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Afinal, lentes de óculos com filtro para a luz azul ajudam a melhorar o sono?

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          Durante a atual pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), o uso de aparelhos eletrônicos com telas - smartphones, notebook, televisão, etc. - aumentou dramaticamente, especialmente devido ao aumento brusco do Home Office, das recomendações de evitar sair desnecessariamente de casa e dos eventuais lockdowns (quarentena total). Soma-se a isso à crescente disseminação desses aparelhos entre a população, principalmente smartphones. Nesse cenário, as pessoas ficam cada vez mais expostas à radiações eletromagnéticas (luz) de curtos comprimentos de onda na faixa do visível - em particular a luz azul. Essa exposição, no período da noite, pode desregular o ciclo circadiano normal e dificultar o processo de sono e piorar casos de insônia. 

          Para minimizar esse problema, uma alternativa está ficando cada vez mais popular: óculos com filtro para a luz azul. E estudos vêm acumulando evidências de que esses óculos podem realmente melhorar a noite de sono e a produtividade no trabalho dos seus usuários.


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   LUZ AZUL, CICLO CIRCADIANO E SONO

           Tecnologias modernas, como smartphones, LEDs e notebooks, são associadas com má qualidade de sono, especialmente quando usadas durante a noite. Existem dois principais motivos para essa associação. O primeiro é o efeito psicológico, com o estímulo de consumo e interatividade das redes sociais na cama e/ou próximo do horário de dormir atrasando o início do sono. O segundo é o efeito fisiológico, relacionado com a exposição à noite de luz artificial - aqui também englobando diodos emissores de luz (LEDs) em geral e lâmpadas fluorescentes compactas -, especialmente comprimentos de onda curta na faixa do visível, pensada de atrasar a fase circadiana ao suprimir a síntese habitual de melatonina, hormônio crucial para a iniciação do sono.

           Sono e estado despertado são regulados por dois distintos processos: um processo homeostático (Processo S) que aumenta a pressão para o sono seguindo um longo estado de despertar, e um processo circadiano (Processo C) que é regulado pelo sistema circadiano e requer exposição periódica luz-escuro para uma estável percepção interna da evolução temporal dia-noite. Especificamente, informação sobre a luz ambiental é recebida por fotorreceptores na retina e, via células retinais fotorreceptivas do gânglio de não-formação de imagens (ipRGC), diretamente transmitida para o núcleo supraquiasmático (SCN) no hipotálamo, o local do 'relógio metre' circadiano. O SCN, por sua vez, envia informação sobre a hora circadiana para, por exemplo, a glândula pineal onde a melatonina é secretada durante a noite, ou suprimida no caso de exposição à luz. 

          Portanto, o tempo de exposição à luz é crucial: exposição à luz diurna facilita o processo de despertar e de ficar alerta durante o início do dia, enquanto à noite, a ausência de luz facilita o sono.

          Devido à luz artificial e o advento de dispositivos com telas emissoras de luz, a ocorrência de luz durante a noite é frequentemente abundante, fazendo o sistema circadiano pensar que o horário é diurno. Parte da luz ambiente e quase todas as telas eletrônicas são ricas em luz visível de curto comprimento de onda (~460 nm), a qual se encontra no espectro visual do azul-verde. Importante, um tipo específico de células fotorreceptoras é particularmente sensitiva à luz na faixa de 446-477 nm e modula a ativação do SCN de tal forma que a secreção de melatonina se torna ativamente suprimida. Uma total supressão ou atraso na secreção de melatonina está associado com uma vontade reduzida de sono, estado despertado aumentado, atraso no início do sono e reduzida eficiência do sono.



           Nesse sentido, exposição em especial a comprimentos mais curtos de luz visível durante à noite pode atrasar a fase circadiana e desregular o sono, além de potencialmente aumentar o risco de problemas como disfunções metabólicas e mesmo câncer. Sob esse pressuposto, têm sido argumentando que uma restrição à exposição de luz artificial durante a noite - principalmente envolvendo comprimentos de onda curtos - pode ajudar a manter uma secreção habitual e normal de melatonina e, consequentemente, um sono saudável. Uma das formas propostas de alcançar essa restrição é através de óculos com filtros para a faixa de luz azul.

          Uma revisão sistemática publicada em 2018 no periódico Chronobiology International (Ref.2), de fato, encontrou evidência suportando que 2 horas de exposição à luz azul (~460 nm) no começo da noite suprime a produção de melatonina, com o máximo de supressão ocorrendo nos mais curtos comprimentos de onda relevantes do visível (424 nm, violeta) (!). A exposição da luz mostrou afetar a produção de melatonina ao anoitecer, durante a noite e na parte da manhã. Mesmo durante o sono, com os olhos fechados, a exposição à luz mostrou influenciar em alguma extensão o ciclo circadiano.


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(!) OBSERVAÇÃO: Um estudo publicado no final do ano passado no periódico Current Biology (Ref.3), analisando ratos, encontrou que, de fato, existe significativa influência de diferentes cores no ciclo circadiano desses mamíferos que provavelmente se estende para outros mamíferos com visão. Essa resposta cor-específica pode ter evoluído para contornar certos cenários naturais onde pistas dependentes apenas da intensidade luminosa podem ser enganosas (ex.: maior cobertura de nuvens no horário diurno tornando o ambiente mais escuro). No entanto, os pesquisadores encontraram que a faixa de cor amarela (565-590 nm) exerce os mais fortes efeitos no sistema circadiano dos ratos do que a cor azul (450-485 nm). É incerto se esses resultados são extensíveis para os humanos.

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    LENTES FILTRANTES DO AZUL

          Lentes de óculos com filtro de luz azul são lentes oftalmológicas que são projetadas para seletivamente atenuar a transmissão de radiação UV e comprimentos mais curtos na faixa do visível. Isso entra em contraste com lentes de óculos tradicionais, as quais não filtram a luz azul e fornecem variados graus intrínsecos de proteção contra o UV dependendo do material usado para as lentes. Frequentemente essas lentes contêm um cromóforo que reduz ou elimina a quantidade de luz azul que alcança os olhos. Também pode ser usado um revestimento nas superfícies posterior e anterior das lentes de material antirreflexo que seletivamente diminui a transmissão de uma porção do espectro de luz azul (geralmente na faixa de 415-455 nm).

          Por exemplo, óculos feitos com lentes de âmbar filtram 100% dos comprimentos de onda até 400 nm, e 89-99,9% dos comprimentos de onda entre 400 e 500 nm. Portanto, a maior parte do azul (450-485 nm) e boa parte do verde (520-560 nm) são efetivamente restritos.

           Esses óculos são projetados para serem usados apenas 1-3 horas antes de dormir, e não para o restante do dia, onde o filtro de certos comprimentos de onda do ambiente podem tornar o usuário menos alerta. 


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   EVIDÊNCIAS CLÍNICAS

           Uma revisão sistemática e meta-análise publicada em junho deste ano, no periódico Sleep Advances (Ref.4), encontrou evidências conflitantes mas, no geral, positivas, de que o uso de lentes com filtro para a luz azul podem melhorar a qualidade do sono, particularmente em indivíduos com insônia, desordem bipolar, síndrome de atraso do sono, ou transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Segundo os autores, mais estudos clínicos controlados são necessários para mais firmes conclusões.          

          Em um estudo clínico randomizado publicado em maio de 2019 no periódico Endocrine Abstracts (Ref.5), pesquisadores analisaram 30 usuários adolescentes frequentes de aparelhos eletrônicos com tela (≥ 4 horas/dia) e 25 usuários adolescentes infrequentes (≤ 1 hora/dia) durante 5 semanas, todos com idades de 12 a 17 anos. Tanto intervenção com óculos de filtro azul quanto restrição do uso de aparelhos com telas ao anoitecer resultaram em um significativo adiantamento da hora de dormir nos usuários frequentes comparável com o horário de sono observado nos usuários infrequentes.

          Um estudo publicado no periódico Parkinson's Disease (Ref.6) em março de 2019, analisando o reporte de 58 pacientes com Parkinson após 1 semana de uso de óculos com filtro azul, encontrou uma aparente e significativa melhora no sono.

           Em novembro de 2019, um estudo publicado no periódico Chronobiology Internacional (Ref.7), analisando 30 pacientes com idade médica de 48 anos sob terapia cognitiva comportamental, encontrou que, comparado com um placebo (lentes sem filtro), o uso de óculos com filtro azul 90 minutos antes do momento de ir dormir melhorou a qualidade do sono.

           Um estudo clínico duplo-cego, randomizado, placebo-controlado (padrão-ouro) publicado em abril deste ano no periódico Bipolar Disorders (Ref.8), englobando 43 pacientes com transtorno bipolar e insônia, encontrou benefícios dos óculos com filtro na melhora do ciclo circadiano, apesar de não ter encontrado melhora específica na qualidade do sono.

          Mais recentemente, em um estudo randomizado publicado no periódico Journal of Applied Psychology (Ref.9), pesquisadores coletaram dados de 63 gerentes de companhia (519 observações diárias) e de 67 representantes de call center (529 observações diárias) em escritórios baseados no Brasil de uma firma financeira multinacional Norte-Americana, e encontraram que o uso de óculos de filtro azul melhorou a qualidade de sono, engajamento no trabalho e comportamento organizacional, especialmente naqueles funcionários que trabalham à noite. No estudo, os participantes foram aleatoriamente escolhidos para usarem ou óculos com filtro azul ou óculos sem filtro (placebo). 


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ATENÇÃO: Existem alegações de que os óculos de filtro azul podem ser fotoprotetores contra supostos efeitos de fototoxicidade associados à exposição retinal/macular de luz visível de curtos comprimentos de onda, podendo ajudar a prevenir ou atrasar quadros de degeneração macular. No entanto, não existe evidência de suporte para o uso desses óculos visando a proteção da saúde e da função maculares (Ref.10).

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   CONCLUSÃO

           Apesar da evidência ainda ser limitada, existe suporte teórico e resultados positivos de vários estudos nos últimos anos sugerindo que o uso de óculos com filtro azul pode, de fato, servir como uma intervenção terapêutica válida de ser testada para melhorar a noite de sono e ajudar os indivíduos a dormirem mais cedo, especialmente aqueles com transtornos diversos, como Parkison e insônia. Mas é importante reforçar que não existe mínima evidência de suporte de que esses óculos ajudem a diminuir danos nas estruturas oculares (ex.: macula). Além disso, evidências recentes sugerem que a faixa do azul pode não ser aquela com maior impacto na regulação do ciclo circadiano em mamíferos.


> Leitura recomendada: Como melhorar a noite de sono sem medicamentos?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17461391.2018.1544278 
  2. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/07420528.2018.1527773
  3. https://www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(19)31368-5 
  4. https://academic.oup.com/sleepadvances/article/1/1/zpaa002/5851240
  5. https://www.endocrine-abstracts.org/ea/0063/ea0063p652.html
  6. https://www.hindawi.com/journals/pd/2019/1906271/
  7. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/07420528.2019.1692859
  8. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/bdi.12912
  9. https://doi.apa.org/doiLanding?doi=10.1037%2Fapl0000806
  10. https://jamanetwork.com/journals/jamaophthalmology/article-abstract/2725500
  11. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6353079/
  12. https://www.tmc.edu/news/2020/01/debunking-blue-light-glasses-claims-to-focus-on-proven-eye-issues/
  13. https://www.defense.gov/Explore/News/Article/Article/1147065/blue-light-blocking-lenses-may-be-breakthrough-for-warfighters/