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Little Foot: Nosso ancestral com cérebro metade humano metade chimpanzé


- Atualizado no dia 1 de janeiro de 2020 -

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          Em 1994, Ronald Clarke, um paleoantropologista da Universidade de Witwatersrand, em Johannesburg, África do Sul, descobriu os primeiros sinais de um ancestral bem primitivos dos humanos nas cavernas de Sterkfontein, localizado a cerca de 40 km da Universidade. Os fósseis revelaram um hominini do gênero Australopithecus que estava presente na África há cerca de 4-2 milhões de anos, bem antes do gênero Homo emergir e muito próximo do nosso ancestral comum com os chimpanzés. Desde o final do ano passado, a partir da reconstrução quase completa do seu esqueleto, uma série de estudos estão sendo publicados, revelando os segredos desse espécime e importantes esclarecimentos sobre o processo evolutivo que marcou a linhagem humana.



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   LITTLE FOOT

          Apelidado de 'Little Foot' (Pezinho) - por causa do pequeno tamanho dos seus pés em comparação com os humanos modernos -, mas oficialmente nomeado de Stw 573, o espécime sendo recuperado das cavernas Sul-Africanas representa uma fêmea adulta que carrega um dos mais antigos sinais do modo de andar bípede dos humanos modernos (Homo sapiens). Análises geológicas e datação radioativa (1) iniciais dos fósseis desse espécime sugerem uma idade de 3,67 milhões de anos (período Plioceno).


          No final do ano passado, os pesquisadores já tinham conseguido remover ossos suficientes da matriz rochosa para reconstruir mais de 90% do esqueleto do espécime, revelando ao mundo o mais completo Australopithecus já descoberto. Para comparação, o mais famoso espécime desse gênero - Lucy - era 40% completa.




          Estudos publicados sobre os fósseis revelaram que o Little Foot possuía cerca de 130 centímetros de altura - apenas 10 cm menor do que a média das mulheres da nossa espécie -, ou seja, apenas os pés eram realmente pequenos. Em relação aos seus membros e locomoção, esse espécime possuíam pernas mais longas do que seus braços, tornando-o o mais antigo hominini hoje conhecido que com certeza carregava essa característica anatômica, similar aos humanos modernos. Isso sugere que o Little Foot era melhor adaptado para andar de forma ereta do que outros do gênero que dependiam mais das árvores.

          Um estudo mais recente, porém, publicado no periódico Journal of Human Evolution (Ref.7), forte evidência de que uma notável curvatura no osso ulnar no esqueleto do Little Foot é uma característica natural da espécie, não consequência de fratura, como antes suposto. Essa curvatura pode refletir, portanto, uma característica anatômica normal encontrada nos atuais primatas superiores não-humanos e antigos homininis, sugerindo que o Little Foot ainda usava seus braços para a locomoção em solo.

          Apesar de andar ereto, Little Foot conseguia subir em árvores melhor do que os humanos modernos, graças às suas poderosas mãos e um dedão levemente divergente. Isso na sua época era uma característica muito importante, já que provavelmente dormia na segurança das árvores à noite para escapar de ferozes predadores terrestres, como tigres-dentes-de-sabre (felinos com enormes caninos maxilares que viveram do Eoceno até o Pleistoceno) e hienas (canídeos bem comuns e antigos no continente Africano). Essa característica acompanhou os australopitecos durante muito tempo, estando presente em outras espécies bem mais recentes, como o A. sediba, esta a qual viveu há cerca de 1,98 milhões de anos (Ref.3).

          O Little Foot, quando vivo, provavelmente caiu em uma profunda fossa coberta com pequenos arbustos. Talvez ele estava fugindo de um perigoso predador e não conseguiu avaliar bem o terreno durante a correria, ou estava perseguindo ou fugindo de um rival australopitecino. A queda original foi no mínimo de 10 metros dentro da caverna, e ele nunca conseguiu sair de lá.

          Muitos dos seus ossos fossilizados estavam fraturados ou levemente deslocados. Grande parte dos danos foram causados quando o meio do seu esqueleto colapsou em uma cavidade há milhões de anos atrás e, ao longo do tempo, rochas foram caindo sobre os ossos. Como seus ossos estão ainda articulados, seu corpo foi aparentemente mumificado antes de ser coberto por sedimentos. Esses sedimentos foram subsequentemente calcificados, e o esqueleto foi preservado na caverna por todo esse tempo.




          O que faz do Little Foot tão especial é que, possuindo entre 4,1 e 3,3 milhões de anos de idade (estimativa média de 3,67 milhões de anos), ele é não apenas um dos mais antigos ancestrais humanos já descobertos, mas, também, seu esqueleto é quase completo, um achado mais do que raro para homininis do Plistoceno. Geralmente, outros espécimes descobertos dessa época ou mais antigos possuem ossos fossilizados em fragmentos. O Little Foot, por ser tão completo e conservado, pode ser estudado em sua totalidade e sem conjecturas.

          Little Foot recebeu o nome científico de Australopithecus prometheus, uma espécie que pode estar diretamente associada com o ancestral de um grupo de homininis do gênero Parantropus, este o qual co-existiu com as primeiras espécies do nosso gênero Homo, há cerca de 1 milhão de anos (2). Apesar disso, o nome da espécie ainda enfrenta debates, com alguns cientistas sugerindo que o Little Foot parece pertencer a outra espécie de Australopithecus - talvez como subespécie - já bem estabelecida, o A. africanus.

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   CÉREBRO

          Um estudo publicado em 2018 no periódico Journal of Human Evolution (Ref.4) foi o primeiro a revelar a natureza do cérebro do Little Foot, a partir dos fósseis cranianos que possibilitaram uma relativamente completa reconstrução da caixa craniana desse espécime, incluindo a estrutura interna.

          As análises - via escaneamento MicroCT - mostraram que o cérebro desse antigo ancestral humano era pequeno e compartilhava características similares ao nosso cérebro e também ao cérebro de primatas diretamente descendentes do ancestral comum da linhagem humana, como os chimpanzés (gênero Pan).

          Entre as características cerebrais similares aos humanos modernos, temos uma estrutura e um padrão assimétricos dos vasos meningeais medianos, com uma distinta petalia occipital. No geral, essa assimetria, essencial para a lateralização das funções cerebrais, ocorre em humanos e primatas superiores hoje vivos, assim como em outros grupos homininis. Isso reforça que chimpanzés e humanos, por exemplo, compartilham essa característica do ancestral comum entre os dois. Já algumas áreas críticas, como um córtex visual expandido e pontos do córtex parietal reduzidos, são distintas do nosso cérebro e assemelham-se ao dos primatas superiores não-humanos mais próximos da linhagem humana, como os chimpanzés e bonobos.

          "Na evolução humana, nós sabemos que um córtex visual reduzido, como nós podemos ver em nosso próprio cérebro, é relacionado a um córtex parental mais expandido - uma área cerebral crítica para vários aspectos do processamento sensorial e da integração sensomotora," disse a Dra. Amélie Beaudet, autora principal do novo estudo, em uma entrevista para o jornal da Universidade de  Witwatersrand, onde trabalha (Ref.5). "Ao contrário, Little Foot possui um córtex visual aumentado, o que é mais similar aos chimpanzés do que humanos."

          O estudo também mostrou que o sistema vascular no gênero Australopithecus era mais complexo do que previamente sugerido, o que levanta questões sobre o metabolismo do cérebro hominini nessa época. Esse achado é consistente com uma hipótese prévia sugerindo que o sistema vascular endocraniano no Australopthecus era mais próximo dos humanos modernos do que no geologicamente mais jovem gênero Paranthropus, apesar de parecer compartilhar características extremamente similares nos lobos frontal e occipital com esse último.

          "Isso significa que mesmo que o cérebro do Little Foot fosse diferente do nosso, o sistema vascular que permite o fluxo sanguíneo (responsável pela oxigenação) e que pode também controlar a temperatura cerebral - ambos aspectos essenciais para a evolução de um cérebro maior e mais complexo - possivelmente já estavam presentes há 3,67 milhões de anos," disse Beaudet.

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          Considerando sua idade geológica, o cérebro do Little Foot sugere que os hominis mais jovens na escala evolutiva desenvolveram uma maior complexidade em certas estruturas cerebrais ao longo do tempo, talvez em resposta ao aumento de pressões ambientais experienciadas após 2,6 milhões de anos atrás - durante a transição Plio-Pleistoceno -, com a contínua redução dos habitats fechados no ecossistema Africano. Essas mudanças de nichos ecológicos podem inclusive ter fomentado interações sociais mais complexas, as quais são dirigidas por estruturas no cérebro derivadas da reorganização cortical.

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ATUALIZAÇÃO (05/04/20): Um estudo publicado no periódico Science Advances (Ref.6) revelou que a espécie de Lucy (A. afarencis) tinha uma organização cerebral mais similar aos atuais primatas superiores não-humanos, mas com características de desenvolvimento na infância mais similar aos humanos modernos (maior tempo para crescer e maturar, permitindo um mais longo período de alta plasticidade cerebral e aprendizado otimizado). O achado foi possível após análises detalhadas de 8 crânios fossilizados via tomografia computacional convencional e com síncrotron. Isso fornece também o provável ponto inicial da evolução do mais longo período de aprendizado e dependência das crianças humanas que marca nossa espécie.
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(2) Linhagem evolutiva humana:


  1. Sahelanthropus tchadensis
  2. Orrorin tugenensis
  3. Ardipithecus kadobba
  4. Ardipithecus ramidus
  5. Australopithecus anamensis
  6. Australopithecus afaerensis
  7. Australopithecus garhi
  8. Australopithecus africanus
  9. Paranthopus aethiopicus
  10. Paranthous robustus
  11. Paranthropus boisei
  12. Homo habilis
  13. Homo rudolfensis
  14. Homo erectus
  15. Homo heidelbergensis
  16. Homo floresiensis
  17. Homo neanderthalensis
  18. Homo sapiens
Para mais informações, acesse o artigo: A Evolução Biológica é um FATO CIENTÍFICO


REFERÊNCIAS
  1. https://www.nature.com/articles/d41586-018-07651-z
  2. https://www.maropeng.co.za/content/page/little-foot
  3. http://science.sciencemag.org/content/333/6048/1417
  4. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0047248418302793
  5. http://www.wits.ac.za/news/latest-news/research-news/2018/2018-12/peering-into-little-foots-367-million-year-old-brain.html
  6. https://advances.sciencemag.org/content/6/14/eaaz4729
  7. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0047248420301883