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Alguns contos de fadas podem ter 6 mil anos ou mais de idade


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         Geralmente quando pensamos em contos de fadas como os clássicos João e o Pé de Feijão e a Bela e a Fera, automaticamente tendemos a ir até o século XIX, lembramos dos Irmãos Grimm e assumimos que essas narrativas possuem uma história relativamente recente, não mais antigas do que alguns séculos e se limitando, no máximo, ao período medieval. Porém, um estudo publicado em 2016 na Royal Society Open Science (Ref.1) mostrou que muitos dos mais famosos contos de fada parecem possuir milhares de anos de idade, alguns antes mesmo da emergência da escrita.

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   CONTO DE FADAS

          Os contos de fadas são um gênero que é marcado pela sua disseminação internacional e apropriação cultural. Histórias Árabes, Germânicas, Francesas, Russas, Dinamarquesas, e contos oriundos dos quatro cantos do mundo contribuem para a atual vasta literatura infantil. Porém, durante a jornada marcada pela contínua evolução da transmissão oral para os textos escritos e desses para as produções audiovisuais, e de uma linguagem para outra, essas histórias acabaram passando por diversas mudanças - adaptações com base em perspectivas históricas e culturais - até uma "limpeza" que atendesse o público infantil.

          Bem no início do século XIX, o Sacro Império Romano-Germânico tinha acabado de chegar ao seu fim, e a Alemanha como a conhecemos hoje não existia ainda, sendo basicamente uma área de centenas de principiados e de países pequenos ou de médio tamanho. O grande fator que unia o povo Alemão nessa época era a linguagem comum, mas ainda sem a presença uma significativa literatura histórica. Foi nesse período que os Irmãos Grimm viveram. Motivados em parte pelo desejo de fortalecer a identidade Alemã, Jakob Ludwig Karl Grimm e Wilhem Karl Grimm embarcaram em uma jornada para reunir e publicar contos e folclores do povo Alemão, marcando o início da super popularização dos contos de fadas.


          Os Irmãos Grimm fizeram sua primeira publicação em 1812, a qual reunia 86 contos populares e recebeu o título de Kinder- und Hausmärchen (Contos Domésticos e Infantis). Em 1814, publicaram um segundo volume, titulado '1815'. De 1816 a 1818, publicaram mais dois volumes chamados Deutsche Sagen e que continham 585 contos Germânicos. Bruxas, duendes, trolls e lobos recheavam as florestas das antigas vilas Alemãs e protagonizavam muitos desses contos. Junto aos trabalhos coletados na Alemanha, os irmãos também incluíram em suas coleções contos Franceses. Uma das grandes limitações de pesquisa dos Grimms, no entanto, reside no fato de que boa parte das suas fontes eram de mulheres jovens, letradas e de classe média, e de pessoas dos seus círculos de maior contato, o que coloca em dúvida o quão fiel eram as histórias coletadas em relação ao que era transmitido oralmente do folclore enraizado ao longo de todo o território Germânico.


          Os folclores coletados originalmente pelos Irmãos Grimm não eram consideradas histórias para crianças, e muitos tinham um conteúdo muito pesado, incluindo extrema violência sexual e física. Os Grimms frequentemente reescreviam as histórias para que melhor se adequassem com o que eles consideravam apropriado para a época, especialmente considerando que os contos estavam se tornando populares entre as crianças. Também acrescentavam elementos Cristãos e tendiam a trocar 'mães' por 'madrastas' nas narrativas. Nas décadas e séculos seguintes, revisões, adaptações e traduções ao redor do mundo acabaram suavizando ainda mais as histórias, até chegarem aos atuais contos de fadas (apesar da alma e intenções originais dos contos ainda permanecerem vivas sob as novas carapuças).

          Enquanto que a maioria dos folcloristas desde os Grimms acreditam que as versões escritas dos contos de fadas foram originalmente derivadas de versões já bem estabelecidas na tradição oral, alguns acadêmicos têm apontado que evidência é escassa para essa alegação, argumentando também que é muito improvável que essas histórias possam ter sido transmitidas intactas por tantas gerações sem a ajuda de textos escritos.


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   CONTOS PRÉ-HISTÓRICOS

          Para melhor esclarecer real a origem dos contos de fadas hoje muito populares, Jamshid Tehrani, um antropólogo da Universidade de Durham, no Reino Unido, junto com colaboradores, analisou um repositório online contendo mais de 2 mil contos distintos de diferentes culturas Índio-Europeias ('Índio' para remeter origem da Índia) conhecido como Aarne-Thompson-Uther Index, o qual foi compilado em 2004. Durante o estudo, os pesquisadores limitaram a análise a contos que contêm elementos mágicos e sobrenaturais, porque essa categoria possui quase todos os mais famosos contos que as pessoas no mundo inteiro estão bem familiarizadas, como João e Maria e A Bela e a Fera. Essa triagem prévia resultou em uma amostra compreendendo 275 histórias.

         Como os registros históricos muito antigos são escassos e muitos dos contos potencialmente começaram como histórias orais que não deixaram versões escritas, os pesquisadores resolveram pegar emprestado uma ferramenta biológica para ajudá-los na árdua tarefa: análise evolutiva estatística. Assim como os cientistas usam sequências genéticas de seres vivos modernos para traçar suas origens através de análises comparativas - identificando genes únicos comuns entre diferentes espécies, gêneros, famílias, etc. para traçar os ramos da árvore evolutiva -, os pesquisadores também resolveram buscar por elementos linguísticos comuns entre os contos para traçar suas origens, com base também nos registros ("fósseis") históricos já bem estabelecidos.

         Outra importante base de suporte usada pelos pesquisadores, e um atual consenso no meio acadêmico, é a teoria que todas as culturas Índio-Europeias (englobando toda a Europa e grande parte da Ásia) descendem de um povo Proto-Índio-Europeu que viveu durante o Período do Neolítico (10200 a.C. - 2000 a.C.), no Leste Europeu, e que grande parte das linguagens do mundo moderno evoluíram deles.

          Ao invés de um conjunto de genes, os contos de fadas são transmitidos através da linguagem, e como temos uma árvore com galhos e ramificações da linguagem Índio-Europeia bem definidos, torna-se possível traçar essas histórias de volta no tempo. Por exemplo, uma das análises iniciais mostraram que 'João e o Pé de Feijão' possuía uma versão em linguagens Eslávicas e uma em linguagens Célticas, levando à sugestão de que a história pode ser traçada de volta até o último "ancestral" comum., ou seja, dos Proto-Índio-Europeus-Ocidentais, dos quais as duas linhas de linguagens se dividiram há cerca de, no mínimo, 6800 anos.

        Porém, ao contrário do que ocorre com a grande maioria dos seres vivos minimamente mais complexos, os contos possuem grande tendência a se espalharem horizontalmente durante a evolução. Entre os seres vivos complexos (eucariontes), quase toda a transmissão de genes se dá de forma vertical - de "pai para filho" -, ao contrário do relativamente comum processo de transmissão genética horizontal entre bactérias, por exemplo, onde genes podem ser transferidos entre indivíduos de uma mesma população da espécie ou mesmo entre distantes táxons (1). Levando isso para o meio linguístico, uma história pode ser transmitida e incorporada entre povos/culturas distantes durante um mesmo período temporal - ou próximo -, ou seja, podem não ter tido uma origem de um ancestral comum. Levando isso em conta, os pesquisadores deram um foco especial para o problema, removendo contos que mostraram grande chance de terem sido espalhados horizontalmente. No fim dessa nova triagem, sobraram um total de 76 contos de fadas.


         Após mais sucessivas análises, os pesquisadores encontraram que um substancial número de contos parece ter existido na tradição oral Índio-Europeia muito antes deles serem registrados via escrita. Para exemplificar, três dos mais conhecidos contos de fadas, A Bela e a Fera, O Ferreiro e o Diabo, e O Anão Saltador, foram primeiro escritos nos séculos XVII e XVIII, e muitos acadêmicos consideravam que tais narrativas tinham uma inspiração/origem na mitologia Greco-Romana. Porém, a reconstrução 'evolutiva' dos pesquisadores sugere que esses contos surgiram há muito mais tempo, podendo ser seguramente traçados de volta ao período de emergência das principais subfamílias ocidentais Índio-Europeias, entre 2500 e 6000 anos atrás, e podendo inclusive estarem presentes no último ancestral comum das linguagens Índio-Europeia Ocidental. Já outros contos parecem ter tido uma origem mais moderna, há poucos séculos.


         O caso para a datação do conto de fadas O Ferreiro e o Diabo em um período global de pré-história é um dos que possuem maior suporte, tanto evolutivo quanto por inferências arqueológicas. O conto em questão possui raízes linguísticas da Índia até a Escandinávia e narra a história de um ferreiro que faz um acordo com um ser maléfico sobrenatural (Diabo, Morte, Gênio, etc.), trocando sua alma pela habilidade de fundir quaisquer materiais, algo que ele então usa para prender o ser maligno a um objeto imóvel (uma árvore, uma rocha, etc.) para impedir que esse levasse sua alma na hora de cobrar sua parte da barganha. Como na sociedade Proto-Índio-Europeia já existia a metalurgia - como parte da tecnologia da Era do Bronze - e a análise linguística paleo-evolutiva também leva o conto até esse período, fica mais do que plausível de que a história do astuto ferreiro tenha uma origem há 6 mil anos ou mais.

        Um estudo mais recente, publicado em 2018 no periódico PNAS (Ref.12) e usando bases demográficas de dispersão, reforçou que muitas das narrativas folclóricas que historicamente eram remetidas a épocas Medievais ou mais modernas, realmente parecem ter uma origem bem mais antiga e de regiões geográficas muito distante daquelas assumidas como origem. Entre 19 das mais populares histórias do mundo analisados por esse estudo, foi encontrado, por exemplo, que o conto de fadas 'As Três Princesas Roubadas' (2) possui uma grande similaridade com versões presentes nas mitologias Gregas e Indianas, várias centenas de anos antes do que se costuma considerar sua origem - século XVII na Itália, no ano de 1634 - e disseminadas através de tradição oral. De forma similar, outros contos associados à literatura Europeia, como 'O Anel Mágico', 'O Mágico e Seu Pupilo' e 'O Homem Que Entendia a Linguagem Dos Animais', também mostraram ter raízes mais antigas em fontes Indianas e do Oriente Médio (incluindo as obras Ramáiana e As Mil e Uma Noites). 

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(2) Resumo do conto (que possui variações): Um homem [herói] resgata três princesas de um poço. Seus companheiros o traem deixando-o no poço e roubando as princesas. Com a ajuda de um espírito (ex.: na forma de águia) o herói consegue escapar e expor seus companheiros, casando-se no final com a princesa mais nova.
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          Pode parecer difícil conceber que contos possam ter milhares de anos de existência e persistido mesmo sem uma significativa presença da escrita ou uma mínima difusão de um sistema de escrita entre diferentes povos. O que pode explicar o sucesso de alguns contos de fadas tão famosos e antigos é o suporte de uma narrativa minimamente contraintuitiva. Isso significa que esses contos possuem alguns elementos cognitivamente dissonantes - como criaturas fantásticas e mágica -, mas sendo caracterizados por um fácil entendimento. A Bela e a Fera, por exemplo, traz um homem que é magicamente transformado em uma horrenda criatura, mas ao mesmo tempo é estruturada a partir de uma simples história sobre família, romance, e a discussão sobre como não julgar algo pela aparência. Em outras palavras, os elementos mágicos e fantásticos ajudam esses contos a terem um grande impacto na nossa imaginação, enquanto que os elementos de simplicidade ajudam a marcá-las na nossa memória e facilitam sua dispersão oral e/ou escrita. Essa combinação facilmente explica porque a história de um astuto ferreiro e um maligno ser sobrenatural conseguiu talvez atravessar mais de 6 mil anos de pré-história e história.

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   CONCLUSÃO

         A linguagem humana é muito distinta de todas as outras formas de comunicação utilizadas pelos outros animais conhecidos, talvez com exceção dos Neandertais (2). Nossa linguagem é composicional e permite aos falantes expressarem pensamentos em sentenças compreendendo sujeitos, verbos e objetos - como 'Eu chutei a bola' - e consegue reconhecer passado, presente e futuro. Isso habilita uma inesgotável capacidade para a geração de novas sentenças à medida que os falantes combinam e recombinam conjuntos de palavras na construção de ideias. A linguagem humana também é referencial, significando que os falantes a usam para trocar específicas informações entre si sobre pessoas ou objetos e suas localizações e ações.


         Nesse sentido, essa complexa linguagem também compartilha vários elementos com os processos evolutivos biológicos e, além do estudo explorado neste artigo (publicado em 2016), outros mais recentes vêm confirmando que uma análise evolutiva da construção linguística pode ser extremamente útil como ferramenta para revelar nossa história e mesmo pré-história (Ref.9-11). Aliás, alguns pesquisadores acreditam que a linguagem humana pode ter tido um papel mais importante no recente curso evolutivo do Homo sapiens (desde cerca de 200 mil anos atrás) do que os nossos genes (Ref.9).


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. Silva & Tehrani (2016). Comparative phylogenetic analyses uncover the ancient roots of Indo-European folktales. Royal Society Open Science, Volume 3, Issue 1. https://doi.org/10.1098/rsos.150645
  2. http://www.sciencemag.org/news/2016/04/some-fairy-tales-may-be-6000-years-old
  3. http://www2.cedarcrest.edu/academic/eng/lfletcher/weblit/grlife.html
  4. https://mysite.du.edu/~fdallas/its2410/hw3_grimms/index.html
  5. http://www.sjsu.edu/faculty/harris/StudentProjects/Student_FairyTales/WebProject/Bios/Grimm%20Brothers.htm
  6. https://www.city.ac.uk/arts-social-sciences/journalism/translation-phd-case-studies/translating-childrens-literature-and-fairy-tales
  7. https://www2.le.ac.uk/departments/archaeology/research/research-themes/prehistory
  8. http://www.dartmoor.gov.uk/wildlife-and-heritage/heritage/prehistory
  9. https://link.springer.com/article/10.3758/s13423-016-1072-z
  10. https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/55673795/2018_Evolang.pdf
  11. https://bmcbiol.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12915-017-0405-3
  12. Bortolini et al. (2017). Inferring patterns of folktale diffusion using genomic data. PNAS, 114 (34) 9140-9145. https://doi.org/10.1073/pnas.161439511