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Qual o significado da declaração da OMS sobre os assintomáticos?

- Artigo atualizado no dia 28 de junho de 2020 -

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            Em dezembro de 2019, um novo coronavírus causou um grande surto de doença pulmonar na cidade de Wuhan, a capital da província de Hubei na China, e tem desde então se espalhado globalmente. O vírus eventualmente foi nomeado SARS-CoV-2, devido ao fato do seu genoma (constituído de RNA) ser ~82% idêntico ao corona-vírus (SARS-CoV) responsável pelo SARS (síndrome respiratória aguda grave) (I). Ambos os vírus pertencem ao clado b do gênero Betacoronavirus. A doença causada pelo SARS-CoV-2 é chamada COVID-19. Apesar dos casos de infecção inicialmente estarem conectados ao mercado de animais e alimentos marinhos de Wuhan, uma eficiente transmissão humano-para-humano levou ao crescimento exponencial do número de casos e a eventual declaração de uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
 
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          As evidências acumuladas até o momento indicam que o R0 médio do SARS-CoV-2 é em torno de 5,7 (Ref.1-2), bem mais alto do que o vírus Influenza (gripe) e o vírus do SARS. R0 (ou R-naught) é o valor que corresponde ao número de pessoas que uma pessoa infectada com o vírus consegue contaminar. Um R0 maior do que 1 significa que contra-medidas, como isolamento social, são necessárias para conter a disseminação do vírus. O achatamento da curva de contágio - via medidas farmacológicas ou não-farmacológicas - serve exatamente para diminuir ao máximo o R0 (II).

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(II) Uma das explicações para essa alta taxa de transmissibilidade pode estar associada à proteína que o novo coronavírus usa (Spike) para infectar as células hospedeiras. Leitura recomendada: O quão rápido o novo coronavírus está se espalhando e por que freá-lo?

          Como não existem ainda tratamentos específicos e efetivos para a COVID-19, e considerando que uma vacina efetiva pode demorar a ser liberada para uso a nível populacional, a melhor forma de lidar com a nova pandemia é a adoção de métodos preventivos tradicionais (não-farmacológicos), como a lavagem frequente das mãos com água e sabão e/ou via álcool em gel, minimizar o contato das mãos no rosto - evitando que possíveis patógenos das mãos entrem em contato com as mucosas do nariz, olhos e boca -, não viajar para áreas com alto nível de infectados, evitar aglomerações de pessoas e manter uma distância mínima de 1-2 metros de indivíduos em geral.

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          Todas essas medidas visam reduzir a contaminação direta e indireta das pessoas a partir de gotículas e aerossóis (suspensão de particulados ou gotículas muito pequenos em um gás/ar) contendo o vírus sendo eliminadas principalmente - mas longe de ser exclusivamente - pela tosse e pelos espirros de pessoas infectadas - também depositadas sobre superfícies diversas. Para explicar parte da alta taxa de transmissibilidade (R0 alto) do SARS-CoV-2, é provável que aerossóis estejam atuando em significativa extensão (III).

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(III) E as evidências acumuladas indicam isso. Para mais informações, acesse: Quanto tempo o novo coronavírus sobrevive sobre superfícies e no ar?
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          Mas não são apenas os sintomáticos o problema. Aliás, apenas eles e uma estrutura otimizada da proteína Spike não conseguem explicar o porquê do SARS-CoV-2 ter tão alta transmissibilidade. Indivíduos pré-sintomáticos parecem ser junto com os sintomáticos - os principais disseminadores da doença, e podem estar fazendo isso via simples respiração normal ou durante a fala (III) durante o período não-sintomático. Existe também dúvida se uma menor parcela dos infectados - os assintomáticos - também teriam papel significativo na disseminação do novo coronavírus.


   ANÚNCIO DA OMS

           Ontem (08/06), a chefe de do grupo de doenças emergentes da Organização Mundial de Saúde (OMS), Dra. Van Kerkhove, anunciou (em resposta a uma pergunta da imprensa) que as evidências acumuladas de países que realizaram massivo rastreamento dos casos - Como a Coreia do Sul - sugeriram fortemente que os indivíduos assintomáticos raramente ajudam a disseminar o vírus (Ref.3).

           Nesse sentido, a especialista pediu que os países concentrassem os esforços de rastreamento e isolamento de casos naqueles indivíduos que expressam os sinais da infecção para tentar fazer o controle do vírus.

           "Se de fato acompanhássemos todos os casos sintomáticos [incluindo pré-sintomáticos e paucissintomáticos], isolássemos esses casos, rastreássemos os contatos e colocássemos esses contatos em quarentena, haveria uma drástica redução na transmissão. Se pudéssemos nos focar nisso, iríamos nos sair muito bem em termos de suprimir a transmissão." 

          Mas o que isso significa?


    ASSINTOMÁTICOS E PRÉ-SINTOMÁTICOS

             Após o anúncio feito pela OMS, muita desinformação foi gerada e espalhada pelas redes sociais, especialmente por grupos políticos contrários ao uso universal das máscaras, ao isolamento social e às medidas mais restritivas de lockdown (quarentena total). Isso porque muitos interpretaram que as pessoas sem sintomas da doença não precisariam se preocupar, porque não estariam espalhando o SARS-CoV-2.

          Primeiro, precisamos esclarecer que existem quatro categorias de infectados:

- Pessoas que nunca desenvolvem sintomas (assintomáticos)

- Pessoas que testam positivo (via teste RT-PCR) mesmo quando elas não possuem sintomas, mas acabam desenvolvendo sintomas após um tempo de evolução da infecção (pré-sintomáticos)

- Pessoas com sintomas muito leves ou sintomas atípicos que não percebem que estão infectadas (paucisintomáticos)

- Pessoas que desenvolvem sintomas esperados (febre, tosse, espirro, perda de paladar/olfato, etc.) desde o início da infecção (sintomáticos

            Enquanto que os indivíduos sintomáticos são aqueles que, naturalmente, possuem maior potencial de disseminação da doença devido à notável presença de meios mais eficientes para espalhar gotículas e aerossóis contaminados (tosse e espirro), os indivíduos infectados pré-sintomáticos e paucissintomáticos são aqueles que parecem ser os principais responsáveis pela disseminação do vírus (50-80% das transmissões, com significativa contribuição dos assintomáticos). E o pior: muitas vezes não sabem que estão contagiosos ou com a doença, ou sabem que estão infectados mas podem achar que são assintomáticos.

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          Segundo análises do Office for National Statistics (ONS) (Ref.4) na Inglaterra, e o qual vem testando regularmente amostras da população, entre aqueles que têm testado positivo para o SARS-CoV-2, apenas 29% não reportaram nenhuma evidência de sintomas no momento de testagem, anteriormente à testagem ou posteriormente à testagem. Esses casos podem ser de assintomáticos ou de sintomáticos mas com sintomas muito leves/atípicos. Casos realmente assintomáticos podem ser tão baixos quanto 6%.

           Em outras palavras, a grande maioria dos infectados são perigosos disseminadores da doença em potencial, mesmo muitos deles achando que não estão infectados com o SARS-CoV-2.


   ISOLAMENTO SOCIAL E MÁSCARAS

          Enquanto que 'verdadeiros' assintomáticos parecem realmente não transmitir com muita frequência o vírus, esses indivíduos fazem parte de uma parcela minoritária dos infectados e são difíceis de serem identificados devido ao problema acima explorado. Indivíduos pré-sintomáticos, por exemplo, demoram cerca de 5 dias na média para desenvolverem os sintomas e são capazes de infectar durante esse período, com cargas virais muito altas no trato respiratório superior, mesmo aparentemente "assintomáticos".

           Um fator chave na transmissibilidade do COVID-19 é o alto nível de carga viral nas viras aéreas associadas ao nariz (IV) e parte inicial da garganta, mesmo entre os pacientes pré-sintomáticos e com sintomas muito leves/atípicos. Isso é uma diferença notável com o SARS-CoV-1, onde a replicação viral ocorre principalmente no trato respiratório inferior, e torna a disseminação do vírus facilitada inclusive pelo simples ato de falar e de respirar (gotículas de saliva e aerossóis dispersos pelas narinas). Além disso, cargas virais com o SARS-CoV-1, as quais estão associadas com a emergência de sintomas, atingem um pico, na média, 5 dias depois do que cargas virais com o SARS-CoV-2, o que torna detecção baseada em sintomas de infecção mais efetiva no caso do SARS-CoV-1. Com a gripe (Influenza), pessoas doentes assintomáticas geralmente possuem menores cargas virais no trato respiratório superior do que no trato respiratório inferior e uma duração mais curta da expulsão viral (via boca ou nariz) do que as pessoas sintomáticas, o que diminui o risco de transmissão de indivíduos paucisintomáticos.

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(IV) Aliás, análises genéticas indicam que o tecido associado ao nariz parece ser a porta de entrada do vírus. Para mais informações, acesse: Como a COVID-19 mata? Incerteza traz grave alerta para tratamentos utilizados a esmo

           Portanto, na atual pandemia do SARS-CoV-2, é muito difícil saber com certeza quem é realmente assintomático e que, portanto, terá realmente menos chances de transmitir o vírus, especialmente porque essa é a menor parcela dos infectados. E como pessoas que não desenvolveram sintomas são improváveis de saber se estão altamente contagiosas ou não, a transmissão via pré-sintomáticos e paucisintomáticos possui mais do que importantes implicações para o rastreamento e medidas de isolamento, não apenas sintomáticos. 

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           No periódico The New England Journal of Medicine (Ref.5), foi reportado um estudo realizado em 76 residentes de um asilo em Washington, EUA. Via teste rRT-PCR aplicado de 13 de março até 19-20 de março e coleta de reportes de sintomas, os pesquisadores mostraram que 63% dos pacientes (48) tiverem um resultado positivo para infecção com o SARS-CoV-2 e que, inicialmente, 27 (56%) pareciam ser assintomáticos. Porém, sintomas eventualmente se desenvolveram em 24 dos residentes (após uma média de 4 dias), e tiveram que ser reclassificados como pré-sintomáticos. Cargas virais durante essa média de 4 dias permaneceu alta ao longo de todos os grupos, incluindo assintomáticos verdadeiros. Dezessete dos 24 pré-sintomáticos mostraram ter culturas virais viáveis (infecciosas) de 1 a 6 dias antes dos sintomas emergirem, e que provavelmente foram os principais transmissores no asilo - o qual, aliás, teve alta taxa de mortalidade dos infectados (26% morreram).

            Esse último reporte reforça que os pré-sintomáticos são muito importantes na transmissão da doença e que pode ser extremamente difícil separá-los de reais assintomáticos, estes os quais tendem a ser minoria. Para piorar, como deixado claro no reporte anterior, os reais assintomáticos também carregam altas cargas virais no trato respiratório superior por um certo período, e, apesar de não transmitirem com frequência, eles também transmitem. Esse último ponto foi reforçado hoje pela OMS (09/06) (Ref.3). E a capacidade efetiva dos assintomáticos de contaminarem o ambiente com partículas virais foi corroborada por um estudo experimental ainda mais recente publicado no periódico mSphere (Ref.7). 

           Então podemos responder à pergunta inicial: o que tudo isso significa? Significa que as medidas não-farmacológicas para o controle epidêmico sendo recomendadas - uso universal de máscaras, isolamento social, lavagem frequente das mãos e eventuais lockdowns - continuam sendo ESSENCIAIS para o controle da epidemia. Rastreamento efetivo dos sintomáticos e seus contatos se torna mais uma ferramenta para reduzir ainda mais a curva de contágio. Rastreamento dos pré-sintomáticos e paucisintomáticos, apesar de mais difícil, seria ainda de maior ajuda. Por isso medidas de testagem massiva da população e de rastreamento são muito mais efetivas durante o início do surto epidêmico em uma região, e, de fato, é o protocolo mais recomendado.

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           Aliás, um estudo divulgado esta semana na Nature Communications (Ref.6), e realizado por pesquisadores do Imperial College London, encontrou que as medidas de isolamento social e de lockdown adotadas na Europa foram cruciais e salvaram milhões de pessoas. Analisando 11 países Europeus - Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Itália, Noruega, Espanha, Suécia, Suíça e Reino Unido - os pesquisadores estimaram que 3,1 milhões de mortes teriam ocorrido até o dia 4 de maio devido à COVID-19 caso medidas restritivas de isolamento social não tivessem sido empregadas. No Reino Unido seriam 470 mil, na França 690 mil e na França 630 mil. Com as medidas de isolamento social adotadas, cerca de 130 mil pessoas morreram no total até 4 de maio.


   SITUAÇÃO NO BRASIL

           Devido justamente à baixa aplicação de testes - em massa ou de forma estratégica -, impossibilidade consequente de rastreamento, e falhas generalizadas da aplicação de isolamento social ou de lockdown, estamos testemunhando uma disseminação sem controle do SARS-CoV-2 no Brasil, com a COVID-19 levando vários centros hospitalares ao colapso. São mais de 719 mil casos confirmados - e esse número pode ser 7 vezes maior - e quase 38 mil mortes - e esse número pode ser 2,7 vezes maior - ligados ao novo coronavírus no país. Esses valores estão entre os três maiores do mundo e estimativas sugerem que podemos ultrapassar as 100 mil mortes registradas até o final de junho.

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          Para piorar, o governo federal, especialmente o presidente Jair Bolsonaro, fomentam desinformações de forma contínua e desgastam cada vez mais o Ministério da Saúde. Sobre o anúncio da OMS, Bolsonaro, sem nenhuma base científica de argumentação, comentou de forma mais do que irresponsável e errônea no Twitter:

          "Após pedirem desculpas pela Hidroxicloroquina, agora a OMS conclui que pacientes assintomáticos (a grande maioria) não têm potencial de infectar outras pessoas. Milhões ficaram trancados em casa, perderam seus empregos e afetaram negativamente a Economia."

           Tal comentário, de tão ofensivo e falso - mesmo havendo possibilidade abundante de consultoria com especialistas - deveria ser considerado crime contra a saúde pública.

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(V) Falando em hidroxicloroquina, a ineficácia desse fármaco para o tratamento da COVID-19 foi cientificamente provada em um grande estudo clínico randomizado realizado no Reino Unido (RECOVERY). Resultados foram divulgados no último dia 5 de junho. Para mais informações, acesse: Hidroxicloroquina é comprovadamente ineficaz para tratar a COVID-19
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1.  https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/26/7/20-0282_article 
  2. https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/26/6/20-0357_article
  3. https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019
  4. https://www.ons.gov.uk/peoplepopulationandcommunity/healthandsocialcare/conditionsanddiseases/articles/coronaviruscovid19roundup/2020-03-26 
  5. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMe2009758
  6. https://www.nature.com/articles/s41586-020-2405-7
  7. https://msphere.asm.org/content/5/3/e00442-20