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Rebelião Taiping: O segundo maior massacre na história da humanidade


- Atualizado no dia 28 de novembro de 2021 -

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           Quando pensamos em grandes eventos históricos envolvendo um absurdo número de mortes, logo apontamos as duas Grandes Guerras Mundias no início do século XX. Esse apontamento acaba sendo também fomentado pelo foco exagerado no estudo da História aqui no Ocidente dado ao percurso histórico europeu, em detrimento dos acontecimentos que moldaram, especialmente, a parte Oriental do mundo. Nesse sentido, bem antes dos eventos que dispararam a Primeira Guerra Mundial no ano de 1914, uma Guerra Civil que explodiu na China entre os anos de 1850 e 1864 ganhou proporções descomunais, marcando o segundo maior massacre na história depois da Segunda Guerra Mundial e o maior e mais perigoso conflito do século XIX.

           O período de 1848 a 1870 foi pincelado com guerras, rebeliões, revoluções e evoluções. Uma série de eventos na Itália e na Alemanha levaram à unificação daquelas duas nações. Revoluções tomaram conta de várias nações europeias. Alexander II da Rússia emancipou os há muito tempo sofridos servos. O almirante Perry dos EUA abriu as tão fechadas ilhas japonesas para o comércio. E, no Reinado Chinês, uma obscura, esquecida por muitos e violenta rebelião tomou forma e promoveu a morte de mais de 20 milhões de pessoas (na Primeira Guerra Mundial foram 17 milhões), marcando a mais violenta e letal Guerra Civil da história da humanidade. Estimativas sugerem que em torno de 70 milhões de pessoas na China (40% da população na época) foram mortos, migraram, desapareceram ou ficaram feridos; em relação especifica aos refugiados, é estimado um total de 30 milhões (Ref.14). E o gatilho para essa catástrofe foi um homem chinês comum empunhando uma distorcida bandeira do Cristianismo.
 
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  PANO DE FUNDO

            As Dinastias na China geralmente subiam ao poder através de conquistas e a última delas, a Dinastia Qing, emergiu a partir da ascensão da minoria étnica Manchu, a qual conquistou o território chinês em 1644. Apesar dos chineses Han terem considerado os Manchus como não pertencentes à China ou formadores de uma dinastia "bárbara", eles serviram sem muita resistência ao novo governo Qing. De qualquer forma, os Manchus instituíram várias práticas discriminatórias, como a imposição de que todos os homens usassem o mesmo estilo Manchu de tranças de cabelo atrás da cabeça para reafirmar servitude.


           As políticas do governo Qing, mesmo tentando utilizar da melhor forma possível as instituições chinesas, mostraram-se bastante divisórias pelas características fortemente autoritárias e caminhou para um declínio cada vez mais profundo, especialmente no século XIX. Nesse período, a economia chinesa era basicamente agrária e a população tinha crescido enormemente, gerando uma crescente desestabilização. Os impostos também crescentes recaiam em peso sobre os mais pobres e os custos/administração da força militar ficavam cada vez mais comprometidos. Nesse último caso, estava ficando bem mais difícil enviar tropas de uma província para outra. Enquanto revoltas locais floresciam e sociedades secretas reemergiam, as políticas do governo central se tornavam cada vez mais irrelevantes para a sociedade chinesa.

          Somando-se a essa situação, temos ainda outro importante problema nessa história: a presença dos europeus na China. No século XIX, os chineses se sentiram na necessidade de formular uma política coerente que acomodasse os "bárbaros" europeus que vinham para estabelecer comércio. A Dinastia Qing adotou o tradicional método chinês de administrar os bárbaros, com base na consideração de que esses últimos eram inferiores e, consequentemente, deveriam seguir as orientações do imperador. Através do rito do "tributo" ou presentes ao imperador, os chineses estabeleceram sua clamada superioridade e conceberam os assim reconhecidos bárbaros à sua sociedade. Os europeus rejeitavam a visão 'Centro-Chinesa' do mundo e tentavam trazer o regime Qing para a modernidade, com o intuito de otimizar as trocas comerciais e garantir o maior lucro possível. Porém, os princípios ocidentais sendo martelados não automaticamente levaram a mudanças na política externa chinesa, e a China resistiu por um bom tempo à ocidentalização.



  A GUERRA DO ÓPIO (1839-1860)

           Duas coisas aconteceram no século XVIII que dificultaram para a Inglaterra balancear seu comércio com o Oriente. Primeiro, os britânicos se tornaram uma nação de ávidos consumidores de chá e a demanda pelo chá chinês aumentou astronomicamente nessa época. Segundo, os mercadores chineses no norte começaram a embarcar algodão do interior do país para o sul com o intuito de competir com o algodão indiano que os britânicos tinham usado para ajudar a pagar pelo alto consumo de chá. Nesse sentido, para prevenir um preocupante desbalanço comercial, os britânicos tentaram vender mais dos seus próprios produtos para a China, especialmente tecidos de lã, porém a aceitação dessas mercadorias dentro do território chinês era limitada, principalmente em uma sociedade acostumada com acolchoados de algodão ou seda.


           Bem, nesse cenário, a única solução encontrada foi aumentar a quantidade de produtos oriundos da Índia - colônia britânica nesse período - para custear os gastos com a China. E um dos produtos visados e forçados a entrar no mercado chinês era o ópio de Bengala. Com um maior suprimento de ópio ao território chinês, maior era a demanda por todo o país, mesmo com as pesadas proibições impostas pelo governo e oficiais. Os britânicos fizeram tudo o que eles podiam para aumentar o comércio dessa droga. Eles subornavam oficiais, ajudavam os trabalhadores chineses interessados a elaborarem esquemas de tráfico de ópio para dentro da China, e distribuíam amostras grátis entre vítimas inocentes para aumentar a massa de dependentes químicos.


           O resultado disso tudo foi um enorme desastre para a China. Os danos diretos do ópio atingiram grande parte da população - alguns historiadores estimam que 10% da população regularmente usava a droga até o final do século XIX - e, com isso, a prata começou a vazar do país em um ritmo desesperador para pagar pelo droga. Muitos dos problemas econômicos que a China enfrentou depois foram direta ou indiretamente relacionados com esse tráfico ilegal. O governo chinês na época chegou até a cogitar legalizar o comércio da droga sob o monopólio do império para ver se resolvia o problema. Mas como as autoridades chinesas sabiam muito bem dos prejuízos trazidos pelo vício, em 1838 o imperador decidiu enviar um dos seus mais notáveis oficiais, Lin Tse-hsu (Lin Zexu, 1785-1850), para Canton (Guangzhou) com o objetivo de fazer o que fosse preciso para dar um fim naquele pesadelo.

            Contudo, a partir desse ponto o pesadelo só foi ficando pior. Apesar de Lin conseguir ter sucesso ao implantar o tratamento forçado de dependentes químicos e punir severamente os traficantes, sua ação mais pesada e incisiva acabou condenando a China. Lin adotou medidas para confiscar produtos estrangeiros e forçar mercadores estrangeiros a assinarem acordos de boa conduta - sob a punição da lei chinesa caso os quebrassem. Esse último golpe, eventualmente, disparou uma guerra com a Inglaterra. Os danos desse conflito foram terríveis para os chineses e já pelo verão de 1842, os navios britânicos foram vitoriosos e tinham até fôlego para cercar a antiga capital, Nanking (Nanjing), na China central. O imperador, sem escolhas, teve que aceitar as demandas britânicas e assinar um acordo de paz. Esse acordo, o primeiro dos famosos ´Tratados Injustos´, abriu a China para o Ocidente e marcou o começo da exploração ocidental do povo e território chinês.


            Para piorar, seguindo os conflitos com a Inglaterra vieram outras tensões com outros países, incluindo a França e os EUA em 1843 e a Rússia em 1858, os quais queriam maiores privilégios comerciais com a China e acabar com o tradicional sistema de tributos. Essas pressões culminaram em uma segunda guerra, entre 1858 e 1860, onde os europeus mais uma vez humilharam militarmente os chineses e empurraram o Tratado de Tientsin (Tianjin) e a Convenção de Pequim (Beijing), estes os quais, basicamente, transformaram a China em uma semi-colônia. Tais acordos comerciais injustos não foram completamente anulados até o ano de 1943.  Somando-se a isso, até o final do século XIX outros conflitos com nações estrangeiras enfraqueceram ainda mais a política e economia chinesa, incluindo perdas territoriais para a Rússia, Inglaterra, França e Japão e interferência externa pesada no governo chinês como um todo.

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   CHINA ENFRAQUECIDA E A REBELIÃO TAIPING

           O que acompanhou e seguiu a Guerra do Ópio e os avanços estrangeiros foi a crescente deterioração da economia e da política chinesa, levando a um maior agravamento das desigualdades sociais e revoltas civis. Ao mesmo tempo, a população da China estava aumentando dramaticamente, dobrando entre 1766 e 1833, enquanto que a quantidade de terra cultivável e a tecnologia usada na produção de alimento permanecia a mesma. A corrupção no governo também aumentou e esse último estava fraco nas regiões no sul do país onde vários clãs locais se estabeleceram. E para completar o quadro, um evento mais do que traumático e curiosamente pouco lembrado se desenhou anos após a primeira guerra com a Inglaterra: a Rebelião Taiping.

          Em 1837, Hong Xiuquan (Hung Hsiu-chuan), o futuro líder da Rebelião Taiping, experienciou visões durante uma doença que seguiram sua terceira falha em um exame nacional, as quais mudariam seu destino e de dezenas de milhões na China. Hong veio de uma família pobre da minoria Hakka dentro da população Han, e residia próximo de Canton. Seus pais se sacrificaram para dá-lo uma educação decente para que ele pudesse passar o exame civil estilo-Confuciano e ganhar um lugar na elite local. Porém, infelizmente, Hong falhou o exame várias vezes.


           Em 1836, antes de Hong entrar novamente no salão de exames para mais uma tentativa de passar e honrar sua família, ele recebeu uma coleção de passagens traduzidas da Bíblia chamada de "Boas Palavras para Orientar a Era" (em uma tradução para o português do título original) do missionário Protestante Liang A-fa. Em meio à crescente e grave crise econômica, social e política na China, missionários Cristãos estavam lentamente tomando "controle" e administrando a maior parte das atividades religiosas nas regiões ao sul - onde existia fraca autoridade governamental -, e ganhando cada vez mais seguidores.

          Hong manteve o livro bíblico em sua casa e, depois da terceira falha no exame, ele ficou muito doente e teve estranhos sonhos nos quais havia um homem barbado e de cabelos dourados que lhe deu uma espada, e um homem jovem que o instruiu na tarefa de destruir os espíritos malignos. Nos sonhos, Hong acreditava estar em uma viagem para o paraíso ao leste, até seus parentes revelarem a ele que demônios estavam extensivamente destruindo a humanidade. Com a ajuda do seu irmão, Hong usou sua espada para lutar contra o rei do inferno e seus demônios. Como resultado da batalha, Hong ganhou permanência no paraíso e se casou com uma mulher com a qual mais tarde teve um filho. Por fim, Hong retornou à Terra onde ele teria recebido o título autoproclamado de "Rei do Paraíso, Senhor do Caminho Real".

           Durante os estranhos sonhos e a doença, Hong frequentemente levantava da cama e saía correndo pelo quarto, agitando os braços e gritando "Destrua os demônios!". Acreditando que o filho tinha ficado maluco, seus pais o mantiveram confinado em seu quarto. Após o ocorrido e melhora da doença, e depois de falhar pela quarta vez no exame, Hong resolveu abrir e ler o livro com as passagens Cristãs e o estudou cuidadosamente. Foi então que o nosso frustrado e atormentado "concurseiro" colocou na cabeça que o exótico homem barbado e de cabelos dourados que surgiu em seus sonhos no ano anterior era Deus e que o jovem homem era Jesus Cristo. E mais: acreditava que Jesus era o seu irmão mais velho.


            Alterando a doutrina Cristã à sua própria visão, Hong converteu seu primo, Hong Jen-kan, e um amigo, Feng Yun-shan. Feng organizou a assim chamada 'Sociedade dos Adoradores-de-Deus', na Montanha Thistle, dando origem ao crescente grupo Taiping, enquanto Hong se tornou um fervoroso pregador itinerante. Em 1847, depois que um missionário norte-americano e companheiro de estudos religiosos -, Issachar Roberts -, se recusou a batizar Hong por conta de algum desentendimento entre os dois, esse último se juntou aos Adoradores-de-Deus na Montanha Thistle e começou a instigar um caráter mais ofensivo para o grupo. 

           Em 1848, Hong aceitou como autêntico um trabalhador de carvão referido como Yang Xiuqing, o qual alegavam ser capaz de canalizar Deus, e um camponês referido como Xiao Chaogui, que alegava ser capaz de canalizar Jesus Cristo. Com o crescente fanatismo religioso associado ao movimento, Hong foi conquistando total controle espiritual, social e econômico dos seus discípulos. Durante sessões de reza, muitos adoradores alegavam visitar fisicamente o paraíso, além de reportes frequentes de intervenções angélicas em favor dos seguidores.

          Nesse ponto, o movimento passou a ganhar um massivo número de seguidores e suas ações de intolerância começaram a deixar a população local furiosa. Durante um período, Hong deixou o grupo por vários meses, mas retornou em 1849, e, junto com Feng, reuniu líderes entre os Adoradores-de-Deus, os quais mais tarde comandaram os Taipings.


           Decisões governamentais, como a mudança de comércio para Xangai, criaram uma crise econômica ao redor de Canton, resultando em descontentamento da população local, desordens e um maior apoio de seguidores aos Adoradores-de-Deus. A partir daí o grupo religioso e revoltoso de Hong cresceu rapidamente, onde muitos Hakkas se juntaram ao movimento para se protegerem dos Punti, aqueles, basicamente, não-Hakkas e que começaram a organizar milícias apoiadas pelas forças militares do governo. Nesse meio tempo, em 23 de novembro de 1849, o filho de Hong nasceu, Tiangui, cujo significado é "O Precioso do Paraíso".  No final de 1850, as intermináveis batalhas entre os Hakkas e os Punti na província de Kwangsi cresceram em proporções inimagináveis, e, nesse sentido, Hong e outros membros centrais do movimento decidiram lutar contra a Dinastia Qing, dando início oficial à Rebelião Taiping. Em 1851, Hong declarou a fundação de um estado e o nomearam de Tai Ping Tian Guon estado 'Reino Celestial da Grande Paz' (Tai Ping Tian Guon) como uma nova dinastia para a China, a qual chegaria para acabar com todos os problemas do país. O termo 'Tian Guon' (Reino Celestial) foi derivado do termo 'Reino de Deus' da primeira sentença do capítulo cinco do Sermão da Montanha, Evangelho de Mateus: "Bem-aventurados os pobres por espirito, porque deles é o Reino de Deus!"

          Em 1851, os rebeldes Taipings lançaram um levante na região de Guangxi, e, em 25 de setembro do mesmo ano, eles capturaram a primeira cidade, Yogan.


           Pouco tempo depois, o novo governo opositor militarizado Taiping foi consolidado sob o comando de Hong, este o qual ficou conhecido como o Rei Divino (Tien Wang). Assim que assumiu esse posto, após entrar em Yogan em 1° de Outubro, Hong apontou outros cinco Reis: Yang Hsiu-ching, o Rei do Leste e o Primeiro-Ministro Taiping; Hsiao Chao-kuei, o Rei do Oeste; Feng Yun-shan, o Rei do Sul; Wei Chang-hui, o Rei do Norte; e Shih Ta-kai, o Rei Assistente. Como segundo em comando, o Rei do Leste controlava os outros quatro reis, ganhando esse privilégio após Xiao Chaogui ter sido ferido em batalha, em Dezembro de 1851. Após a consolidação do governo rebelde, o foco aumentou para aglutinar mais pessoas para o movimento, e, para isso, aumentou-se a inflamação do ódio contra os Manchus, os quais eram frequentemente referidos pela sua etnia diferenciada e já tinham sido reconhecidos previamente como os demônios que deveriam ser derrotados por Hong a pedido do seu suposto pai, Deus.


             As forças Taiping, as quis agora somam mais de 40 mil combatentes, começaram um cerco na cidade de Guilin e após falharem em conquistá-la, continuaram sua marcha para o norte. Nessa jornada, Feng Yunshan (Rei do Sul) é mortalmente ferido por um sniper e, como retribuição pela sua morte, as forças Taiping atacaram a cidade de Quanzhou e mataram a maior parte dos residentes. Após o massacre, Hong e os seus seguidores continuaram a viagem guiados pelo Rio Xiang. Porém, pouco tempo depois, os rebeldes caem em uma armadilha organizada pelo governo Imperialista e mais de 10 mil membros do grupo são ou mortos em batalha ou afogados. Mesmo com a maior parte dos mortos fazendo parte dos membros originais dos Adoradores-de-Deus da província de Guangxi que tinham dado real força ao movimento, à medida que o exército Taiping atravessou a província de Hunan mais de 50 mil novos convertidos se juntaram à marcha rebelde. Muitos nem se importavam muito com o cunho religioso do movimento, querendo apenas melhores condições de vida e justiça dentro da sociedade chinesa em crise.

            Cada vez mais fortes e numerosos, os Taipings resolveram fazer o cerco da cidade de Changsha. Além do cerco falhar e ser abandonado em Novembro de 1852, Xiao Chaogui, o Rei do Oeste e a 'voz' de Jesus é morto com um tiro durante a investida. Porém, dois meses depois os rebeldes conseguem conquistar um grande prêmio: a cidade de Wuchang, em 12 de Janeiro de 1853. Todas as riquezas da cidade são tomadas e enchem os cofres do 'tesouro comum' do Reino Divino. Eles saem da cidade no dia 10 de Fevereiro de 1853. levando bastante ouro, 10 mil novos seguidores e 2 mil novas embarcações que se somaram à sua crescente força naval. Com isso, o objetivo passa a ser alcançar a "divina" cidade de Nanquim pelo Rio Yangzi e tomá-la, algo feito com sucesso em um curto período de tempo.


           Mesmo com a morte dos Reis do Oeste e do Sul ainda no início da Rebelião, a competência das forças Manchu e as estratégias, ideologias revolucionárias, organização e disciplina dos rebeldes permitiram que esses últimos continuassem o avanço para o norte da China e acúmulo de cada vez mais seguidores. Os Taipings passaram a controlar várias provinciais e tinham estabelecido Nanking como a cidade capital do governo rebelde. A partir daí, eles embarcaram em uma expedição de dois anos ao norte para atacar Pequim, com cerca de 70 mil soldados. Porém, por não terem avançado diretamente para a região e ainda estarem pouco preparados para o severo inverno do norte da China, o governo Imperial foi capaz de convocar ajuda das províncias e, apesar de algumas bravas lutas contra os Imperialistas, os rebeldes estavam pouco preparados para a expedição, e sofreram uma humilhante derrota e completa aniquilação das tropas enviadas. Por outro lado, os Taipings apertaram as forças governamentais no norte e blindaram sua capital contra ataques. E indo para o Oeste, os Taipings estavam conseguindo grandes vitórias, sendo que pelo ano de 1856 a campanha rebelde nessa região terminou com sucesso. Embora a estratégia militar dos Taipings contivesse várias falha e resultava em vitórias muitas vezes por tentativa e erro, eles continuaram sua trajetória de destruição pela China.

    INTERFERÊNCIA OCIDENTAL E TERROR EM NANQUIM

          Assim como o governo imperial, as nações Ocidentais não ficaram assistindo à crescente Rebelião de forma passiva, a qual estava causando um caos ao longo do território chinês, afetava negativamente o comércio, e, no quadro geral, trazia grandes ameaças aos interesses estrangeiros e até mesmo um temor trago pela visão Taiping distorcida do Cristianismo. Assim, apesar do exército Imperial já estar desmoralizado e corrupto, e largamente desunificado em várias unidades locais comandadas por líderes da alta sociedade (como Tseng Kuo-fan, que defendia a política Confuciana e a supremacia Manchu), houve uma decisiva ajuda oriunda da Inglaterra para suprimir os rebeldes. Apoio militar direto e treinamento estratégico, junto com assistência financeira indireta, vieram do lado britânico, este o qual simpatizou com os Manchus (principalmente por causa do apoio deles ao comércio de ópio, em completa oposição aos Taipings) e esperava obter benefícios futuros em um cenário de derrota dos rebeldes que compensariam o esforço militar gasto. Porém, essa massiva ajuda não veio de imediato.

           Apesar da impaciência dos britânicos em continuarem alertando os rebeldes para não interferirem em suas relações comerciais com a China e não ameaçarem seus cidadãos e interesses em Xangai, e do grande desapreço ao Cristianismo adotado pelos Taipings, o governo da Inglaterra manteve-se em grande parte afastado da Rebelião. Indo para o final de 1856, conflitos internos enfraqueceram a organização e a liderança dos Taipings. O Rei do Leste com seu poder e arrogância cada vez maiores, e usando e abusando do fato de ser a 'voz de Deus', levou à inveja e fúria de Hong e à ordem do Rei Divino de executá-lo. O Rei do Norte e os seus seguidores assassinaram o Rei do Leste e mais vinte mil dos seus subordinados. Porém, pouco depois, as ambições do Rei do Norte cresceram, levando-o a tentar o assassinato do Rei Assistente. Como punição, após falhar com seu plano, o Rei do Norte foi decapitado. Toda essa confusão e carnificina levaram à desintegração da liderança entre os Taipings.


         O Rei Divino tentou apontar novos promissores sucessores para entrar no lugar dos Reis caídos - Hong Renfa (Rei da Paz) e Hong Renda (Rei da Bênção), ambos irmãos mais velhos de Hong -, mas nenhum deles possuíam boas habilidades de comando e administração. Batalhas começaram a ser perdidas e o movimento rebelde entrou na defensiva. Isso facilitou a manutenção da neutralidade dos britânicos e os esforços em construir melhores relações comerciais com o governo Imperial, as quais enfrentavam resistência e pesados danos devido à intensa pirataria nos portos chineses. Essa insubordinação aos tratados comerciais oriundos da primeira fase da Guerra do Ópio foi escalando, especialmente em Canton, onde a contínua resistência em acatar as exigências britânicas levaram ao cercamento dos seus portos pela força naval britânica. Eventualmente isso levou ao bombardeio de Canton pela Inglaterra e pela França, em 29 de Dezembro de 1857. Outros ataques estrangeiros também ocorreram mais tarde contra os Manchus para forçar uma maior abertura e liberalização comercial da China, envolvendo os EUA, Inglaterra, Rússia e a França.

           A partir de 1859, a Rebelião Taiping entrou em sua fase mais intensa. Hong começou a reorganizar e revitalizar o dissipado movimento rebelde. Ele revisou a teologia Taiping e encorajou estudos bíblicos como parte dos exames nacionais. Enquanto estava racionalizando o Cristianismo Taiping, Hong ampliou a ideologia rebelde para tentar ganhar suporte dos acadêmicos de alto escalão, tentou reorganizar o governo rebelde e sugeriu reformas objetivando a modernização da China. Hong tentou até mesmo se aproximar dos estrangeiros, para angariar um maior poder. Apesar desses esforços não terem surtido muito efeito na busca de apoio fora da tradicional 'comunidade' rebelde, eles serviram para dar uma nova vida ao movimento. Ao mesmo tempo, desesperados por suprimentos, os Taipings começaram a se mover para fora de Nanquim, para capturar as regiões de Soochow, Hangchow e Changchow. E essas invasões coincidiram com a temporada da seda, o que começou a arruinar o comércio de seda da China e aumentar o alerta dos britânicos quanto à segurança de Xangai. Para proteger a cidade, as autoridades chinesas pediram ajuda dos estrangeiros. Apesar de quererem evitar conflitos com os Taipings, os britânicos estavam preparados para defender seus interesses comerciais.

            Em 19 de Agosto de 1859, o inevitável aconteceu: os rebeldes atacaram Xangai. Como resposta as tropas britânicas e indianas os repulsaram, após três dias de intensa batalha. Logo depois, os franceses e britânicos assumiram a ocupação militar em Xangai, alertando os rebeldes contra outros ataques. Mesmo assim, a Inglaterra assegurou que continuava neutra no conflito, já que estava, supostamente, apenas assegurando seus interesses comerciais. A Rebelião Taiping continuou a prejudicar o comércio na China, forçando a Inglaterra a entrar em contato direto com eles para negociar acordos de paz, em Fevereiro de 1861, através do Almirante Hope. Após o encontro, os rebeldes concordaram em não atacar Xangai por um ano, e permitiram que os comerciantes britânicos tivessem acesso às regiões de Hankow e Kiukiang. Absortos em sua guerra contra os Manchus, os Taipings passaram a prestar atenção nas rotas comerciais apenas para evitar a hostilidade britânica. Nesse período também, Hong mudou o nome de ´Reino Divino de Taiping´ para ´Reino Divino de Deus´ e tornou-se mais recluso e passou a se considerar um ser divino, não apenas uma ferramenta de Deus. Reportes começaram a surgir que ele estava se tornando um louco.

           Porém, por causa das políticas de conciliação de Hong ao encontro do Ocidente, sua imagem caiu em má reputação entre boa parte dos rebeldes, levando ao seu rebaixamento de influência. Assim, os comandantes Taipings passaram a ignorar as ordens de Hong, e suas campanhas militares os trouxeram bem próximos de colidir com os britânicos, e isso foi a gota d´água. Ao final de 1861, a neutralidade inglesa deixou de existir. Em 1862, os britânicos abertamente se tornaram parceiros da causa Imperial e ajudaram o governo central a acabar com o movimento. Enquanto ocupando Ningpo, os Taipings ameaçaram atacar Xangai novamente, apesar do acordo de trégua que fizeram e, eventualmente, impediram o fluxo de suprimentos para dentro da cidade. Ao final de Abril de 1862, as forças britânicas, francesas e chinesas se juntaram para limpar os rebeldes de um rais de 30 milhas ao redor de Xangai. Em Maio, as forças navais britânicas e francesas bombardearam Ningpo, expulsando os Taipings e entregando a cidade para os Imperialistas. Essa aliança entre os estrangeiros e os Imperialistas levou aos rebeldes a lutarem mais desesperadamente e a Rebelião se intensificou.


          Em 1864, dando prosseguimento às vitórias, as forças Imperiais derrotaram os Taipings. A cooperação militar Sino-Britânica mostrou-se muito superior aos esforços rebeldes. Nos últimos meses que restaram antes da queda de Nanquim, os rebeldes continuaram a luta pela sua causa já perdida. As forças Imperiais lançaram uma campanha dupla, lutando na província de Chekiang enquanto cercavam a capital dos rebeldes, e deixando-os famintos e extremamente enfraquecidos. A captura de Chang-chou em Maio de 1864, seguindo a recaptura de Soochow em Dezembro de 1863 - onde vários chefes Taipings se renderam -, foi um dos últimos respiros de luta dos rebeldes. Em Junho, Hong, muito doente, acabou morrendo em Nanquim e, no mês seguinte, a cidade sucumbiu às forças Imperiais. Apesar de alguns poucos Taipings restantes na intensa batalha de Nanquim terem se juntado a outros focos de resistência, o sonho do Reino Divino da Grande Paz foi destruído.


           No final, a Rebelião Taiping foi o mais devastador evento na China durante o século XIX e o segundo mais sangrento da História, deixando 20-25 milhões de chineses mortos em 14 anos de conflito. Mesmo na década de 1950 algumas partes da região central do território chinês não tinham se recuperado completamente da destruição da Era Taiping, onde somou-se, claro, os eventos da Guerra do Ópio.

Mapa da Rebelião Taiping

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   OS TAIPINGS POSSUÍAM ALGUMA CHANCE DE VITÓRIA?

           Muitos historiadores geralmente concordam que a Rebelião Taiping falhou por causa das suas contradições internas, especialmente os problemáticos conflitos étnicos entre os chineses em meio à gigantesca guerra e o envolvimento da religião Cristã. Os Taipings praticavam uma forma ortodoxa do Cristianismo que assustava os olhares internacionais no Ocidente e o seio Cristão do movimento ofendia profundamente as já bem estabelecidas crenças Orientais entre a maior parte da população chinesa, particularmente o Confucianismo que baseava a sociedade acadêmica de alto nível da China. Ambos os aspectos criavam uma forte tensão em todas as esferas da sociedade e política chinesa.

            Somando-se a isso, enquanto os Taipings formularem um sistema de comunismo de mercadorias baseado em um "tesouro sagrado", advogavam pela redistribuição de terras sobre os princípios comunistas e defendiam igual posição para as mulheres, essas reformas permaneceram em sua maioria não implementadas, já que o foco permaneceu sempre na luta armada e não em reformas econômicas, políticas e sociais. Essa falta de comprometimento com os seus ideais enfraqueceram o prestígio da Rebelião. Isso sem contar que os camponeses viram com hostilidade um sistema econômico revolucionário que não satisfazia seus desejos pela propriedade privada de terras. Para finalizar, o direcionamento político e econômico do movimento rebelde era instável e muitas vezes incerto, levantando preocupações das figuras estrangeiras quanto ao futuro do comércio com os chineses.
 
          Nesse mesmo caminho, enquanto um grande fluxo de pessoas miseráveis se juntavam cada vez mais à Rebelião, essas mesmas pessoas não tinham ideia de quem era do tal do "Imperador Deus" (Deus Cristão), mas estavam interessadas em adquirir farta comida e prazeres oferecidos pelos líderes rebeldes. Portanto, um grande número de pessoas familiarizadas apenas com religiões tradicionais Chinesas se juntaram ao Exército Taiping não por causa da devoção à fé Cristã defendida pelo movimento, mas para adquirir alimento e outros recursos que eles desesperadamente precisavam, ou seja, seguiram a "ideologia das massas" e não a ideologia Taiping.

          De fato, a ideologia das massas da Rebelião Taiping resultou em suas características de 'pilhagem': quando o Exército Taiping ocupava uma cidade, aqueles que se rendiam, incluindo os oficiais Qing e civis, eram assassinados pelos soldados Taiping e suas propriedades eram tomadas. Por exemplo, de acordo com registros produzidos por Shen Juanxi, um sobrevivente do massacre promovido pelo Exército Taiping após a batalha de 1853 de Nanking, seguindo a captura Taiping da cidade histórica, "existiam corpos de civis por todas as ruas enquanto soldados forçavam pessoas locais que seriam assassinadas a entregar suas riquezas colocando machetes em seus pescoços" (Ref.12). Massacres que lembravam o horror em Nanking em 1853 repetidamente ocorreram durante a Rebelião Taiping, mesmo assim as lideranças do movimento nunca procuraram pará-los, provando que, no geral, tanto os membros de menor status quanto os membros de maior status da Rebelião priorizavam satisfazer a si mesmos ao invés de estabelecer um "Reino Celestial" sob os ensinamentos de Hong.

          Por fim, a ideologia das massas levou crítica falha à Rebelião Taiping ao unir de forma não intencional todos os oficiais regionais Qing contra um inimigo comum em ordem de preservar suas vidas e propriedades. Em outras palavras, essa ideologia tornou impossível para oficiais sêniores Qing, que possuíam enorme fortuna e poder, se juntarem à Rebelião, causando uma lenta expansão do Reino Celestial Taiping, fomentando a ascensão de poderosas milícias anti-rebeldes - como o Exército Sempre-Vitorioso (Ref.13) - e dando tempo para a mobilização das forças dinásticas Qing. De fato, houve uma obstinada e agressiva resposta das classes sociais mais elevadas para deter o Exército Taiping, sem qualquer brecha para negociações. Para citar um exemplo, Bao Lishen, um membro de classe mais alta da Cidade de Bao, Província de Zhejian, liderou por iniciativa própria seus homens para lutar contra os rebeldes por quase um ano e de forma contínua, matando mais de 13 mil soldados Taiping e mantendo não menos do que 10 mil como prisioneiros, segundo registros históricos (Ref.12).
           
            Com falta de suporte da alta classe acadêmica, da alta classe social e, eventualmente, de grande parte dos camponeses, e com os distúrbios culturais trazidos pela bandeira Cristã, os Taipings não conseguiriam ultrapassar um limite de poder para o estabelecimento de uma nova dinastia na China e proteção contra a interferência estrangeira, sendo esse provavelmente o conjunto de causas que já premeditavam a derrota do movimento rebelde pelas forças governamentais Qing. De qualquer forma, os Taipings, liderados por Hong, representaram o mais formidável desafio para a tradicional civilização chinesa no século XIX e talvez poderiam ter trazido a queda da Dinastia Qing seis décadas antes do seu eventual colapso caso o movimento rebelde fosse um pouco melhor estruturado, articulado e orientado. 

          Até hoje o Partido Comunista Chinês trata com orgulho o movimento liderado por Hong.

Escultura de Hong Xiuquan , no Museu de História do Reino Celestial Taiping, em Nanquim, China (太平天国历史博物馆)


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    CONCLUSÃO

         Mesmo com a enorme escala da Rebelião Taiping e seus grandes impactos na civilização chinesa, esse conflito é pouco conhecido no Ocidente, demonstrando um claro descaso com a cultura e história oriental. Isso tende a dificultar o estabelecimento de uma melhor relação e de uma maior tolerância com os costumes e tradições do Oriente. Além de moldar os rumos da China e suas relações internacionais, o conflito também marcou um grande avanço nas estratégias e táticas militares chinesas, especialmente no campo de aprimoramento das fortificações e das armas. Conflitos anteriores na China tinham sido lutados com armas de mão - espadas, alabardas, lanças e antigos tipos de armas de fogo como mosquetes -, mas a partir da ascensão dos rebeldes Taiping todas as partes começaram a usar rifles e peças de artilharia compradas dos mercadores europeus em Xangai e até mesmo oriundas da manufaturação de novas versões dessas inovações militares pelos chineses. O uso dessas armas transformaram profundamente ambos os modos de luta e de logística necessários para suprir os exércitos.

          É também argumentado que as massivas perdas e deslocamentos populacionais em diversas áreas na China causadas pela Rebelião Taiping podem ter promovido positivos avanços tecnológicos, demográficos e sócio-econômicos, favorecendo mudanças em instituições e na capacidade fiscal, e facilitando a transição Malthusiana (Ref.3) - ou seja, do regime Malthusiano de alto crescimento populacional e sem real crescimento de renda para um regime moderno de sustentado crescimento de renda com limitado crescimento populacional.

         Outro ponto importantíssimo é mostrar que as religiões, independentemente quais sejam, podem ser gravemente distorcidas para justificar a violência extrema. Sob a bandeira Cristã, tivemos o massacre de dezenas de milhões de pessoas em um único conflito. Assim também ocorrem conflitos e terrorismo com a distorção do Islã, por exemplo. No final, a religião se torna apenas uma ferramenta de poder e seus princípios originais acabam sendo deixados de lado para melhor se encaixarem com o objetivo de guerra.


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REFERÊNCIAS
  1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17152761
  2. https://history.libraries.wsu.edu/fall2015/2015/09/01/derek-coburn/
  3. https://european.economicblogs.org/voxeu/2018/yang-lasting-taiping-rebellion
  4. https://www.nottingham.ac.uk/research/groups/languagestextssociety/documents/lts-journal/issue-4/lts-issue-4-article-shu-a.-taiping-rebellion-movement.pdf
  5. http://afe.easia.columbia.edu/special/china_1750_taiping.htm
  6. http://scholarworks.umt.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=4856&context=etd
  7. http://afe.easia.columbia.edu/special/china_1750_opium.htm
  8. http://www.olemiss.edu/courses/inst203/taiping.txt
  9. https://www.armstrong.edu/history-journal/history-journal-a-critique-of-marxs-view-of-the-taiping-rebellion-and-its-o
  10. http://www.cam.ac.uk/research/news/portrait-of-a-bloody-siege
  11. http://chinasince1644.cheng-tsui.com/sites/chinasince1644.cheng-tsui.com/files/upload/5-A.pdf
  12. Mao, Bincheng (2021). Mob Ideology or Democracy: Analyzing Taiping Rebellion’s Defeat and Revolution of 1911’s Triumph in Ending the Qing Dynasty. Swarthmore Undergraduate History Journal, Vol. 2, Iss. 1. https://doi.org/10.24968/2693-244X.2.1.2
  13. Orbach, Danny (2021). Foreign Military Adventurers in the Taiping Rebellion, 1860–1864. Journal of Chinese Military History. https://doi.org/10.1163/22127453-BJA10006
  14. Nagy, Gábor Dániel (2021). The Taiping Rebellion Perceived as a New Religious. MovementWuhan Journal of Cultic Studies, Volume 1, Issue 2.