YouTube

Artigos Recentes

Qual é a espécie de flor com aparência de vulva?

Figura 1. Flores da espécie Hydnora africana.

 
           O gênero Hydnora é comumente referido como "uma das mais estranhas plantas do mundo". Na verdade, esse clado engloba 8 espécies descritas de plantas angiospermas [que produzem flores] parasitas, as quais ocorrem nas regiões semiáridas da África, Madagascar e sul da Arábia (Fig.2) (!). Representando uma das mais antigas ramificações evolutivas de plantas parasíticas entre as angiospermas, essas plantas são bastante atípicas por não possuírem folhas e não realizarem fotossíntese - holoparasitas, ou seja, dependem inteiramente da planta hospedeira para obterem seus nutrientes. Outra característica atípica é que essa planta só emerge na superfície durante o processo de floração, e pode inclusive danificar infraestruturas ao emergir através de pavimentos. 


Figura 2. Atualmente, 8 espécies do gênero Hydnora são conhecidas e descritas pela ciência (ilustrações não estão em escala e representam 7 das 8 espécies): (a) Hydnora arabica; (b) H. visseri; (c) H. abyssinica; (d) H. esculenta; (e) H. africana; (f) H. triceps; (g) H. johannis. Cientistas acreditam que outras espécies estão ainda para serem descobertas e descritas; aliás, a H. arabica só foi descrita recentemente (2018) na Península Árabe. Referência: Thorogood, C., 2019

Figura 3. Flores das espécies (A) Hydnora longicollis, (B) H. visseri, e (C-D) H. triceps. A última espécie é uma das duas únicas espécies de angiospermas conhecidas nas quais a floração ocorre abaixo do solo. Referência: Jost et al., 2022

-----------

(!) Um recente estudo publicado ainda como preprint (sem revisão por pares) na plataforma bioRxiv (Ref.4) realizou uma robusta e compreensiva revisão taxonômica do gênero Hydnora, aumentando o número de espécies conhecidas de 8 para 10, retornando duas espécies previamente descritas como uma só (H. johannisH. solmsiana e H. hanningtonii) e descrevendo uma nova espécie (H. bolinii). 

------------

          A extrema redução de características morfológicas na Hydnora - a qual é uma das poucas plantas com ausência de qualquer traço de folhas - dificultou por muito tempo o esclarecimento da origem evolucionária desse clado. Inicialmente, essas plantas (família Hydnoraceae) foram colocadas junto com o clado Rafflesia - uma linhagem famosa por exibir as maiores flores conhecidas no mundo (1). Análises genéticas nas últimas décadas revelaram que a Hydnora é próximo-relacionada à família Aristolochiaceae, na ordem Piperales, ou seja, uma ligação evolutiva próxima com as primeiras linhagens que divergiram entre as plantas com flores (angiospermas basais). Com exceção das plantas parasitas gimnospérmicas do gênero Parasitaxus, e plantas parasitas angiospermas do gênero Cassytha (família Lauraceae), a família Hydnoracea - compreendendo dois gêneros (Hydnora e Prosopanche) (2) - é o mais basal clado de plantas parasíticas conhecidas pela ciência (Ref.1).

(1) Leitura recomendada: Qual é a maior flor do mundo?

           As espécies de Hydnora parasitam as raízes de plantas das famílias Euphorbiaceae, Fabaceae e Burseraceae, e vivem a maior parte do ciclo de vida no ambiente subterrâneo. Em determinados períodos do ano, as flores dessas plantas emergem da superfície do solo, geralmente adjacentes ao ou entre os ramos do hospedeiro. Obstáculos como pedras ou outros detritos são levantados pelo botão emergente do solo. Quando a flor se abre, um odor pungente e cadavérico é liberado, sendo detectável a distâncias de até 10 metros. Esse odor têm origem de osmóforos no interior da flor e é constituído de uma mistura de compostos voláteis de enxofre como dimetil dissulfeto e dimetil trissulfeto. Esses osmóforos são inicialmente brancos (abertura da flor), mas horas depois se tornam cinzas. 

Figura 3. Apenas uma porção da flor da espécie Hydnora africana emerge na superfície do solo. (A) A flor na base da sua planta hospedeira (Euphorbia gregaria) - barra de escala = 1,5 cm. (B) A estrutura da flor: osmóforos (os) na superfície interna de cada tepal; o anel anteral fusionado (an) formando a base da câmara masculina; o estigma trilobulado (st) formando um revestimento na base da câmara feminina acima do ovário (ov) - barra de escala = 2,5 cm. Referência: Roger et al., 2009

          O odor fétido - e possivelmente uma leve produção de calor (3) - atrai polinizadores (como besouros e moscas), aprisionando-os temporariamente em uma câmara floral. A câmara floral da Hydnora compreende duas partes: um compartimento masculino e um compartimento feminino, conectados por um orifício central que permite a passagem dos visitantes florais entre as duas. Para sair da flor, o inseto "aprisionado" precisa passar pelas duas câmaras, forçando a polinização dos órgãos sexuais femininos com o pólen produzido pelos órgãos sexuais masculinos da planta (Fig.4).

Figura 4. (A) Três câmaras masculinas arranjadas para mostrar o mecanismo de "aprisionamento-e-liberação" da Hydmora africana. À esquerda, a superfície interna da câmara é lisa e rosa-alaranjada (dias 1-3 pós floração); nesse estágio, besouros da espécie Dermestes maculatus e outros insetos atraídos não podem escapar. No centro, a flor começa a liberar pólen, e a superfície interna da câmara começa a escurecer e se tornar enrugada; nesse estágio, besouros começam a escapar. À direita, a flor se encontra três dias após a liberação de pólen, e a parede da câmara está seca e texturada. (Barra de escala = 1 cm). (B) Vista inferior dentro da câmara masculina, com o anel anteral no centro, pouco antes da liberação de pólen. Cinco D. maculaius marcados podem ser observados. (Barra de escala = 1 cm). (C) Imagem de SEM (micrografia de escaneamento eletrônico) de partículas de pólen da H. africana sobre os densos pelos localizados sobre os élitros do D. maculaius. (Barra de escala = 20 micrômetros). Um besouro D. maculaius, o visitante floral primário e provável polinizador da H. africana, carregado de pólen sobre todo o corpo após sair da câmara masculina. (Barra de escala = 2,5 mm). Referência: Roger et al., 2009

-----------

(2) Existe evidência de que as flores de Hydnora exibem uma termogênese excepcionalmente baixa. Nesse sentido, pouco benefício direto seria obtido por besouros polinizadores, mas o leve calor extra pode estar associado com a produção de odores e possivelmente desenvolvimento da flor (Ref.6).

----------

          Geralmente, "estruturas de isca" são exibidas nessas plantas - como as espécies H. africana e H. visseri -, no caso, estruturas fétidas ao longo das margens do lobo perianto, sendo especialmente atrativas para besouros. Enquanto isso, a peculiar espécie H. triceps geralmente floresce logo abaixo da superfície, onde insetos são aparentemente atraídos através de rachaduras no solo. Após efetiva polinização, o ovário se desenvolve em um grande fruto contendo milhares de minúsculas sementes pretas. O fruto é consumido por chacais (canídeos dos gêneros Canis e Lupulella) e outros pequenos mamíferos, os quais estão atuam disseminando as sementes que potencialmente irão germinar e parasitar outras plantas.


Figura 5. (a) Flores de Hydnora visseri; (b) "estruturas de isca" da H. visseri; (c) flores de H. triceps; (d) secção transversal da flor de H. triceps; (e) visitantes florais (potenciais polinizadores atraídos) na câmara floral da H. visseri; (f) tecido parasita (P) da H. triceps anexado à raiz (H) de uma planta hospedeira da espécie Euphorbia dregeana. Thorogood, C., 2019

           Em comunidades locais Africanas e na Península Árabe, flores, frutos e rizomas de Hydnora são usados como medicina tradicional e também para alimentação (Ref.7).


   (!) GÊNERO PROSOPANCHE

             Pertencente também à família Hydnoraceae, o gênero Prosopanche engloba pelo menos sete espécies conhecidas e descritas de plantas parasitas nativas da América do Sul e da Costa Rica (Fig.6). Todas as sete espécies são corpos vegetativos altamente reduzidos e que perderam completamente as folhas e raízes funcionais (Fig.7). Cada indivíduo consiste de uma rede ramificada de rizomas vegetativos alinhados com fileiras de tubérculos. Esses tubérculos podem ou permanecer dormentes, desenvolver em flores substancialmente "carnudas" que saem para a superfície do solo ou formar uma conexão de haustório sobre contato com uma raiz hospedeira. Algumas dessas flores são colhidas e vendidas por causa dos seus frutos comestíveis, e os rizomas são usados em medicinas tradicionais.


Figura 6. O gênero Prosopanche compreende sete espécies atualmente descritas pela ciência:  (a) P. panguanensis, (b) P. americana, (c) P. costaricensis, (d) P. cocuccii, (e) P. bonacinae, (f) P. caatingicola e (g) P. demogorgoni. Hatt et al., 2022

Figura 7. Morfologia do gênero Prosopanche. (a) Flor aberta da P. americana; (b) flor aberta da P. demogorgoni; (c) sistema subterrâneo de rizomas da P. americana; (d) rizoma da P. americana e raízes da planta hospedeira anexadas ao parasita; e (e) diferentes fazes de desenvolvimento, do botão até o fruto (direita para a esquerda). Referência: Hatt et al., 2022


Figura 8. Flores das espécies (A) Prosopanche americana e (B) Prosopanche bonacinae. Referência: Jost et al., 2022

           As plantas do gênero Prosopanche são geralmente menores em estatura do que aquelas do gênero Hydnora, e diferem por terem apêndices inter-estaminais e anteras com múltiplas tecas fusionadas. Ambos os gêneros parecem ter divergido há pelo menos ~55 milhões de anos, mas o ancestral comum direto pode ser tão antigo quanto a separação entre os continentes Africano e Sul-Americano (Ref.1, 3). As duas espécies mais disseminadas e observadas (P. americana e P. bonacinae) ocorrem ao longo da maior parte da Argentina, com escassos registros na Bolívia e no Paraguai (Fig.9). As espécies P. cocuccii e P. demogorgoni são escassamente encontradas na região costeira da Mata Atlântica no sul do Brasil. Uma população isolada da espécie P. caatingicola é encontrada no nordeste Brasileiro. A espécie P. panguanensis é encontrada nas florestas úmidas da região central do Peru, e a P. costaricensis é reportada somente nas florestas úmidas da Costa Rica.


Figura 9. Distribuição global do gênero Prosopanche, relativa às espécies até o momento descritas. Referência: Hatt et al., 2022  

            Ao contrário do gênero Hydnora, as flores de Prosopanche emitem uma flagrância agradável similar aquele de frutas muito maduras, e são termogênicas (aquecem até ~8°C acima da temperatura ambiente) no período matinal. Esse aquecimento extra e aroma atraem certos besouros que são responsáveis pela polinização dessas plantas. Assim como o gênero Hydnora, as flores de Prosopanche aprisionam os polinizadores: os besouros visitantes caem na câmara estigmática durante a fase feminina e são subsequentemente liberados no começo da fase estaminal, quando as paredes escorregadias internas da câmara são modificadas.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS 

  1. Thorogood, C. (2019). "Hydnora: The strangest plant in the world?". Plants People Planet, Volume 1, Issue 1, Pages 5-7. https://doi.org/10.1002/ppp3.9
  2. Bolin et al. (2018). Hydnora arabica (Aristolochiaceae), a new species from the Arabian Peninsula and a key to Hydnora. Phytotaxa, 338(1), 99-108.
  3. Jost et al. (2022). Structural Plastome Evolution in Holoparasitic Hydnoraceae with Special Focus on Inverted and Direct Repeats, Genome Biology and Evolution, Volume 14, Issue 6, evac077. https://doi.org/10.1093/gbe/evac077
  4. Hatt et al. (2022). A taxonomic revision of the genus Hydnora (Hydnoraceae). bioRxiv [Preprint]. https://doi.org/10.1101/2022.10.13.512068
  5. Bolin et al. (2009). Pollination Biology of Hydnora africana Thunb. (Hydnoraceae) in Namibia: Brood‐Site Mimicry with Insect Imprisonment. International Journal of Plant Sciences, 170(2), 157–163. https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/593047
  6. Roger et al. (2009). Floral thermogenesis of three species of Hydnora (Hydnoraceae) in Africa, Annals of Botany, Volume 104, Issue 5, Pages 823–832. https://doi.org/10.1093/aob/mcp168
  7. Mwachala et al. (2021). Understanding the Ethnobotany, Chemistry, Pharmacology, and Distribution of Genus Hydnora (Aristolochiaceae). Plants, 10(3), 494. https://doi.org/10.3390/plants10030494
  8. Hatt et al. (2022). Prosopanche: A remarkable genus of parasitic plants. Plants People Planet, Volume 5, Issue 2, Pages 163-168. https://doi.org/10.1002/ppp3.10340