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Aditivo presente em alimentos processados pode causar a doença celíaca


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          A doença celíaca é um distúrbio autoimune, onde o glúten engatilha o sistema imune a atacar o próprio intestino. Relativamente comum em relação a outras raras doenças, a doença celíaca não possui atualmente cura, é para toda a vida e pode causar sérios problemas à saúde. Devido ao papel do glúten na doença, muitas pessoas acabaram associando essa proteína com prejuízos diversos ao organismo e como causa da doença celíaca. Porém, isso passa longe da verdade. O glúten apenas engatilha os sintomas da doença, a qual já está previamente manifestada no indivíduo. O consumo do glúten pela população que não porta a condição é seguro (1).


          Porém, outro componente presente nos alimentos industrializados na forma de aditivo pode realmente estar causando a doença celíaca e também disparando os ataques autoimunes: a trans-glutaminase microbiana. De acordo com um estudo de revisão publicado esta semana na Frontiers in Pediatrics (Ref.1), e responsável pelo achado, avisos nas embalagens de produtos alimentícios precisam começar a ser colocados alertando o público sobre essa substância com urgência.

  • ATENÇÃO: A primeira parte deste artigo traz um resumo sobre a doença celíaca, incluindo sintomas e prevalência. No tópico TRANS-GLUTAMINASE MICROBIANA, o novo estudo e alerta são explorados.

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   DOENÇA CELÍACA

          A doença celíaca é uma doença autoimune na qual as pessoas não podem comer glúten, porque essa proteína - encontrada primariamente no trigo, centeio e na cevada, e secundariamente em derivados desses alimentos - dispara um ataque imune contra o próprio intestino delgado do indivíduo, levando danos e anormalidades (hiperplasia cripta e atrofia nas vilosidades) ao tecido dessa parte do sistema digestivo. Essas deformidades intestinais acabam também levando a uma má absorção de nutrientes pelo trato digestivo.


          A doença celíaca pode afetar cada pessoa de forma diferente. Sintomas podem ocorrer no sistema digestivo, ou em outras partes do corpo. Uma pessoa pode ter diarreia, perda de massa corporal (devido à má absorção de nutrientes) e dores abdominais, enquanto outra pessoa pode ficar irritável ou deprimida. Sintomas extra-intestinais ou atípicos também podem incluir anemia, osteoporose e problemas neurológicos. Irritabilidade é um dos mais comuns sintomas em crianças. Algumas pessoas, contudo, não manifestam sintomas.

          A causa principal da doença celíaca é genética, associada principalmente aos genes HLA-DQ2 e/ou HLA-DQ8. Testes de sangue podem ajudar o médico a diagnosticar a doença, junto às vezes com a biópsia de um pequeno pedaço do intestino delgado, análise do histórico familiar e médico, exame físico, teste genético e biópsia da pele. Comumente, o diagnóstico é baseado na presença de fatores genéticos ligados ao antígeno humano leucócito (HLA) DQ2/8, com biópsia positiva e anticorpos serológicos após o consumo de uma dieta contendo glúten.




          O tratamento para a doença celíaca, basicamente, é uma dieta livre de glúten. Raramente, no entanto, e geralmente após os 50 anos de idade, pacientes que possuíam os sintomas suprimidos com a dieta glúten-free podem experienciar o retorno dos sintomas mesmo ainda continuando a dieta. Essa forma da doença é conhecida como refratária. Se não tratada, a doença celíaca está associada com um aumento na morbidade e mortalidade.

          O atraso no diagnóstico da doença está associado com uma significativa menor qualidade de vida dos indivíduos celíacos, incluindo aumento no gasto e consumo de medicamentos. Além disso, sintomas substanciais só começam a aparecer em alguns casos apenas quando existe um grande aumento no consumo de glúten na dieta. Normalmente, a doença celíaca se manifesta na fase inicial da infância, mas muitos pacientes podem experienciar sintomas apenas na fase adulta.

          Como neuropatias costumam estar associadas à doença celíaca, alguns especialistas recomendam que os pacientes neuropáticos sejam investigados nesse sentido quando a causa do problema neurológico não for conhecida (Ref.5), especialmente celíacos aparentemente assintomáticos.

          Originalmente, pensava-se que a doença celíaca afetava apenas as populações Europeias, mas agora é sabido que ela se manifesta no mundo inteiro, tornando-a a doença genética mais comum, a qual engloba uma combinação de fatores ambientais (glúten) e fatores genéticos (genes HLA e não-HLA). No Ocidente, é estimado que a prevalência da doença seja de 1%. Nos países do Norte (Nórdicos e ilha Britânica) da Europa, estima-se uma prevalência de 1-1,5%. Nos EUA, 0,5-1%. No Norte da África, 0,28%-5,6%. Na Oceania, 0,4-1,2%. Aqui no Brasil, a prevalência é estimada em 0,15-1%, variando significativamente de região para região.

          No geral, a prevalência da doença celíaca é de aproximadamente 0,5-1,5% em todas as partes do mundo, exceto para populações com um consumo muito baixo e muito alto de glúten na dieta. No Sul Asiático, por exemplo, as pessoas consomem muito pouco trigo e bem mais arroz, a manifestação da doença é ínfima, sendo difícil estimar a porcentagem de indivíduos realmente suscetíveis.

          Os genes que predispõem para a doença celíaca estão localizados no loci CELIAC1 do cromossomo 6 (genes HLA-DQ2 e HLA-DQ8), CELIAC2 do cromossomo 5q31-33, CELIAC3 do cromossomo 2q33 (contendo genes regulatórios dos linfócitos-T CD28, CTLA4 e ICOS), e CELIAC4 (gene miosina IXB, MYO9XB) do cromossomo 19p13. Os genes PARD3 e MAG12 - também associados à colite ulcerativa -, HLA B8 e HLA-A25 são suspeitos.

          O genótipo HLA contribui para o risco genético para a doença celíaca em 30-50%. No geral, a suscetibilidade para a doença envolve genes polimórficos que influenciam a resposta imune ao glúten.


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   TRANS-GLUTAMINASE MICROBIANA


          É conhecido que ~30% da população Caucasiana é portadora do gene HLA-DQ2, porém, apenas cerca de 1 em cada 100 pessoas nesse grupo irão manifestar a doença celíaca em exposição ao glúten. Nesse sentido, fatores ambientais e epigenéticos diversos parecem estar fortemente ligados à iniciação ou desenvolvimento da doença. Porém, ainda desconhece-se quais seriam esses fatores. Uma lista enorme de suspeitos existe, indo de vírus como o Rotavírus, passando por metais pesados, fumo, consumo alcoólico e aflatoxinas, e alcançando até mesmo o estresse.

          Um desses fatores em destaque, proposto em 2015, é a exposição ao mTg (trans-glutaminase microbiana), e, desde então, estudos publicados vêm se acumulando corroborando essa hipótese. Agora, um estudo de revisão, publicado na Frontiers in Pediatric e realizado por pesquisadores da Alemanha, encontrou fortes evidências de que a mTg, de fato, é um fator de precipitação para a doença celíaca.


          Sendo um membro da família Tg, a mTg cataliza com alta eficiência a formação de uma ligação isopeptídica, ligando um grupo amina (contendo um aceptador acila lisina) e o grupo acila (contendo o doador acila glutamina). Como o glúten é abundante em glutamina (~30%) e contém  lisina (<2%), representando um doador e receptor acila, respectivamente, essa proteína acaba sendo um substrato ideal para a modificação pós-translacional de glúten, via trans-amidação ou de-amidação. Nesse sentido, baseado em sua capacidade de modificação peptídica, a mTg imita funcionamento o tTG endógeno, o crucial auto-antígeno na doença celíaca.

          Devido à sua ampla atividade enzimática, o mTg é pesadamente usado pelas indústrias de processamento de alimentos, englobando carnes, laticínios, frutos marinhos, peixes, surimi, caseína e gelatina, miosina e actina, entre diversos outros. Estima-se que o aumento no uso dessa enzima na indústria de alimentos seja de 21,9% ao ano. A mTg melhora a gelatinação e muda a emulsificação, espumamento, viscosidade e capacidade de retenção aquosa. É considerada como uma "cola de proteínas" e um agente de polimerização, portanto melhorando a palatabilidade, textura e tempo de validade dos alimentos nas prateleiras dos supermercados.

          E, devido à grande afinidade dessa enzima com o glúten, o mTg vem sendo cada vez mais usado na indústria de massas, onde ajuda a diminuir a caloria nos produtos, melhora a textura, elasticidade e características da massa.


          No novo estudo de revisão, os autores estimaram, a partir de dados da literatura acadêmica, que o consumo diário médio de mTg pelas pessoas atualmente é de 15 mg, onde cada 1 kg de produtos processados com a mTg contém cerca de 50-100 mg dessa enzima. E o mais importante: o aumento anual no uso de mTg mostrou-se diretamente associado com o aumento de frequência da doença celíaca observado nas últimas 4 décadas. Além disso, produtos contendo glúten ou trigo que foram processados com o mTg já foram mostrados de serem imunogênicos, induzindo a produção de anticorpos quando consumidos por humanos.

          Enquanto que uma pequena quantidade de mTg é produzida na microbiota do intestino humano, especialmente por bactérias do filo Firmicutes, a relativa grande quantidade extra entrando a partir de fontes externas aumenta o potencial de patogenicidade dessa enzima, incluindo de bactérias diversas no ambiente, probióticos e, principalmente, da indústria de alimentos.



          Ainda não existe uma comprovada relação de causalidade entre a mTg e a doença celíaca, apenas uma associação observacional. Porém, as evidências são mais do que gritantes.

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   ALERTA AO CONSUMIDOR

          A enzima mTg não é acusada nas embalagens dos produtos alimentícios por não ser considerada um aditivo alimentar, e, sim, um auxiliar de processamento. Porém, devido ao crescente acúmulo de evidências científicas mostrando seu potencial de danos à saúde humana, especialmente no seu provável envolvimento na doença celíaca, muitas agências e profissionais de saúde nos últimos anos vêm pedindo uma maior atenção das agências reguladoras nessa questão. No mínimo, um alerta precisa ser colocado nas embalagens, como é feito com os nutrientes alergênicos. O novo estudo de revisão vêm para colocar um novo peso nessa preocupação.

          Até que algo seja feito pelas autoridades públicas ou pela iniciativa da própria indústria de alimentos, fica a tradicional recomendação: evite ao máximo alimentos altamente processados, dando preferência aos alimentos orgânicos ou minimamente processados.



REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fped.2018.00389/full
  2. https://medlineplus.gov/celiacdisease.html
  3. https://www.niddk.nih.gov/health-information/digestive-diseases/celiac-disease
  4. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3496881/
  5. http://n.neurology.org/content/should-neuropathy-patients-be-screened-celiac-disease 
  6. https://www.researchgate.net/figure/Crystal-structure-of-MTG-PDB-ID-3-IU0-The-active-site-of-the-zymogen-is-covered-a_fig1_263395234
  7. https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/2050640617751253
  8. https://blogs.nejm.org/now/index.php/celiac-disease/2012/12/21/