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Temos um "mapa de gostos" na língua?


- Atualizado no dia 5 de dezembro de 2023 -

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         Diferente do que muitos podem ter aprendido na escola de ensino básico ou mesmo por transmissão popular, a língua não possui zonas para diferentes gostos. É clássico ver representado ou vir à cabeça de muitos a imagem de um língua dividida em diferentes partes, uma específica para o doce, outra para o azedo, e assim por diante. Mas isso é falso, aliás, ganha um status de mito. Toda a língua - onde existam células receptoras do paladar - pode sentir todos os cinco gostos primários via seus cerca de 4-8 mil bolbos gustativos.


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   HISTÓRIA DO MITO

        Ainda presente em muitos livros de ensino e em diversos veículos de mídia popular, a ideia de um mapa de gostos na língua persiste mesmo décadas depois de ter sido provado errada. São grandes as chances de você, leitor, ter esse conceito errôneo fixado como certo. Mas de onde esse enraizado mito surgiu?

       Bem, tudo começou quando no início da década de 1900, um cientista Alemão, David Pauli Hänig, publicou um estudo - Zur Psychophysik des Geschmackssinnes - indicando que, de fato, todos os voluntários dos testes experimentais detectavam uma variedade de gostos em todas as partes da língua. Porém, ele reportou que diferentes partes da língua pareciam ter pequenas diferenças de sensibilidade para cada um dos gostos primários conhecidos na época (azedo, doce, salgado e amargo), além de existirem áreas mais sensíveis do que outras para o paladar em geral. Até aí, tudo certo e corroborado pelo nosso atual conhecimento científico.

       Porém, na década de 1940, um fisiologista norte-americano da Universidade de Havard, Edwin Boring, pegou a pesquisa de Haning e grosseiramente re-interpretou seus resultados de forma a inflar as pequenas diferenças de sensibilidade. No final, sob o ponto de vista de Boring, diferentes áreas da língua pareciam ter sensibilidades quase específicas para cada tipo de gosto.



         Ignorando o texto em Alemão do estudo, Boring extrapolou resultados fantasiosos de um gráfico já bem incompleto de Haning. Observe que o eixo das ordenadas (y) não está nem mesmo presente no trabalho do alemão, e também não possui escala e unidades. Sem esses parâmetros básicos, Boring apenas assumiu que os valores de sensibilidade do mínimo da curvas era igual a zero. Mas a realidade era que os valores esboçados nesse semi-gráfico eram relativos, não absolutos. Aliás, ambos os gráficos não possuem barras de erro, e, consequentemente, fica impossível dizer se as visíveis diferenças são significativas ou estatisticamente insignificantes. A única coisa que o gráfico e o "trabalho científico" de Haning fornecem são desinformações.

        Historiadores e cientistas consensualmente concordam que o trabalho mal feito de Haning, enfeitado com o fato de estar em uma respeitada Universidade, foi o responsável pela criação do famoso, disseminado e errôneo 'mapa da língua'.

        Desde a década de 1970, inúmeros trabalhos científicos foram realizados desbancando o conceito do mapa de gostos na língua, porém, o mito ainda permanece firme e forte. Aliás, células receptoras gustativas estão presentes em outras regiões da boca (ex.: palato) e da garganta, não apenas na língua.

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   COMO SENTIMOS OS GOSTOS NA LÍNGUA?

   GOSTOS E EVOLUÇÃO DO PALADAR

          O sentido do paladar evoluiu nos vertebrados como uma importantíssima ferramenta de análise do ambiente na busca por recursos diversos alimentares. Aliás, todos os animais (vertebrados e invertebrados) possuem capacidades de sensibilização gustatória, reforçando a noção que a regulação do consumo de nutrientes é altamente consequencial à adaptação do consumidor. Existe evidência também de forte evolução convergente em várias linhagens altamente divergentes no Reino Animal (ex.: insetos e mamíferos) para capacidades de gosto visando um pequeno conjunto de compostos e elementos essenciais ao funcionamento e à estrutura corporais (ex.: aminoácidos, carboidratos, sais de sódio) (Ref.11). 

         Nos mamíferos, em específico, existem cinco gostos primários devidamente comprovados cientificamente: azedo, amargo, doce, salgado e umami.

- Doce: O que nosso cérebro percebe como doce é geralmente causada pelo contato de açúcares diversos, como sacarose, frutose, lactose, etc. Mas outros tipos de substâncias também podem ativar essa sensação no paladar, como certos aminoácidos e certos álcoois. O doce, em termos evolucionários, vem para indicar que um alimento possui preciosos nutrientes (para onívoros e herbívoros), ricos em carbono (C) de fácil fornecimento energético ao organismo (ex.: carboidratos simples).

- Azedo: Esse gosto geralmente vem de soluções ácidas ou ácidos orgânicos, como o suco de limão. O responsável primário pela sensação do azedo, nesse sentido, é o íon positivo do hidrogênio (H+), o qual determina a acidez clássica na Química. Ainda é discutida as pressões evolutivas para a emergência e estabelecimento do gosto azedo (1); em primatas superiores, incluindo humanos, pode ter relação com a vitamina C presente em frutas cítricas. Alimentos levemente ácidos podem melhorar a digestão e estimular a produção de saliva. Por outro lado, muitos vertebrados terrestres sentem repulsa ao gosto azedo.

- Salgado: O principal representante desse gosto é o cloreto de sódio, servindo para indicar que um alimento possui boas quantidades do íon Na+, o qual é importantíssimo para diversas funções no corpo, sendo o principal cátion dos fluídos extracelulares (mas prejudicial em excesso). Sais de potássio e magnésio também podem causar uma sensação de gosto salgado (ambos também importantes íons no corpo). 

- Amargo: Diversas substâncias, especialmente entre as plantas, provocam um gosto amargo, incluindo alcaloides, fenólicos, terpenoides, flavonoides, entre outros. Do ponto de vista evolucionário, é um gosto muito importante para a sobrevivência de várias espécies, já que ele discrimina muitas substâncias tóxicas e letais. Aliás, a maior parte das plantas produzem toxinas amargas e muito perigosas, como o cianeto, nicotina e a ricina, as quais servem para deter o ataque dos herbívoros. Um estudo publicado no periódico eNeuro (Ref.7) mostrou que o gosto amargo e o doce nos humanos são detectados e discriminados pelo cérebro tão logo eles interagem com as papilas gustativas da língua, de forma a agir rápido contra potenciais toxinas ou priorizar algo potencialmente nutritivo e calórico.

- Umami: Descoberto em 1910 por um pesquisador Japonês, esse gosto é similar ao gosto de um caldo de carne, sendo geralmente ativado pelo ácido glutâmico ou pelo ácido aspártico, os quais são encontrados em diferentes proteínas encontradas na alimentação, seja nas carnes (maior quantidade) ou nas plantas. Tomates maduros, carnes e queijo contêm grandes quantidades de ácido glutâmico. Na culinária, especialmente a chinesa, o o glutamato monossódico é usado como tempero para intensificar o gosto umami (Sugestão de leitura: O glutamato monossódico é prejudicial à saúde?). No geral, o umami é um gosto associado a uma maior atratividade a aminoácidos (ricos em nitrogênio), abundantes na musculatura animal (2).

           No geral, atratividade a gostos de compostos contendo os elementos sódio (Na), cálcio (Ca), nitrogênio (N) e carbono (C) é fortemente dependente de desbalanços nutricionais e homeostase do consumidor associados à dieta, e alguns compostos (ex.: sais de sódio, cálcio e fósforo) podem ser atrativos e repulsivos dependendo da concentração para que prejuízos à saúde não sejam causados por hipo- ou hiper-consumo (Ref.11).

          O sódio (Na) engloba ~0,3% da massa corporal seca dos animais mas está presente apenas em quantidades traços da massa seca de plantas terrestres, tornando-o, na média, ~40 vezes mais concentrado em animais do que em plantas foliares. Nesse sentido, existe forte evidência de seleção positiva para uma significativa maior atratividade de sódio (salgado) por animais herbívoros do que por carnívoros - e intermediária em relação aos onívoros. Para exemplificar, muitos herbívoros terrestres buscam depósitos de minerais ricos em sódio para serem lambidos, consumo de solo por gorilas e consumo de água salgada por renas (Rangifer tarandus).

          Como fósforo (P) é essencial para a constituição do material genético e compostos de transporte energético nos seres vivos (em particular o ATP), e considerando que sua concentração é, na média, 13 vezes menor na biomassa de plantas do que de animais, muitos animais herbívoros e onívoros possuem gosto específico para esse elemento na forma, por exemplo, de íons fosfato.

        Já as baleias, por serem estritamente carnívoras e saírem engolindo seu alimento sem mastigar, perderam completamente a sensação do gosto amargo no processo evolutivo, e os cetáceos em geral possuem perdas funcionais em vários gostos, como doce, unami e azedo. O mesmo ocorre com a perda do gosto doce em várias linhagens de animais com dieta carnívora, como os estritamente carnívoros felídeos, cetáceos, e morcegos vampiros e insetívoros.

        Quando genes responsáveis pela expressão de receptores gustativos não estão mais sob forte pressão seletiva, eles se tornam mais suscetíveis ao acúmulo de mutações deletérias e à transformação em pseudogenes quebrados. Nesse sentido, como vários elementos estão presentes em boa concentração na estrutura corporal dos animais, muitas linhagens de animais estritamente carnívoros perderam a sensibilidade gustativa em ampla extensão porque a alimentação engloba o consumo de outros animais (herbívoros ou não). Isso explica a pseudogenização dos gene TIR1 (receptor para o unami) e T1R2 (receptor para o doce) em várias espécies de mamíferos carnívoros, e a menor sensibilização ou perda gustativa para outros gostos. 

          Uma exceção notável é o caso dos Pandas-Gigantes, os quais perderam o gosto pelo umami ao passarem para uma dieta herbívora, mas parecem ter ganho, por causa disso, mais sensibilidade para o amargo (Para saber mais, acesse: Estudo mostra que a língua do Panda evoluiu para comer bambu) durante o curso evolucionário. Isso pode ser explicado pela exclusividade no consumo do bambu, o que torna redundante a ampla e diversa presença de receptores gustativos.

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(!) GOSTO AZEDO E EVOLUÇÃO

          O gosto ácido (ou azedo), ao contrário dos outros gostos, parece ser altamente conservado entre os vertebrados (Ref.15). Porém, para a maioria das espécies o gosto azedo é aversivo. Algumas exceções incluem humanos e alguns mamíferos, os quais apreciam o azedo até um certo limite de acidez. Porcos e primatas, em especial, são muito atraídos por alimentos ácidos; porcos selvagens (Sus scrofa) são muito atraídos por milho fermentado, e gorilas (Gorilla gorilla) possuem uma notável preferência por frutas ácidas. Como nós e outros primatas perdemos a capacidade de sintetizar vitamina C de forma endógena*, a forte atração por frutas ácidas (cítricas) pode ter evoluído no sentido de manter níveis adequados desse micronutriente no corpo. Outro argumento é que antigos primatas podem ter evoluído uma maior preferência por alimentos fermentados, porque bactérias com metabolismo baseado em fermentação lática ou acética impedem a proliferação de bactérias patogênicas, tornando a fruta em deterioração ainda segura para o consumo.



          Aliás, os humanos modernos (Homo sapiens), ao longo da história e em diferentes culturas, têm há muito tempo empregado microrganismos para tornar alimentos mais azedos/fermentados, e antes mesmo da emergência da agricultura (Ref.15). Bebês humanos nascem capazes de identificar gostos azedos (contraem os lábios de forma imediata).

          É interessante também mencionar outro fator que pode ter ajudado a conservar o gosto azedo entre os vertebrados: o gene OTOP1. Esse gene, até o momento, é o único associado ao receptor de gosto para o ácido, e está também associado com funções do ouvido interno. Mutações nesse gene estão ligadas a desordens vestibulares. Portanto, a manutenção do gosto azedo pode ser crucial para a manutenção de outras funções fisiológicas. Além disso, o gene OTOP1 é altamente conservado em animais diversos, desde moscas drosófilas até humanos.

           A origem do gosto azedo nos animais terrestres pode estar nos antigos ambientes marinhos. Peixes - e provavelmente antigos peixes - também possuem receptores para detectar ácido, provavelmente usados para avaliar o grau de acidez da água (maiores ou menores concentrações de dióxido de carbono dissolvido) (Ref.15). Quanto mais ácida a água, mais perigoso, ou seja, o "gosto" ácido nesses animais é repulsivo. Mudanças bruscas na acidez da água - devido à formação de excessiva ácido carbônico (H2CO3), subsequente a altos níveis de CO2 dissolvido (hipercarbia) - é particularmente letal, e pode ocorrer em situações diversas (pouca mistura das águas, grosa vegetação superficial, alto nível de biomassa na água, estratificação térmica, metabolismo microbiano anaeróbico). Por outro lado, algumas espécies de peixes também evoluíram detectores de acidez visando a busca de alimentos (ex.: o peixe-gato da espécie Plotonis japonicus é atraído por águas moderadamente mais ácidas sugerindo a presença de grande quantidade de presas respirando O2 e liberando CO2).

(2GOSTO UMAMI E GATOS

            É historicamente sabido que gatos possuem uma atração particular por atum. Mas por que gatos (Felis catus) amam tanto atum? Um estudo publicado no periódico Chemical Senses (Ref.) resolveu esse mistério. Os cientistas confirmaram que esses felinos possuem receptores gustativos para o gosto umami, associados aos mesmos genes (Tas1r1 e Tas1r3) de humanos e vários outros animais.

           Porém, as variantes nos gatos desses dois genes - que expressam duas proteínas que formam o receptor de detecção do umami - exibiam duas mutações em locais críticos (posições 170 e 302) diferindo-os das variantes em humanos. Na nossa espécie,  os aminoácidos que ativam o gosto umami - principalmente ácidos glutâmico e aspártico - primeiro se ligam aos receptores gustativos e nucleotídeos amplificam a resposta. Mas em gatos, os nucleotídeos mostraram primeiro ativar os receptores, para depois os aminoácidos exacerbarem a resposta gustativa.

          O gosto umami parece ser o principal motivador na alimentação dos gatos. Esse primeiro achado faz sentido, já que esses animais são hipercarnívoros - e carnívoros obrigatórios* - e explica por que os gatos são muito mais seletivos na alimentação do que cães, esses últimos os quais expressa receptores gustativos para o doce e para o umami (gatos não sentem o doce). 

           Outro achado no estudo explica o 'amor' à carne do atum e talvez outros peixes: os gatos mostraram uma preferência particular por alimentos contendo histidina e monofosfato de inosina - compostos encontrados em altos níveis em atuns. A junção de alto conteúdo proteico, nucleotídeos e esses dois compostos parece produzir sinergicamente um forte gosto umami, atraindo os felinos.

            Mas por que gatos, que evoluíram há ~10 mil anos nos desertos do Oriente Médio, mostram grande atração por peixes? Pesquisadores sugerem que desde pelo menos 1500 a.C., gatos mais fortemente atraídos por peixes eram selecionados, favorecidos pelas grandes quantidades de restos de peixes em portos do Oriente, na Idade Média, incluindo atum, descartados por pescadores.

*Gatos se alimentam obrigatoriamente de uma dieta baseada em carne e requerem nutrientes encontrados apenas em carnes. Esse fato explica por que esses animais perderam receptores para o gosto doce, já que carnes não possuem alto conteúdo de carboidratos simples. Além disso, expressam uma menor quantidade de receptores para o amargo do que humanos.

GOSTO AMARGO EM TUBARÕES

Até recentemente era assumido que receptores para o gosto amargo - receptores gustativos do tipo 2 (T2Rs) - emergiram nos vertebrados ósseos. Em um estudo publicado no periódico PNAS (Ref.20), pesquisadores analisaram o genoma de 17 espécies de peixes cartilaginosos e encontraram um gene único de receptor T2R em 12 dessas espécies (9 tubarões, 1 peixe-serra e 2 raias). Eles apelidaram esse receptor de T2R1 e experimentos laboratoriais confirmaram que o gene codificante permitia a percepção de substâncias amargas por esses peixes. O fato de que apenas um único gene foi identificado em diferentes linhagens de peixes cartilaginosos sugere que o T2R1 é ancestral dos receptores T2Rs nos vertebrados ósseos, incluindo humanos, e aponta que a origem evolucionária do gosto amargo pode se arrastar até próximo de 500 milhões de anos atrás.

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        Além dos cinco gostos primários, estudos nos últimos anos têm tentado provar que podemos ter mais 1 ou 4 gostos sentidos pelo nosso paladar (humanos):

- Gordura: Evidências sugerem que existe um receptor gustativo específico para sentir o gosto de gordura, causado por certos ácidos graxos quebrados de gorduras por enzimas na saliva. Em termos evolucionários, gordura é um nutriente muito importante na dieta para fins energéticos (ex.: compostos orgânicos com alta densidade de energia acumulados em tecidos adiposos) e estruturais (ex.: constituição da membrana plasmática), incluindo ácidos graxos essenciais (ex.: ácido linoleico). 

- Alcalino: Oposto ao azedo. Um estudo publicado no periódico Nature Metabolism (Ref.17) identificou um canal de íons cloretos - nomeado alcalífilo (Alka) - como um receptor de gosto para pH alcalino (soluções com pH > 7) em drosófilas (mocas-da-fruta, gênero Drosophila) da espécie D. melanogaster. Meio aquoso alcalino possui um excesso de íons hidroxilas (OH-), e o receptor Alka é diretamente ativado por esses íons. O Alka é expresso nos neurônios dos receptores gustativos (GRNs) desses insetos. Alimentos muito alcalinos podem apontar um perfil nutricional deletério ou tóxico, e são evitados por drosófilas. Ainda é incerto se existe um receptor análogo ao Alka em mamíferos, incluindo humanos. Mais recentemente, em um estudo publicado na Nature Communications (Ref.19), pesquisadores mostraram que o cloreto de amônio (NH4Cl), um sal alcalino, ativa o canal seletivo de próton OTOP1 expresso em células receptoras gustativas (Tipo III) de mamíferos e responsável pelo gosto azedo, através um fluxo inverso de íons H+. O mecanismo é mediado pelo aumento significativo do pH do meio causado pela liberação de moléculas de amônia (NH3) do sal. O achado traz forte existência para um gosto alcalino em humanos.

Mecanismo induzindo corrente através do canal OTOP1, mediado pelo cloreto de amônio. Em solução, o amônio (NH4+) fica em equilíbrio com amônia (NH3), agindo como uma base Brønsted-Lowry. O gás NH3 atravessa as membranas celulares e, uma vez dentro do citosol, é regenerado para NH4+ (reduzindo a concentração intracelular de H+) e alcalizando o meio). Isso cria um fluxo de H+ do meio extracelular para o meio intracelular. 

Esse doce (licorice salgado) na Escandinávia é popular e contém cloreto de amônio, um sal alcalino. Esse sal dá um sabor único a esse doce. Amônio possui um gosto forte e único, descrito como uma combinação de amargo, salgado e um pouco azedo. Amônio e amônia estão associados a subprodutos de degradação de aminoácidos e são geralmente tóxicos para humanos e outros animais. Altas concentrações desses compostos podem intoxicar letalmente. A capacidade de detecção de amônio parece ser altamente conservada em animais diversos, desde vermes até mamíferos, e um gosto específico associado a esse íon pode ter benefícios adaptativos.


- Metálico;

- Aquoso: Aqui fica a sugestão de leitura: Por que a água fica com um gosto ruim depois de fervida?

        E não confundir 'gosto' com 'sabor'. Gostos são as sensações primárias do paladar. Já sabor são misturas de gostos, ou destes com cheiros, temperatura e sensação de tato alimentar. Assumindo que tempos 5 sensações básicas de paladar e 10 níveis de intensidade no paladar para senti-los, temos 100 mil diferentes sabores derivados apenas dos gostos básicos. Se juntarmos o olfato, o tato e a temperatura dos alimentos, temos um número gigantesco de possíveis sabores a serem criados.

          Nos mamíferos, incluindo humanos, tradicionalmente considera-se que os receptores olfativos (detecção substâncias odoríferas voláteis dos alimentos) e gustativos (gostos básicos) estão presentes em regiões distintas (nariz e língua), com a sensação final de paladar se formando no cérebro (córtex insular) sendo o único momento onde as informações de ambos os tipos de receptores se encontram. Porém, um estudo publicado no periódico Chemical Senses (Ref.9) detalhou a detecção de receptores olfativos funcionais expressos nas papilas de gosto da língua de ratos. Ou seja, a integração inicial de informações gustativas e olfativas pode ocorrer já na língua, com certos tipos de sabores já podendo ser detectados nas células gustativas independentemente das vias aéreas olfativas. É válido também mencionar que receptores olfativos (funcionais ou não) já foram identificados em outros tecidos do corpo, desde o sistema digestivo até o espermatozoide, mas sendo incerto até o momento a função deles nesses locais.

        Para finalizar, é um erro comum as pessoas associarem o 'apimentado' a um gosto ou sabor. A substância responsável pela ardência da pimenta ativa sinais de dor e calor na boca, não estando envolvida com o paladar (Para saber mais, acesse: Por que o leite corta a ardência da pimenta?).


   CAPTAÇÃO DOS GOSTOS PELO CÉREBRO

         Nos mamíferos, o epitélio da língua é composto por várias regiões constituídas por visíveis saliências chamadas de papilas gustativas. Em cada uma dessas papilas, encontramos pequenos bolbos que contêm 50-100 células receptoras de gosto (CRG) responsáveis por gerar um sinal nervoso da sensação gustativa - ao interagirem com substâncias diversas - para o cérebro através de nervos anexados a essas estruturas. Esses nervos (fibras aferentes) transmitem a informação ao córtex de gostos primários, através de sinapses na haste do cérebro e no tálamo. A saliva também possui uma função crucial nesse processo, onde substâncias de gostos dos alimentos sólidos são dissolvidas por esse fluído aquoso e efetivamente levadas para interagirem com as CRG (2).



         Após as substâncias de gosto interagirem com as CRGs, os gostos são percebidos e respondidos dentro de apenas algumas poucas centenas de milissegundos no cérebro e, de acordo com evidências recentes (Ref.7), existe uma atraso entre a detecção e a discriminação - ou seja, o tempo para o cérebro decidir sobre qual gosto o impulso nervoso recebido está associado. Esse atraso parece ser quase desprezível para os gostos amargo e doce, mas relativamente significativo para os gostos azedo e salgado.

         Apesar da crença contrária comum, todos os gostos, do doce ao umami, podem ser sentidos por todas as partes da língua onde existem os CRGs. Não existe uma zona específica para cada gosto. O que acontece é que existem zonas mais sensíveis ao paladar do que outras, e, dentro delas, certas áreas um pouco mais sensíveis a um gosto específico. Uma relativa única exceção é o gosto amargo, o qual é sentido com maior intensidade na parte de trás da língua, como mostrado na imagem abaixo. Porém, mesmo assim, o amargo é sentido bem em todas as áreas contendo papilas gustativas. Pelos menos em moscas do gênero Drosophila, a diferenciação entre pouco e muito ácido/azedo é feita por dois distintos subconjuntos de neurônios receptores gustatórios, os quais possuem caminhos de transdução antagonistas entre si, e maior ou menor ativação entre os dois determinam a concentração ácida nos alimentos (Ref.14). É provável que esse mecanismo seja conservado desde insetos até mamíferos.


          Lembrando também que toda a superfície da língua (dorso, lateral e pontas) nas partes anterior, média e posterior possuem a mesma capacidade de discriminar gostos, apesar das variações de densidade e tipo de papilas gustativas. Podemos citar, como exemplo, um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e publicado em 2010 (Ref.13) que demonstrou isso na prática para quatro sabores básicos (doce, salgado, azedo e amargo) com o auxílio de treze voluntários.

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(2) Além do papel de solvente, proteínas expressas na saliva podem interferir diretamente nas sensações gustativas ao interagirem com os receptores de gosto ou com as próprias substâncias de gosto. Um estudo apresentado recentemente na American Chemical Society 256th National Meeting (Ref.8) mostrou que ao se variar a dieta para alimentos mais amargos, por exemplo, a expressão de proteínas na saliva é alterada, possivelmente para tornar a alimentação mais tragável caso não esteja trazendo danos à saúde (plasticidade fenotípica adaptativa). Em testes clínicos, os pesquisadores apontaram o aumento de várias proteínas ricas em prolina quando participantes consumiam três vezes ao dia achocolatado amendoado, coincidindo com o reporte desses participantes ao longo de uma semana de que a bebida estava se tornando menos amarga. Essas proteínas extras podem estar se ligando aos compostos amargos da bebida e modificado as sensações gustativas.

> Variantes genéticas associadas aos genes dos receptores gustativos podem impactar na preferência alimentar das pessoas, na composição da microbiota intestinal e oral, e na suscetibilidade a doenças diversas. Devido a mutações  - especialmente polimorfismos de nucleotídeo único (SNPs) - e consequentes variações na estrutura proteica desses receptores, indivíduos podem ser mais ou menos sensíveis ou tolerantes a determinados gostos, influenciando nos hábitos alimentares. Por exemplo, indivíduos mais tolerantes aos gostos salgado e doce podem tender a consumir em excesso alimentos muito salgados e ricos em açúcares, aumentando o risco para doenças cardiovasculares, obesidade e diabetes. Ref.21-26  
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   CÉLULAS RECEPTORAS GUSTATIVAS: GERAIS OU ESPECÍFICAS?
   
          À parte do mito associado ao "mapa de gostos", por muito tempo no meio acadêmico era assumido que as CRGs podiam identificar qualquer gosto, mas isso foi refutado pelos estudos de Charles Zuker, nos laboratórios da Universidade da Califórnia, San Diego. Ao longo dos anos, seu time identificou diferentes células receptoras para o doce, o umami, o azedo, o amargo e, em 2010, a específica para o salgado (Ref.4-5). Mas, lembrando, que essas diferentes células especializadas se encontram nos bolbos espalhados por toda a língua, de maneira praticamente uniforme.

          Existem três tipos de células associadas aos bolbos gustativos: células tipo I que atuam como suporte; células sensoriais do Tipo II que detectam amargo, doce ou umami (cada um deles através de um distinto caminho de sinalização envolvendo íons Ca2+); e células sensoriais do tipo III que detectam azedo e salgado. Recentemente, pesquisadores reportaram no periódico PLOS Genetics (Ref.10) um subconjunto de células do Tipo III previamente desconhecido. Essas células mostraram ser capazes de detectar azedo através de um caminho de sinalização, e doce, amargo e/ou unami através de outro caminho de sinalização (PLCβ3). Nesse sentido, esse "quarto" tipo de células receptoras gustativas - chamadas pelos pesquisadores de Células Responsivas Amplas (BR) - atuam como importante auxiliar de paladar para as células do Tipo II e do Tipo III, possuindo um amplo espectro sensorial e não apenas respondendo de forma específica a um ou outro gosto como aquelas do Tipo II.

         Nesse último ponto, todas as células BR mostraram - no estudo - sempre responder ao azedo, com 100% delas respondendo a múltiplos estímulos gustativos e aproximadamente 80% delas respondendo a qualquer três de quatro modalidades. Isso entra em contraste com as células do Tipo II que geralmente respondem a apenas um estímulo gustativo. As células BR só não foram capazes de responder ao estímulo de íons sódio (salgado).

         Aliás, nos experimentos laboratoriais, a perda de sinalização PLCβ3 se traduziu em uma deficiência sensorial no paladar similar à perda de sinalização (IP3R3) das células do Tipo II. Isso sugere que o nosso paladar (mamíferos) é muito mais complexo do que antes pensado. O achado foi feito a partir de experimentos com ratos, os quais possuem um sistema sensorial gustativo muito similar ao nosso, ou seja, provavelmente também temos essas novas células descritas. 


   FETOS SENTEM GOSTO E SABOR?

           O fluído amniótico é o primeiro local onde fetos começam a sentir o ambiente ao redor, especificamente o ambiente químico. Essa experiência fornece contínua informação sensorial, como gosto e olfato, desde o estágio fetal até o período neonatal. Entre vários outros compostos dissolvidos, o ambiente pré-natal é permeado com compostos associados a aromas oriundos da dieta da mãe (humanos e outros mamíferos), onde o feto codifica e memoriza estímulos químicos de exposição. 

          Em fetos humanos, os bolbos gustativos se desenvolvem anatomicamente na 8° semana de gestação e podem detectar gostos (doce, amargo, azedo, salgado...) a partir da 14° semana de gestação. Adicionalmente, orifícios fetais são abertos para permitir acesso do fluído amniótico aos neurônios sensoriais olfativos, os quais podem detectar moléculas de odor a partir da 24° semana de gestação. Portanto, apesar de continuarem se desenvolvendo anatomicamente e funcionalmente após o nascimento, os quimiossensores fetais são suficientemente maduros para detectar sabores, incluindo gostos e odores associados ao fluído amniótico no último trimestre de gravidez. 

          Um recente estudo publicado no periódico Psychological Science (Ref.16), analisando 100 mulheres grávidas com escaneamento 4D de ultrassom, revelou pela primeira vez respostas faciais de fetos após serem expostos a sabores de alimentos ingeridos pelas grávidas - trazendo também a primeira evidência direta de que fetos são capazes de sentir gosto e sabor. As grávidas analisadas tinham de 18 a 40 anos de idade, com gravidezes de 32 a 36 semanas, e foram instruídas a ingerirem cápsulas contendo aproximadamente 400 mg de pó de cenoura ou 400 mg de pó de couve-de-folhas (variedade similar ao repolho). Vinte minutos após a ingestão, ultrassom 4D foi utilizado para decifrar a expressão facial dos bebês. 

           Comparado a um grupo de controle, as reações faciais observadas mostraram que a exposição a pequenas quantidades de cenoura ou de couve-de-folhas foi suficiente para estimular uma reação. Fetos expostos à cenoura exibiram, de forma significativa, mais "caras felizes" (Fig.b), enquanto aqueles expostos à couve-de-folhas exibiram mais "caras de choro" (Fig.d).


           Os resultados do estudo sugerem que a dieta das grávidas pode influenciar nas preferências de gosto e de sabor do bebê após o nascimento e potencialmente ter implicações para o estabelecimento de hábitos alimentares saudáveis. É incerto ainda se as respostas dos fetos a certos alimentos são alteradas a longo prazo dependendo do nível e tempo de exposição aos compostos de sabor.

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   CONCLUSÃO

        Todas as regiões da língua com papilas gustativas possuem a capacidade de sentir todos os gostos, não existindo um mapa gustativo da forma como é bastante disseminado. Dentro dessas papilas existem todas as células especializadas para cada um dos cinco gostos hoje estabelecidos. Apenas no caso do gosto amargo é que existe uma significativa diferença de sensibilidade na parte de trás da língua, mas as outras áreas de paladar desse órgão também conseguem sentir bem esse gosto.


> Artigo recomendado: Lamber a ferida realmente ajuda a curá-la?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://sites.psu.edu/psychedaboutfoodscience/tag/tongue-map/0 
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmedhealth/PMH0072592/ 
  3. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1749-4877.12291/pdf 
  4. https://www.nature.com/articles/nature08783.epdf
  5. https://www.nature.com/articles/nature13873.epdf
  6. http://www.bbc.com/future/story/20171012-do-our-tongues-have-different-taste-zones
  7. http://www.eneuro.org/content/early/2018/10/15/ENEURO.0269-18.2018
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