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Anestesia geral: Um dos maiores mistérios da medicina


- Atualizado no dia 6 de outubro de 2020 -

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         Todos os anos mais de 300 milhões de complexos e potencialmente dolorosos procedimentos médicos são realizados, e para alcançar o nível prático de inconsciência e insensibilidade a dor durante várias intervenções do tipo, os anestésicos gerais, sozinhos ou combinados, acabam sendo uma ferramenta chave para esse fim.
       
        Apesar de ser um dos procedimentos médicos mais usados no mundo, e um dos mais importantes, a anestesia geral ainda permanece como um dos maiores mistérios da medicina. Muitas substâncias funcionam como anestésicos gerais, como o éter e o propofol, mas não sabemos ao certo o que exatamente elas fazem no corpo para promover os característicos estados de inconsciência, imobilidade, analgesia (falta de dor) e amnésia (falta de memória), mais especificamente no cérebro. Aliás, até mesmo as plantas são anestesiadas com essas substâncias!


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   ANESTESIA GERAL

        Anestésicos gerais foram primeiro usados no século XIX quando foi descoberto que inalando gás éter fazia com que pacientes parassem de sentir dor durante uma cirurgia. Desde então, várias diferentes substâncias químicas que induzem anestesia geral têm sido encontradas e modificadas. No entanto, apesar do fato de que vários anestésicos gerais estarem sendo usados por mais de 150 anos, relativamente pouco é conhecido sobre como esses diferentes compostos, sem similaridades químicas na maior parte dos casos, se comportam como agentes anestésicos induzindo principalmente perda de resposta a estímulos externos e aparente perda de consciência. Nesse sentido, vários estudos ao longo dos anos vem buscando supostos receptores específicos de ação no sistema nervoso (principal hipótese defendida) - especialmente envolvendo sinapses - ou outros mecanismos para o estabelecimento de uma teoria válida que explique bioquimicamente a atividade dos anestésicos no corpo de forma abrangente .


        Como o sono, a anestesia geral lembra um interruptor reversível, basicamente eliminando temporariamente a consciência e produzindo um estado comportamental inerte ideal para a realização de cirurgias diversas. A busca pelos mecanismos da anestesia geral ao longo dos anos tem focado em proteínas que exercem efeitos na excitabilidade neural, como os receptores inibitórios GABA(A), os quais são, de fato, alvos de vários anestésicos gerais, mas ainda permanecendo não resolvido quais outros mecanismos podem ser responsáveis pela completa perda de resposta comportamental vista em todos os animais expostos às concentrações "cirúrgicas" (doses clínicas) dessas drogas. Somando-se a isso, os efeitos desses anestésicos diferem em certo grau dependendo da forma como são administrados no corpo (injetados ou inalados).

        Entender os anestésicos gerais têm sido um grande desafio na medicina por vários motivos. Ao contrário de várias drogas que agem em um número limitado de proteínas no corpo, esses anestésicos parecem interagir com inúmeras proteínas e outras moléculas. Além disso, alguns pesquisadores acreditam que esses compostos podem trabalhar através de um número de diferentes vias biomoleculares, significando que para um anestésico funcionar não é necessário um único alvo molecular ou que um único alvo molecular não é suficiente para fazer o serviço sem a ajuda de outros. Outro ponto importante que fomenta o mistério da anestesia geral é que esta afeta algo não totalmente entendido pelos cientistas: a consciência.     

         Outro ponto válido de ser mencionado é que os mecanismos de ação dos anestésicos locais e regionais (perda de sensibilidade em um ponto ou ampla parte do corpo) também não são totalmente compreendidos, apesar de não envolverem perda de consciência.


   ISOFLUORANO: RESPOSTA?

          Nas sinapses - regiões de encontro entre neurônios - sinais são enviados via neurônios pré-sinápticos e recebidos por neurônios pós-sinápticos. Na maior parte das sinapses, a comunicação ocorre via mensageiros químicos - conhecidos como neurotransmissores. Quando um impulso elétrico nervoso, ou potencial de ação, chega ao final do neurônio pré-sináptico, isso faz com que vesículas sinápticas - pequenos pacotes membranosos que contêm neurotransmissores - se fundam com a membrana terminal, liberando os neurotransmissores dentro do espaço entre neurônios. Quando uma quantidade suficiente de neurotransmissores é sentida pelo neurônio pós-sináptico, é engatilhado um novo potencial de ação no neurônio pós-sináptico, permitindo que o um impulso nervoso seja transmitido através de vários neurônios.



          Em um estudo publicado no periódico Journal of Neuroscience (Ref.19), pesquisadores reportaram ter demonstrado o mecanismo de ação do anestésico geral volátil isoflurano, o qual mostrou agir enfraquecendo a transmissão dos sinais elétricos transmitidos nas sinapses, mas de forma específica: bloqueia preferencialmente os sinais de alta frequência. Esses sinais de alta frequência são requeridos para funções como cognição, consciência e movimento (controle-motor), e possuem efeito mínimo em impulsos de baixa frequência que controlam funções vitais (funções neuronais basais), como respiração e batimento cardíaco. Isso explicaria como o isoflurano é capaz de causar anestesia.



         Em testes com ratos, os pesquisadores mostraram que doses clínicas de isoflurano atenuaram correntes excitatórias pós-sinápticas ao diminuir a probabilidade de liberação e o número de vesículas prontamente liberáveis, seja atenuando exocitose ao inibir correntes de íons de cálcio (Ca2+) evocadas por uma curta despolarização pré-sináptica, seja inibindo exocitose evocada por uma despolarização prolongada ao bloquear diretamente o influxo de Ca2+ do maquinário exócitico. O bloqueio dos canais de Ca2+ mostrou efeitos pronunciados apenas em potenciais de ação de alta frequência, especialmente ao interferir no maquinário exócitico. Impulsos de baixa frequência mostraram engatilhar menos exocitose, e, portanto, o bloqueio do maquinário exótico realizado pelo isoflurano não estaria associado a efeitos significativos nesse cenário.

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   MAIS DO QUE DORMIR

        Recentemente, um estudo publicado na Cell (Ref.6) e liderado pelo pesquisador Bruno van Swinderen, da Universidade de Queensland, mostrou que os anestésicos gerais - no caso o propofol e o etomidato foram os compostos estudados - fazem muito mais do que colocar o indivíduo para "dormir".


       Estudos anteriores já haviam mostrado que os anestésicos gerais, incluindo o propofol, agem no sistema de sono do cérebro, como uma típica pílula de dormir, e envolvendo uma potenciação dos receptores GABA(A) nos circuitos envolvidos no processo de sono/despertar no cérebro de mamíferos (!). Porém, o novo estudo mostrou que o propofol também atua interferindo nos mecanismos pré-sinápticos, provavelmente afetando a comunicação dos neurônio ao longo de todo o cérebro de forma sistemática que difere de apenas colocar o organismo em um sono profundo (basicamente um coma).

       Os pesquisadores encontraram especificamente que o propofol restringe a mobilidade de uma proteína chave - sntaxina1A - na membrana plasmática das sinapses de todos os neurônios. Essa restrição leva à diminuição comunicativa dentro da massa cerebral. Essa disrupção da conectividade sináptica é o que realmente pode fazer as cirurgias serem possíveis, apesar dos anestésicos gerais de fato colocarem você para dormir primeiro. Aliás, esse novo mecanismo pode explicar o porquê das pessoas experienciarem moleza e desorientação após procedimentos cirúrgicos feitos sob anestesia geral.

        A descoberta possui importantes implicações para as pessoas cujos cérebros são vulneráveis, como em crianças com o tecido cerebral ainda em desenvolvimento ou para pessoas com Alzheimer ou Parkison. Nesse sentido, pode também explicar porque indivíduos muito jovens e idosos encontram às vezes complicações durante a anestesia geral.

        Porém é incerto se outros anestésicos gerais possuem o mesmo efeito. Como já mostrado, o isofluorano atua também nas sinapses alterando os fluxos de íons cálcio. Outro anestésico, a dexmedetomidina, é um agonista a2-receptor, induzindo uma hiperpolarização de neurônios locus coeruleus, uma redução na liberação de norepinefrina e um aumento nas saídas inibitórias em centros principais de excitação. No geral, o propofol e o etomidato podem potencialmente seguir essas linhas de ação e estarem diretamente associados ao maquinário da exocitose. Podem também existir diferenças de mecanismos de ação entre anestésicos gerais voláteis (aspirados) ou intravenosos (injetados), ou devido a outros fatores diversos.

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(!) ATUALIZAÇÃO: Um estudo publicado no periódico JNeurosci (Ref.23) encontrou que durante o sono e durante a anestesia geral, existe o mesmo tipo de mudança de conectividade neural em uma rede compreendendo regiões do tálamo, cingulado anterior e posterior, córtex e giro angular. Através de tomografia por emissão de pósitrons, os pesquisadores mostraram que essas regiões exibem menor fluxo sanguíneo quando o participante perde conectividade (sob efeito do sono ou de anestésicos), e maior fluxo sanguíneo quando a conectividade é recuperada. Isso também sugere que esses estados de conectividade podem estar associados com a consciência humana.
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   MEMBRANA LIPÍDICA?

          Para muitos anestésicos (mas não todos), lipofilicidade (grau de afinidade de uma molécula com lipídios) é o fator único mais significativo para indicar a potência anestésica (correlação Meyer-Overton), o que sugere que pertubações nas membranas celulares (constituídas por estruturas lipídicas) agem como mediadores de anestesia.

          Dentro da membrana, regiões de lipídios ordenados, chamadas de 'balsas lipídicas', permitem a compartimentalização de proteínas e de lipídios em nanoescala. As dimensões exatas dessas compartimentos é uma questão ainda debatida, mas experimentos in vitro sugerem algo em torno de 100 nanômetros.

          Nesse sentido, os anestésicos são especulados de trazer disrupção às balsas lipídicas, particularmente alterando lipídios cristalinos cercando um canal (de íons, por exemplo), podendo ativá-lo ou desativá-lo ao mudar o ambiente lipídico. Porém, evidência experimental direta ligando essas propriedades biofísicas a um canal de íon na membrana ou qualquer outra proteína anestésica-sensitiva ainda não existia.

           Agora, em um estudo publicado na PNAS (Ref.22), pesquisadores examinaram mais a fundo as interações entre os anestésicos gerais (clorofórmio e isoflurano) e as balsas lipídicas constituídas de colesterol e lipídios saturados - conhecidas como GM1 - e o canal de íon potássio TREK-1 anestésico-sensitivo. Eles demonstraram experimentalmente em culturas celulares e moscas da fruta geneticamente modificadas, que o clorofórmio e isoflurano ativam o TREK-1 através da enzima fosfolipase D2 (PLD2) nas balsas lipídicas das membranas e subsequente produção do sinalizador lipídico ácido fosfatídico (PA). Quando a atividade catalítica do PLD2 era desativada, as correntes anestésicas associadas ao TREK-1 eram bloqueadas de forma robusta. Em outras palavras, o TREK-1 só se torna sensível a esses anestésicos via ação do PLD2 nas balsas lipídicas.



          Nos experimentos com moscas geneticamente modificadas para não expressarem o PLD2, estas se tornavam resistentes à anestesia.

          Os pesquisadores concluíram que anestésicos gerais inalados, como clorofórmio, isoflurano, dietil éter, xenônio e propofol, alteram a nanoestrutura ordenada de lipídios nas membranas e ativam a enzima PLD2 para induzirem anestesia.


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   SEQUESTRANDO O CONTROLE DE SONO

          Apesar dos anestésicos gerais possuírem uma complexa ação no cérebro, grande parte dessa ação parece residir, de fato, nas áreas do sistema nervoso associadas ao sono. Nesse sentido, um estudo publicado no periódico Neuron (Ref.17) pode ter parcialmente resolvido o mistério por trás da ação da anestesia geral, ao mostrar que diferentes substâncias usadas para essa função promovem inconsciência ao sequestrar os circuitos neurais responsáveis por fazer um indivíduo dormir. Ou seja, esses anestésicos não agem simplesmente inibindo neurônios, mas ativando certos neurônios.

          Através de marcadores químicos, os pesquisadores analisaram ratos sob anestésicos gerais. Eles mostraram que essas drogas ativavam um conjunto de neurônios localizados em uma pequena região cerebral no hipotálamo chamada de núcleo supraóptico, o qual atua conectando o sistema nervoso ao sistema endócrino (células neuroendócrinas). Manipulando essa região sem o auxílio das drogas anestésicas, os pesquisadores também conseguiram uma estado de dormência nos ratos similar àquele deflagrado pelos anestésicos gerais. Além disso, ao ser ativada previamente essa região, o efeito da aplicação posterior de anestésicos gerais é prolongado. Já a inibição dessa região diminuiu os efeitos da anestesia geral e trouxe prejuízos para o sono natural.

           Antes desse estudo, era ainda incerto se drogas de anestesia geral e os mecanismos naturais de sono compartilhavam um caminho neural comum.

          O achado pode ajudar na formulação de novas drogas anestésicas associadas com menos efeitos colaterais e também ajudar pessoas que possuem dificuldade para dormir devido a certas doenças.

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   TOTAL PERDA DE CONSCIÊNCIA?

         Um estudo recente, realizado por pesquisadores da Universidade de Michigan e da Universidade da Califórnia, EUA (Ref.15), mostrou que durante a anestesia não ocorre a total perda de consciência, mesmo a pessoa não mais reagindo ao ambiente à sua volta. Durante experimentos monitorados por eletroencefalograma e tomografia por emissão de pósitron, 47 voluntários saudáveis foram anestesiados aleatoriamente ou com dexmedetomidina ou com propofol, e, então, expostos a diferentes estímulos verbais e não-verbais. Apesar de não conseguirem conscientemente se lembrar de nada, o cérebro deles respondiam aos estímulos do ambiente, mas não conseguia discernir sentenças lógicas das ilógicas no caso dos estímulos verbais. Um dos resultados mais interessantes dos experimentos é que quando sons ruins eram tocados para os anestesiados, eles eram mantidos na memória inconsciente dos participantes após acordados, estes os quais respondiam mais rápido aos mesmos sons quando tocados novamente, mesmo não se lembrando conscientemente deles.

         Basicamente, o estudo mostrou que o cérebro consegue processar sons e palavras quando anestesiado, mesmo o indivíduo não se lembrando desses estímulos quando acordados. Isso vai de encontro à crença comum de que a anestesia induz necessariamente uma total perda de consciência, e sugere que a anestesia geral pode ter um efeito muito mais parecido com aquele visto no sono natural do que antes pensado, apesar de substanciais diferenças, como reforçado no tópico anterior.

         Nesse caminho, também é válido mencionar que entre 0,1-0,9% dos procedimentos de anestesia acabam resultando em uma terrível experiência associada a uma consciência normal intraoperativa com lembrança explícita. Em outras palavras, um pequeno percentual de pessoas que são anestesiadas continuam relativamente acordadas e cientes durante a cirurgia mas incapazes de responder ao ambiente externo, e se lembram de sensações desagradáveis ao saírem do estado de anestesia. Essas sensações desagradáveis podem envolver lembranças auditivas (48%), dores (28%) e/ou dificuldade em respirar (48%). Tais experiências podem levar até mesmo a traumas - como o transtorno de estresse pós-traumático (PTSD) - e aversão do paciente a novos procedimentos cirúrgicos envolvendo anestesia. Mesmo com o uso hoje de monitores avançados de atividade cerebral, é ainda difícil para os anestesiologistas detectarem um estado de alta consciência nos pacientes quando anestesiados (o que corresponde a um procedimento anestésico parcialmente falho), principalmente por causa do fato de que entendemos pouco ainda sobre as bases neurológicas da consciência.

        Os fatores de risco para a consciência intraoperativa com lembrança explícita são englobados em três subgrupos: pacientes, procedimentos cirúrgicos e técnicas anestésicas. Cirurgias cardíacas e cesarianas de emergência, por exemplo, aumentam substancialmente as chances desse evento ocorrer, especialmente os procedimentos cardíacos. Pacientes mais jovens (<60 anos) do sexo feminino e aqueles viciados (usuários de drogas requerem uma maior quantidade de anestésicos) também são importantes fatores de risco, onde as mulheres possuem uma chance 3 vezes maior de desenvolverem o quadro. O uso de propofol ou de dexmedetomidina parece diminuir os riscos.

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   PLANTAS ANESTESIADAS?

         Já um estudo publicado no final de 2017 no Annals of Botany (Ref.7) mostrou surpreendentes resultados ao demonstrar que plantas reagem à substâncias anestésicas de forma similar ao animais, sugerindo que esses seres são modelos ideais para testar o efeito de anestésicos gerais no futuro e reforçando o quão pouco sabemos sobre esse procedimento médico.

         Na verdade, desde o final do século XIX, vários reportes de fisiologistas botânicos têm sido feitos sobre efeitos de anestésicos em plantas, mas não se sabia o quão similar eles eram com os animais ou quais os processos específicos sendo afetados. Aliás, especialmente sob estresse, as plantas, em geral, produzem seus próprios anestésicos endógenos, como etanol, divinil éter, acetaldeído, mentol, cocaína, atropina, monoterpenos, fenilpropanos, etano, etileno, entre vários outros. De fato, plantas emitem gigantescas quantidades de hidrocarbonetos de baixa massa molecular e outros compostos voláteis, com muitos deles possuindo propriedades anestésicas. E mais: o aumento de pressão ambiente (>1 MPa) tende a reverter todas as ações de anestésicos em plantas, algo que também ocorre com animais, incluindo a perda de consciência, ao agir contra o aumento da fluidez das membranas celulares disparado pela ação desses compostos.

          No novo estudo, quando expostas aos anestésicos gerais, as plantas analisadas perderam ambos seus movimentos autônomos e induzidos. Uma das plantas carnívoras (1) mais famosas - aquela com aberturas "dentadas" na forma de boca, como a espécie Dionaea muscipula - não mais consegue gerar sinais elétricos e suas armadilhas de captura permanecem abertas, mesmo quando seus pelos de ativação são tocados, enquanto estão expostas aos anestésicos. O mesmo acontece com a planta carnívora do tipo 'papel mata-moscas', a qual passa a não mais realizar seus movimentos autônomos e permanece imobilizada em um formato curvado. Ambas as plantas foram imobilizadas pela mesma concentração de éter dietílico




          Anestésicos gerais também dificultaram a germinação de plantas e a acumulação de clorofila em mudas de agrião. Raízes de Arabidopsis (gênero de pequenas plantas com flores nativas da Europa e da Ásia) também foram afetadas por todos os anestésicos testados, através de ação no processo de reciclagem endócitica vesicular e no balanço de espécies reativas oxigenadas. Assim como nos animais, as plantas mostraram-se sensitivas a vários anestésicos que não possuem similaridades estruturais entre si.

         Os resultados desse estudo sugerem que a ação de anestésicos ao nível celular e de órgãos são similares em plantas e animais, e que o alvo desses compostos parecem ser processos ou moléculas gerais relacionadas às membranas celulares ao invés de receptores específicos, como defendido por boa parte da comunidade científica - provavelmente através de efeitos na estrutura eletrônica de proteínas críticas embebidas nas bicamadas lipídicas das membranas (especialmente considerando que os anestésicos possuem impactos bem conhecidos na espessura e propriedades mecânicas dessa região celular). Além disso, futuramente, plantas podem servir de bons modelos sistêmicos para anestesia humana.

(1) Sugestão de leitura: O que são as plantas carnívoras?

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   ANESTESIAS GERAIS SÃO PERIGOSAS?

        Sem anestesia geral, muitos importantes procedimentos cirúrgicos - especialmente os mais invasivos - não seriam possíveis, incluindo cirurgias cardíacas, cirurgias cerebrais e transplante de órgãos. Os anestésicos podem ser administrados tanto diretamente na corrente sanguínea (intravenoso) ou como um gás de inalação. A via intravenosa irá agir mais rápido e desaparecer rapidamente do corpo, permitindo aos pacientes irem para casa mais cedo após a cirurgia. Já os efeitos promovidos pela forma inalada podem demorar mais tempo para desaparecer.

        Hoje, a anestesia geral, tipicamente, é um procedimento muito seguro. Porém, pode impor um maior risco adverso para alguns pacientes, como os mais idosos ou pessoas com doenças/condições crônicas, como a diabetes, obesidade e fumantes. Além disso, seus efeitos podem durar por muito dias em alguns pacientes, especialmente os idosos e as crianças muito novas. Geralmente, os médicos usam o termo 'dormir' para se referirem aos efeitos da anestesia geral - com o objetivo de provocaram preocupações desnecessárias nos pacientes -, mas, basicamente, o que temos é um coma reversível. Como o cérebro entra e sai de um coma induzido, a abrupta mudança no estado neural traga pela anestesia geral naturalmente traz uma certa curiosidade científica sobre os possíveis efeitos colaterais em certos indivíduos.

        O sistema nervoso central não é totalmente desenvolvido no nascimento. O cérebro possui aproximadamente 335 gramas no nascimento, dobra de tamanho ao 6 meses de idade e quase triplica aos 12 meses. Esse período de sinaptogênese pode tornar o cérebro especialmente vulnerável à ação dos anestésicos gerais e, portanto, otimizar a ação desses compostos ao conhecer todos os seus mecanismos de funcionamento torna-se vital. Além disso, existem limitadas evidências de que procedimentos múltiplos de anestesia até a idade de 3 anos - e algumas fracas evidências estendendo essa faixa até os 10 anos - podem aumentar os riscos de danos por neurotoxicidade ligados ao desenvolvimento futuro de problemas de aprendizado, linguagem e habilidades cognitivas. Porém, mesmo com tais possíveis efeitos neurotóxicos - longe de ser uma possibilidade conclusiva -, os benefícios do procedimento de anestesia geral acaba superando e muito os riscos em todas as idades dependendo da cirurgia a ser realizada. Aliás, para muitos procedimentos críticos, não existem outras opções.

         Em 2016, o FDA Norte-Americano tinha alertado que a sedação prolongada ou realizada repetidas vezes em crianças menores de 3 anos de idade pode afetar o desenvolvimento cerebral. O alerta foi emitido com base em estudos clínicos com outros animais, estes os quais quando expostos muito jovens à maioria dos anestésicos comumente utilizados em doses suficientes mostram mudanças na estrutura cerebral, levando a efeitos adversos no comportamento e cognição anos mais tarde.

           Um estudo recente publicado pela Mayo Clinic no periódico Anesthesiology (Ref.12) não encontrou evidências de que crianças recebendo anestesia antes dos 3 anos de idade possuem um menor QI do que aquelas que não receberam anestésicos. Porém, para crianças que receberam anestesias várias vezes, enquanto o QI mostra níveis comparáveis com as outras, as habilidades motoras finas sofrem um pequeno prejuízo, além dos pais reportarem mais problemas comportamentais e de aprendizado.

           No estudo da Mayo Clinic, 997 pessoas nascidas de 1994 até 2007 em Olmsted County, Minnesota, foram analisadas, sendo dividas em três grupos baseados na exposição às anestesias antes dos 3 anos de idade:  206 tiveram duas ou mais ; 380 tiveram apenas uma; e 411 não tiveram nenhuma. Os procedimentos cirúrgicos envolvidos, em sua maioria, envolviam intervenções no ouvido, no nariz ou na garganta. Inteligência, memória e várias outras funções cerebrais eram similares entre os grupos. Porém, foram percebidos modestos declínios nas habilidades motoras finas - como a destreza em desenhar figuras com um lápis ou o quão rápido eram em processar informações de leitura -, e um maior risco no desenvolvimento de problemas comportamentais, como dificuldade em ler, ansiedade, isolamento social, agressão e menor foco de atenção. No entanto, os pesquisadores lembram que, até o momento, o uso de anestesias nessa fase de idade visando procedimentos cirúrgicos, mesmo múltiplas vezes, traz benefícios que superam enormemente os riscos.

           Já outro estudo também realizado por pesquisadores da Mayo Clinic, e publicado no British Journal of Anaesthesia (Ref.16), encontrou que adultos acima dos 70 anos de idade expostos à anestesia geral e cirurgia associada parecem experimentar um declínio sutil nas habilidades de processar informações e de memória, com efeitos na função cerebral de longo prazo. A conclusão veio depois da análise de 1819 participantes com idades entre 70 e 89 anos (seguidos por 20 anos), e, apesar do declínio na função cerebral ser pequeno, este pode ser significativo para indivíduos com problemas cognitivos pré-existentes ou já com uma baixa função cognitiva. Porém, ainda é incerto se ou a anestesia, e/ou a cirurgia, e/ou a condição tratada são a causa do problema.

          Esse último achado foi reforçado por outro estudo também publicado na British Journal of Anaesthesia (Ref.20) e também conduzido pela Mayo Clinic, onde foi encontrado que adultos com idade mais avançada que tiveram cirurgia com anestesia geral podem experienciar uma modesta aceleração do declínio cognitivo (atrofia cortical em áreas do cérebro), mesmo anos depois. No entanto, não foi encontrada evidência ligando a anestesia geral a um aumento de risco de Alzheimer (não foi observado maior acúmulo de proteína amiloide). Para essa conclusão, foram examinados 585 pacientes via escaneamentos cerebrais. Um estudo mais recente publicado no Journal of the American Geriatrics Society (Ref.21), analisando 7499 pacientes com idade de 66 anos ou mais, também não encontrou maior risco de desenvolvimento de demência nos 5 anos seguindo a anestesia geral ou regional.

           De qualquer forma, sérios efeitos colaterais nas pessoas em geral - como uma perigosa queda na pressão sanguínea - são muito menos comuns do que antigamente, sendo hoje considerados muito raros. Mesmo assim, como muitos procedimentos médicos, existem alguns riscos, incluindo raros casos de alergias aos compostos sendo empregados. Para minimizá-los, médicos especializados chamados de anestesiologistas cuidadosamente monitoram a inconsciência dos pacientes, ajustando a quantidade de anestésicos sendo administrados entre outros medicamentos também agindo em conjunto.

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> Os anestésicos deixam as pessoas inconscientes e previnem a sensação de dor, mas não paralisam os músculos, estes os quais continuam sendo capazes de se moverem. Nesse sentido, além dos anestésicos, durante a cirurgia são frequentemente administrados relaxantes musculares (em específico, agentes de bloqueio neuromuscular). Esses fármacos aumentam os riscos de graves complicações respiratórias pós-cirurgias sob anestesia geral, incluindo reduzida capacidade pulmonar transiente de absorção de oxigênio e infecções nos pulmões e trato respiratório (Ref.18).

> Por motivos não muito bem esclarecidos, profissionais mulheres em hospitais podem ter um maior risco de aborto caso sejam expostas cronicamente a gases anestésicos durante os procedimentos (gases que vazam da máscara do paciente). Por isso é feito um rígido controle em hospitais - ou deveria ser feito - para minimizar essas exposições.
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   CONCLUSÃO

        Só nos EUA, quase 60 mil pacientes recebem anestesia geral por dia para a realização de cirurgias. Apesar de ser um procedimento absurdamente comum, ainda entendemos pouco sobre sua natureza, apesar de contínuas pesquisas estarem sendo realizadas para resolver o mistério. Vital para medicina, a anestesia geral carrega alguns riscos, mas, em geral, é um procedimento seguro e traz benefícios que superam dramaticamente quaisquer potenciais efeitos deletérios associados dependendo do procedimento cirúrgico a ser realizado.


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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3162622/
  2. https://biobeat.nigms.nih.gov/2016/06/demystifying-general-anesthetics/
  3. https://www.nigms.nih.gov/education/pages/factsheet_anesthesia.aspx
  4. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2784653/
  5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5477636/
  6. http://www.cell.com/cell-reports/fulltext/S2211-1247(17)31878-8
  7. https://academic.oup.com/aob/advance-article/doi/10.1093/aob/mcx155/4722571 
  8. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26351670?dopt=Abstract
  9. https://www.cdc.gov/niosh/topics/repro/anestheticgases.html
  10. https://medlineplus.gov/ency/article/007410.htm
  11. https://www.health.qld.gov.au/__data/assets/pdf_file/0033/149928/anaesthetic_01.pdf
  12. http://anesthesiology.pubs.asahq.org/article.aspx?articleid=2673230
  13. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4041951/
  14. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5628777/
  15. https://insights.ovid.com/crossref?an=00000542-201807000-00012
  16. https://bjanaesthesia.org/article/S0007-0912(18)30461-6/fulltext
  17. https://www.cell.com/neuron/fulltext/S0896-6273(19)30296-X
  18. https://www.thelancet.com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(18)30294-7/fulltext
  19. https://www.jneurosci.org/content/early/2020/04/14/JNEUROSCI.2946-19.2020
  20. https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0007091220300672
  21. https://onlinelibrary.wiley.com/journal/15325415
  22. https://www.pnas.org/content/pnas/early/2020/05/27/2004259117.full.pdf
  23. https://www.jneurosci.org/content/early/2020/12/22/JNEUROSCI.0775-20.2020