéria M. leprae entre vertebrados (Ref.19). Isso sugere que carrapatos podem representar um vetor importante de transmissão da doença para humanos. E apesar da sobrevivência da M. leprae fora de células ser curta, essa bactéria está presente em solos e na água e permanece viável e transmissível após ser hospedada por amebas (Ref.20).

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> A micobactéria Mycobacterium leprae não pode ser cultivada in vitro, possivelmente devido à extensiva perda de genes e evolução redutiva. Isso dificulta o esclarecimento de como exatamente esse patógeno é transmitido. Ref.21

> A transmissão de hanseníase entre pessoas mediada por tosse e excreções nasais a partir de indivíduos sintomáticos - seguindo contato próximo e prolongado - é tradicionalmente pensada ser o único modo realmente relevante de transmissibilidade, mas evidências acumuladas nos últimos anos têm desafiado essa hipótese.

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            Aliás, falando em transmissão, é relevante citar o progressivo declínio e eventual desaparecimento da hanseníase na Europa, onde a doença hoje é essencialmente limitada a casos importados (Ref.22).

           Durante a Idade Média, houve um declínio drástico na incidência de lepra nas populações europeias. As razões exatas para esse declínio permanecem indeterminadas, embora existam várias hipóteses que sugerem uma causa multifatorial. Entre os possíveis fatores causais, temos a eliminação gradual das formas multibacilares da lepra em favor da lepra paucibacilar; a imunidade cruzada protetora entre o principal agente causador da lepra (M. leprae) e a bactéria M. tuberculosis; e os efeitos concorrentes na mortalidade atribuídos à coinfecção por hanseníase, sífilis, tuberculose e/ou outros patógenos epidêmicos - acelerando a eliminação de indivíduos infectados. Outra hipótese relaciona o declínio da hanseníase a mudanças climáticas, como o "Período Quente Medieval" (950-1250 d.C.) seguido pela "Pequena Idade do Gelo" (1275-1455 d.C.). 

           Independentemente das causas subjacentes, é geralmente aceito que a prevalência da lepra na Europa atingiu o pico por volta dos séculos XI a XIII, quando muitos leprosários foram estabelecidos, declinou gradualmente durante os séculos XIV e XV, e praticamente desapareceu no século XVIII, embora um pequeno número de casos autóctones (nativos) tenha ocorrido no sul da Europa no século XXI (Ref.23). A notável melhoria das condições de vida, sanitárias e de nutrição na Europa também pode ter contribuído para esse declínio.

          De fato, a hanseníase é ainda uma doença muito complexa de ser erradicada no mundo por que está fortemente relacionada à pobreza, deficiências no sistema de saúde e falhas no sistema educacional.


   Tratamento da Hanseníase

          A hanseníase é uma doença curável e o tratamento é baseado em uma combinação de antibióticos. Esse tratamento geralmente dura até 1 ano. A doença pode ser curada se a terapia prescrita é completada. Relapsos podem ocorrer em até 10% dos pacientes e são comumente associados com falha terapêutica devido a tratamento incompleto, classificação errônea da forma de hanseníase e existência de resistência bacteriana (Ref.24).

          O tratamento atualmente recomendado consiste em três medicamentos (dapsona, rifampicina e clofazimina) e é conhecido como poliquimioterapia (PQT). O mesmo regime, com duração de 6 meses para os casos de hanseníase paucibacilar e 12 meses para os casos de hanseníase multibacilar, é recomendado pelas entidades de saúde. A PQT elimina o patógeno e cura o paciente. O diagnóstico precoce e o tratamento imediato podem ajudar a prevenir sequelas. A OMS fornece a PQT gratuitamente ao redor do mundo.  

Figura 7. O tratamento para a hanseníase depende da forma da doença (classificação da OMS). Na hanseníase paucibacilar, o tratamento dura seis meses e usa dois antibióticos: rifampicina e dapsona. Na hanseníase multibacilar, o tratamento dura 12 meses e três antibióticos são usados: rifampicina, dapsona e clofazimina. O tratamento deve ser feito sob supervisão e orientação médica e é gratuito nas unidades de saúde. (Fonte: Cosemsmt.org)

           Porém, detecção de casos e o tratamento dos infectados com a terapia PQT são insuficientes para interromper a transmissão. A OMS recomenda o rastreamento de contatos (domiciliares, de vizinhança e sociais), acompanhado da administração de uma dose única de rifampicina como profilaxia pós-exposição (SDR-PEP). A SDR-PEP reduz o risco de transmissão em até 57% entre os contatos dos pacientes com hanseníase (Ref.25).

           Relevante apontar que a PQT pode resultar em efeitos colaterais severos  em alguns pacientes- especialmente relacionados ao fármaco dapsona - e já existe evidência de evolução de resistência bacteriana contra os antibióticos dessa multiterapia. Nesse sentido, novas terapias e fármacos têm sido explorados para um tratamento mais efetivo, seguro e rápido.

           Em um estudo clínico de 2024, publicado no periódico New England Journal of Medicine (Ref.26), pesquisadores mostraram que monoterapia com o fármaco bedaquilina é capaz de eliminar a bactéria M. leprae do corpo de pacientes com hanseníase multibacilar após 4 semanas e melhorar a aparência das lesões cutâneas após 7 semanas. Um estudo clínico mais recente reforçou a eficácia da bedaquilina como monoterapia contra a hanseníase e não encontrou evidência de relapso nos pacientes tratados após 12 meses. O medicamento atua inibindo a enzima ATP sintase de micobactérias.

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> Prevalência inferior a 1 caso a cada 10 mil pessoas é considerada eliminação da hanseníase como um problema de saúde pública em uma região. Ref.27

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   Mitos sobre a Hanseníase

          "A hanseníase é muito contagiosa."

          A hanseníase não se espalha facilmente de pessoa para pessoa. Não é possível contraí-la por contato casual, como apertar as mãos, sentar-se ao lado, abraçar ou conversar com alguém que tenha a doença. Após início de tratamento adequado, os pacientes não mais são capazes de transmitir a doença. 

          "Não há cura para a hanseníase."

          A hanseníase tem cura. Pessoas em tratamento para hanseníase podem levar uma vida normal com suas famílias e amigos e podem continuar a frequentar o trabalho ou a escola.

          "A hanseníase faz com que os dedos das mãos e dos pés caiam."

          Os dedos das mãos e dos pés não "caem" simplesmente por causa da hanseníase. A bactéria que causa a doença ataca os nervos dos dedos das mãos e dos pés, causando dormência. Lesões como queimaduras, úlceras e cortes em partes dormentes podem passar despercebidas, o que pode levar a danos permanentes ou infecções, causando possível perda de dedos. Às vezes, os danos nos nervos enfraquecem tanto os músculos dos dedos das mãos e dos pés que os músculos e os ossos começam a se desintegrar e a serem reabsorvidos pelo corpo.


Leitura recomendada


REFERÊNCIAS

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