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Humanos só começaram a usar os sons de 'v' e 'f' na linguagem ao adotarem uma dieta macia


- Atualizado no dia 19 de outubro de 2021 -

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          Um notável estudo publicado em 2019 na Science (Ref.1), conduzido por pesquisadores da Universidade de Zurich, em colaboração com pesquisadores de dois Institutos Max Planck, da Universidade de Lyon, e da Universidade Tecnológica Nanyang de Singapura, mostrou de forma consistente que a mudança na dieta dos humanos modernos (Homo sapiens) para alimentos mais macios no pós-Neolítico levou a mudanças na configuração dentária de mordida que permitiram que sons como 'f' e 'v' - comuns em várias linguagens modernas - pudessem ser produzidos de forma natural e mais fácil na fala humana. Esse achado - corroborado por evidências prévias e mais recentes - entra em conflito com a controversa hipótese de que o espectro sonoro dos humanos permaneceu fixo ao longo de toda a existência da nossa espécie. Pelo contrário: o uso comum de certas sonorizações parece ser relativamente recente. Nesse sentido, agradeça à agricultura e aos alimentos cozidos por palavras como faca, feliz e vida existirem.

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   DIVERSIDADE SONORA

           Uma das principais características de distinção dos humanos modernos é a nossa sofisticada capacidade de linguagem. Sua origem é traçada a um passado bem longínquo na linhagem evolutiva dos homininis, incluindo uma laringe continuamente descendente, um osso hioide moderno, e um controle de respiração já estabelecidos há cerca de 500 milhões de anos, e que emergiram baseados em estruturas vocais de primatas ainda mais antigos. Além disso, a fala humana se manifesta em uma enorme variedade ao longo das cerca de 7 mil linguagens hoje existentes, marcadas por sons de vogais comuns como 'a', 'i', 'u' e 'e', até sons mais raros de clique de consoantes em algumas linguagens sul-Africanas.

          Mas essa diversidade linguística sempre foi assumida de ser fruto exclusivo de fatores  sócio-culturais e de limitações biológicas fixas e homogêneas na nossa espécie em relação à facilidade como alguns sons de fala são produzidos, percebidos e aprendidos. Nesse sentido, todos os humanos teriam a capacidade de produzir todas as variações linguísticas observadas em diferentes culturas desde que emergimos há cerca de 300 mil anos, com diferenças surgindo apenas como efeito do meio de convivência. Assim, estruturas sonoras e gramaticais são esperadas de terem a mesma probabilidade de ocorrência em todas as linguagens.

           Porém, em 1985, o linguista Charles Hockett notou que linguagens que fomentam os sons labiodentais são frequentemente encontradas em sociedades com acesso a alimentos macios. Construções sonoras labiodentais são aquelas como as consoantes 'f' e 'v', onde o lábio é posicionado contra os dentes superiores (emita o som dessas letras e compare a conformação da sua boca e lábios com outras vogais e consoantes). De fato, existe uma grande ausência dessas estruturas sonoras em atuais grupos humanos de caçadores e coletores. Hockett, então, sugeriu que por causa da dieta mais dura envolvendo maior desgaste e estresse mecânico dos dentes - induzindo o desenvolvimento de uma mordida edge-to-edge dos dentes (arcada dentária superior alinhada com a arcada dentária inferior, lateralmente e horizontalmente) - a articulação para os sons labiodentais acaba exigindo um esforço muito maior, e, portanto, acabam não sendo adotados na linguagem do dia-a-dia. Isso também sugere que houve uma pronunciada mudança nos padrões de fala entre as populações humanas no pós-Neolítico.



          A hipótese de Hockett foi rapidamente rejeitada na época sob a justificativa de que o desgaste dentário só explicaria parcialmente a persistência da mordida edge-to-edge, e que esta só teria se tornado menos comum entre os humanos adultos muito depois da agricultura surgir. Assim, essa hipótese continuou ignorada pelas próximas décadas.

           Porém, evidências antropológicas recentes já demonstraram que o desgaste dentário (e exerção masticatória de forma mais geral) é de fato o principal mecanismo que leva à mudança na configuração dentária da mordida em pós-adolescentes e que, apesar de considerável variação, existe uma diminuição geral na prevalência da mordida edge-to-edge desde o Neolítico.



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   DIETA E CONFIGURAÇÃO DE MORDIDA

          Os humanos geralmente começam a infância com uma sobreposição vertical e horizontal da configuração da mordida ('overjet' ou 'overbite', respectivamente) - uma oclusão defeituosa onde os dentes superiores se encontram não-alinhados e mais a frente do que os dentes inferiores -, a qual persiste ao longo da adolescência. No entanto, substancial desgaste dentário ao longo da vida do indivíduo induz uma perda de tecido duro e o achatamento do plano de oclusão e das superfícies interproximais. Essa perda de tecido duro e modificação da oclusão dentária ativa três principais processos compensatórios: erupção dentária contínua (movimento dos dentes para compensar pela perda de altura), deriva mesial (migração de dentes no osso alveolar na direção mesial para compensar pela perda de superfícies interproximais), e apontamento lingual (inclinação dos dentes anteriores na direção lingual para compensar pelo desgaste de incisão e de oclusão.

         Esses processos eventualmente levam ao estabelecimento de uma mordida ponta-a-ponta, onde os dentes anteriores perdem a configuração de overbite-overject, formando uma apertada (e achatada) superfície incisiva de contato com poucas ou nenhuma irregularidades. Apesar dessa transformação plástica ser modulada por fatores específicos de população para população, o desgaste aumenta monotonicamente e firmemente com a idade. Essa modificação pós-adolescência não só é uma característica dos humanos anatomicamente modernos (H. sapiens) mas provavelmente se encontra enraizado desde a emergência do gênero Homo, onde substanciais efeitos de desgaste são documentados em diferentes espécies próximo relacionadas com a nossa.


          Hoje, a maior parte dos humanos tipicamente preservam o overbite-overjet ao longo da fase adulta. Apesar das causas do desgaste dentário serem diversas, a mais comum causa de abrasão dos dentes são os alimentos, os quais produzem desgaste mecânico em toda a superfície oclusal. Dietas macias comuns na maior parte das populações contemporâneas - cozimento de carnes, grãos e tubérculos, e processamento de cereais e de laticínios - reduzem o número de mordidas para a mastigação e a exposição das superfícies dentárias à fricção devido ao contato de material exógeno. Isso reduz consideravelmente o desgaste dentário ao longo da vida do indivíduo. Além disso, alimentos mais macios exercem menos pressão biomecânica sobre a mandíbula, levando ao encurtamento dessa última e representando outra potencial causa para a preservação do overbite-overjet.


          O substancial amaciamento dos alimentos via cozimento e uso de técnicas de preservação foi consideravelmente facilitado pela invenção da cerâmica (utensílios de armazenamento de alimentos), para a qual as mais antigas evidências são encontradas no Epipaleolítico do Leste Asiático. A manufatura de cerâmicas sofreu um drástico aumento com a agricultura e a associada necessidade de armazenamento. Portanto, esses desenvolvimentos tornaram a adoção dos alimentos macios amplamente disseminada e, como resultado, a mordida plasticamente induzida edge-to-edge foi se tornando cada vez mais rara nos adultos, e hoje a prevalência quase absoluta da configuração overbite-overjet é a norma.

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   DIETA E FONÉTICA

          Nesse sentido, no referido estudo publicado na Science, os pesquisadores resolveram combinar o acumulado de dados e métodos de áreas da biologia, antropologia, fonética e da linguística histórica para confirmarem ou refutarem a hipótese de Hockett. Com o auxílio de sofisticadas técnicas de análise e de poderosos programas computacionais, eles criaram modelos de simulação biomecânica e modelos comparativos de achados arqueológicos e de evolução linguística para investigarem se os sons labiodentais foram fomentados pelas mudanças de configuração dentária associadas à nova dieta do pós-Neolítico.

          De fato, o que os pesquisadores encontraram fortemente sugere que a drástica menor prevalência da configuração de mordida edge-to-edge desde o Neolítico gradualmente facilitou a emergência e disseminação dos sons labiodentais nas linguagens. Mais especificamente, os pesquisadores encontraram substancial diferença no esforço de produção sonora labiodental e produção de estabilidade entre as configurações de mordida; um bem estabelecido mecanismo de mudança de mordida resultante do desgaste (edge-to-edge para overbite-overjet); uma associação global entre diferenças de dietas subsistência-induzidas e a presença de labiodentais; e um recente aumento de labiodental induzido por mudanças na dieta de uma grande e bem estudada família linguística Europeia ao longo de, no mínimo 6-7 milênios.




          O estudo mostrou que na configuração de mordida overbite-overjet existe 30% menos esforço muscular para a produção dos sons labiodentais do que a configuração edge-to-edge. Além disso, as simulações biomecânicas mostraram que nas articulações sonoras bilabiais - onde o lábio inferior toca o lado superior ao invés do dente (como nos sons de 'o' e 'p') - a distância incidental dente/lábio é diminuída 24% a 70% na configuração overbite-overjet do que os valores originais, facilitando a produção acidental de sons labiodentais (por exemplo, falar 'fa' ao invés de 'pa'). Esses dois fatores contribuíram, portanto, para aumentar a probabilidade dos sons labiodentais na fala humana de estimados 3% nas proto-linguagens (6 mil a 8 mil anos atrás) até 76% nas atuais linguagens.

          Os registros arqueológicos mostram que o processamento de laticínios e de cereais nas sociedades humanas é tão antigo quanto 3500 a.C. ao longo da família Indo-Europeia, refletindo processos provavelmente bem anteriores. Em linha com isso, os pesquisadores mostraram que existem evidências de prevalência da mordida overbite-overjet tão cedo quanto 4300 anos atrás no Paquistão, 3600 anos atrás na Europa, e 2400 anos atrás na Índia Central.

          Coincidente com a massiva disseminação pela Europa dos processamentos de grãos e de cerais a nível industrial na forma de moinhos movidos à água, há cerca de no mínimo 2300 anos, os pesquisadores encontraram um aumento das probabilidades de sonorização labiodental após cerca de 2500 anos atrás. E isso mostrou marcar profundamente as estruturas sonoras nas atuais linguagens Ítalo-Céltica (do Irlandês até o Francês), Germânica (do Gótico até o Alemão), e aquelas de ramificações do Grego. Com os labiodentais, as linguagens na Europa e na Ásia sofreram uma profunda diversificação nos últimos 4 mil anos, levando à substituição do Proto-Indo-Europeu patēr para o Antigo Inglês faeder, por exemplo, há ~1500 anos. Outros padrões desse tipo também foram notados em outras regiões geográficas. Na Groenlândia, no Sul da África e na Austrália, onde os processamentos de alimentos não eram tão intensos, os sons labiodentais foram adquiridos provavelmente através do contato com os Europeus conquistadores.

          Nesse caminho, as probabilidades de sons na fala encontradas ao longo das linguagens não são independentes de mudanças de larga-escala na ecologia e na biologia humanas, e que, portanto, não se pode mais assumir que a diversidade da linguagem falada permaneceu estável desde a emergência do Homo sapiens. Mesmo sendo tão comuns hoje na nossa fala, o uso dos sons labiodentais só parece ter ascendido na história recente da humanidade, há alguns milhares de anos. Em específico, a transição de coletores-caçadores pré-históricos para as sociedades contemporâneas teve um grande impacto nos aparatos humanos de fala, e, portanto, no principal modo de comunicação e de diferenciação social, ou seja, de linguagem falada.

           Além disso, a conclusão do estudo implica que não podemos fazer suposições sobre como era a linguagem falada dos povos antigos tomando como base apenas nossos padrões mais modernos de fala. Na Roma Antiga, por exemplo, pode ser que fonemas com som de 'f' e 'v' não eram ainda tão comuns, e o famoso veni, vidi, vici (vim, vi e venci) do Júlio César pode ter tido um som mais do tipo 'peni, pidi, pici'.  Aliás, na Roma e na Índia Antigas, com cada vez mais adultos acidentalmente usando os sons de 'f' e 'v', essa característica sonora pode ter sido uma marca de status, sinalizando uma dieta mais macia e rica, promovendo ainda mais a adoção desses novos sons na linguagem para a formação de palavras.

           Porém, essa nova habilidade de produzir os labiodentais pode também ter vindo com custos. Com uma mandíbula inferior menos desenvolvida, isso pode ter piorado a situação dos dentes do siso, criando menor espaço em geral para os dentes nascerem e facilitado uma maior quantidade de cavidades.

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   CETICISMO E SUPORTE

          Pouco tempo após o impactante estudo ser publicado na Science, emergiram um número de críticas céticas ao trabalho, especialmente pelos pesquisadores Sergei Tarasov - do Museu de História Natural Finlandês - e Josef C. Uyeda - da Virginia Tech, EUA. Segundo esses pesquisadores, uma reanálise dos dados de Blasi et al. (2019) refutava a conclusão do estudo por motivo de modelação causal (Ref.4), nesse caso, sugerindo que a associação negativa entre caçadores-coletores e sons labiodentais parecia ser resultado de um simples declínio desses fonemas com o aumento de distância do continente Africano - ou seja, produto de isolamento geográfico e novos fatores culturais emergentes não dependentes de mudanças na dieta e da configuração dentária. Porém, Blasi et al. eventualmente respondeu de forma consistente à crítica (Ref.5), refutando os argumentos de Tarasov & Uyeda. Outras críticas também foram satisfatoriamente respondidas, e, de fato, o estudo permanece até o momento (outubro, 2021) sem correções e sem pedidos de retratação.

          Pelo contrário, um estudo mais recente publicado no periódico de alto impacto Scientific Reports (Ref.6) trouxe mais evidência de suporte para os achados de Blasi et al., reforçando que os sons labiodentais só começaram a ser comumente usados quando as populações humanas fizeram a transição para uma sistema agrícola de subsistência. Os autores do novo estudo mostraram que os sons labiodentais são muito infrequentes na linguagem de atuais populações de caçadores-coletores em contraste com outras populações modernas. Em específico, analisando populações Amazônicas de caçadores-coletores (povos indígenas), os sons labiodentais mostraram não ser usados com frequência, ou começaram a ser usados apenas mais recentemente. Por fim, e talvez mais notável, os pesquisadores encontraram - a partir de um experimento linguístico envolvendo 10 voluntários - que mesmo entre os falantes da língua Inglesa, a frequência dos sons labiodentais parece refletir o mesmo fenômeno: o uso de sons labiodentais era significativamente mais frequente quando o falante de língua Inglesa tinha uma configuração overbite. No final, os achados convergiram para a mesma conclusão: a fala se adapta a diferenças anatômicas intra- e inter-populações humanas, e as linguagens são enviesadas no sentido de uso dos sons que são mais fáceis de serem articulados.


          Na verdade, entre os caçadores-coletores na Amazônia, a clara prevalência de sons labiodentais mostrou ocorrer apenas entre os falantes Arawá, emergindo após contato com falantes Portugueses. Isso é consistente com a hipótese de Hockett, este o qual sugeriu que sons labiodentais, se presentes em grupos de caçadores-coletores, seriam provavelmente inovações devidas ao contato inter-linguístico e/ou a mudanças de dieta a nível populacional.

          No contexto das evidências acumuladas e dos novos achados, talvez seja hora de elevar a hipótese de Hockett como parte importante da teoria de evolução da linguagem humana.

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. Blasi et al. (2019). Human sound systems are shaped by post-Neolithic changes in bite configuration. Science, Vol 363, Issue 6432. https://doi.org/10.1126/science.aav3218
  2. https://www.media.uzh.ch/de/medienmitteilungen/2019/Sprachlaute.html
  3. https://www.sciencemag.org/news/2019/03/ancient-switch-soft-food-gave-us-overbite-and-ability-pronounce-f-s-and-v-s
  4. https://vtechworks.lib.vt.edu/bitstream/handle/10919/99876/2020.02.20.957407v1.full.pdf
  5. https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.02.27.965400v1.full.pdf
  6. Everett & Chen (2021). Speech adapts to differences in dentition within and across populations. Scientific Reports, 11, 1066. https://doi.org/10.1038/s41598-020-80190-8