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O polêmico Transplante de Cabeça


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          Em 1816, Mary Godwin e seu parceiro amoroso, o poeta Percy Bysshe Shelley - com quem ela se casou mais tarde nesse mesmo ano -, se reuniram na Suíça, próximo do Lago Geneva. Acompanhados também pelo Lorde Byron, eles avidamente discutiram literatura, política e ciência. Uma noite, Byron sugeriu que eles deveriam fazer parte de uma competição para escrever um conto de terror. Com esse incentivo e outras inspirações, Mary Shelley, em uma madrugada sombria e tempestuosa, começou a escrever uma história explorando questões sobre responsabilidade social e individual, usando conceitos e temáticas científicas abordadas na época, especialmente no campo cada vez crescente da medicina. Assim foi iniciado os passos para a construção de uma das mais impactantes obras do mundo Ocidental, ´Frankenstein, or The Modern Prometheus´, publicada em 1818.

           Basicamente, a história de Shelley centra-se na busca do homem pela ressurreição da vida através da ciência. Nessa busca, o Dr. Frankenstein cria seu ´Monstro´ através de partes humanas de várias pessoas mortas e uso da eletricidade para animar tal montagem orgânica. No fim, desprezada pela sociedade, a cria volta-se contra o seu criador. Bem, deixando um pouco de lado o teor filosófico da obra, e explorando o lado científico da história, o "Monstro de Frankenstein" ao longo das décadas e avanços na medicina foi ficando cada vez mais plausível, especialmente com o desenvolvimento dos primeiros transplantes de órgãos, estes os quais são responsáveis por salvar a vida de centenas de milhares de pessoas todos os anos. Ou seja, partes de outras pessoas vivas ou falecidas sendo usadas para prologar a vida de pessoas doentes. Hoje já é possível até fazer transplante de pênis!

Retrato artístico de Mary Shelley e a primeira edição do seu famoso livro, em 1818

            Mas algo que desde o começo do século XX vem chamando a atenção dos cientistas é a realização do tão polêmico, desafiador e fantástico transplante de cabeça. Além de uma curiosidade médica, imagine as possibilidades que tal procedimento poderia gerar. Pessoas paralisadas do pescoço para baixo (tetraplégicas) poderiam voltar a andar de novo; pessoas com danos irreparáveis no corpo poderiam ganhar um novo corpo para repousarem suas cabeças; um corpo velho, poderia ser trocado por um novo. Aqui, sim, estamos chegando em um nível à altura do nosso Monstro de 1818, e carregando todo um peso de discussões não só científicas, mas como éticas, religiosas e filosóficas, e fazendo jus, finalmente, ao livro de Shelly. E essa discussão esquentou ainda mais no meio acadêmico e no meio popular nos últimos meses quando o Dr. Sergio Canavero e colaboradores anunciaram que estariam fazendo um transplante de cabeça em humanos ainda este ano e utilizando inclusive um pré-protocolo de teste no melhor estilo ´Frankenstein´!

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ATUALIZAÇÃO (20/08/17): O russo Valery Spiridonov, que iria ser o primeiro paciente a se submeter ao transplante de cabeça (ou de corpo, dependendo da perspectiva) anunciou no meio deste ano que não mais fará a arriscada e controversa cirurgia. Ele pensou melhor sobre o assunto e preferiu melhorar sua qualidade de vida através de cirurgias mais convencionais. Dr. Canavero anunciou que já possui um novo candidato, na China, mas nenhum detalhe foi publicado. (Ref.19)


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             Mas será realmente possível o tão ousado transplante de cabeça entre humanos? Quais os desafios? Onde estamos nessa área? Quais as implicações éticas?



     PRIMEIROS PASSOS E PROGRESSO

           Desde o começo dos anos de 1900, profissionais na área médica já discutiam a possibilidade de um transplante de cabeça, apesar dos vários desafios enfrentados mesmo em cirurgias de transplantes relativamente fáceis, envolvendo órgãos diversos no corpo. Um dos maiores desafios nesse tipo de cirurgia - transplante - repousava na anastomose vascular. Como cortar e reparar um vaso sanguíneo e, subsequentemente, restaurar o fluxo sanguíneo sem interromper a circulação?

           Foi somente mais tarde, ainda na década de 1910, que o cirurgião francês, Dr. Alexis Carrel, resolveu o problema ao utilizar um método mais confiável de suturação para unir novamente vasos cortados, usando apropriadas agulhas, linhas de suturas extremamente finas e abertura dos vasos com três suturas retidas na forma de um triângulo. Seu método se mostrou bastante efetivo, prevenindo hemorragias pós-operatórias, embolismos e rigidez vascular no local das suturas. Após usar suas novas técnicas para realizar com sucesso transplantes de órgãos em animais - na maioria das vezes de rins e tireoide - Carrel voltou sua atenção para aquilo que prendia a imaginação e anseio dos cirurgiões na época: o transplante de cabeça.

           Assim, em 1908, Carrel e o fisiologista norte-americano Dr. Charles Guthrie realizaram o primeiro transplante de cabeças entre cães. Eles anexaram a cabeça de um cão no pescoço de outro cão, conectando as artérias de uma forma tal que o fluxo sanguíneo primeiro circulava para a cabeça decapitada e, depois, para a cabeça do cão dono do corpo parasitado. Antes de ser anexada com sucesso, a cabeça decapitada ficou sem circulação sanguínea por cerca de 20 minutos, e enquanto essa última demonstrou reflexos auditivo, visual e cutâneo de movimento, pouco tempo depois do procedimento sua condição logo se deteriorou e foi necessário sacrificá-la depois de algumas horas. Foi uma frustrante tentativa e mostrou que esse tipo de procedimento não seria nada fácil de ser realizado com um mínimo de sucesso.

Carrel (1873-1944), à esquerda, e Guthrie (1880-1963), à direita,, apesar do fracasso com o transplante de cabeça, promoveram grandes avanços na área de transplantes em geral, com o primeiro recebendo, inclusive, o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina pelos seus trabalhos, em 1912.

          Após os trabalhos de Carrel e Guthrie, outro grande avanço na área do transplante de cabeças veio nos anos de 1950, com o cientista e cirurgião soviético Dr. Vladimir Demikkov. Assim como seus predecessores, Demikkov fez importantes contribuições no campo de transplantes de órgãos entre animais, especialmente em cirurgias torácicas, introduzindo técnicas inovadoras que permitiram que ele fizesse a primeira cirurgia ´bypass´ coronária em cães, no ano de 1953 (quatro cães sobreviveram por mais de 2 anos após essa cirurgia). Aproveitando os frutos do seu trabalho, Demikhov resolveu também tentar o transplante de cabeça também em cães, e os resultados obtidos foram bem melhores do que já havia sido alcançado, onde as cabeças transplantadas eram capazes de ver, se mover e ingerir água por conta própria.

Cão de duas cabeças criado por Demikhov

            Demikhov e seu time fizeram uma documentação bem detalhada dos procedimentos que efetuaram para o transplante, a qual foi publicada em 1959. Cuidadosamente preservando o suprimento de sangue para os pulmões e corações dos cães doadores, a cirurgia realizada não foi um transplante isolado de cabeça, mas, sim, da parte dianteira do cão (cabeça e patas dianteiras). Na terceira fase do transplante, os vasos sanguíneos principais da parte dianteira isolada foram conectados com os vasos correspondentes do cão receptor, como mostrado na imagem acima, onde temos o cão de duas cabeças obtido no experimento final. O mais longo período que qualquer cão sobreviveu após outros procedimentos feitos pelo time foi 29 dias, sendo que a maioria sobreviveu apenas por alguns poucos dias. Um dos grandes problemas responsáveis pelas mortes precoces era a falta de imunossupressores na época.


      IMUNOSSUPRESSORES

             Apesar dos avanços na área dos transplantes de órgãos e membros, algo problemático impedia que esses procedimentos cirúrgicos tivessem qualquer aplicação prática em humanos: o violento ataque imune do corpo receptor com o as partes corporais estranhas sendo implantadas no mesmo. Sim, todos devem conhecer essa dificuldade nos procedimentos envolvendo transplante de órgãos, estes os quais tendem a ser rejeitados pelo paciente alvo. Para sanar isso e evitar uma rápida deterioração do paciente, são usados imunossupressores que diminuem a resposta do sistema imunológico no indivíduo que recebeu o órgão, fazendo com que a adaptação desse último ao novo organismo seja bem menos agressiva. Mas na época de Guthrie, Carrel e Domikhov os imunossupressores não existiam na prática médica, e foram descobertos no decorrer dos anos de 1950 e 1960, estando realmente disponíveis a partir dos anos 60.

            Nesse período, um neurocirurgião norte-americano, Robert White, em 1965, resolveu também tentar o transplante de cabeça, inicialmente em cães e, depois, em chimpanzés. Porém, nos cães, ele não almejava transplantar toda a parte da cabeça, mas, sim, apenas o cérebro (estilo o filme recente Get Out). Para isso, foram necessárias novas técnicas cirúrgicas, com o grande desafio de manter a circulação sanguínea em um cérebro isolado. White criou laços vasculares para preservar a anastomose entre artérias internas do maxilar e da carótida do cão doador, sistema este que ficou conhecido como "auto-perfusão". No próximo passo, o cérebro foi posicionado entre a veia jugular e a artéria carótida do crânio do cão receptor. Com esses procedimentos, White conseguiu realizar 6 transplantes de cérebros com sucesso, com os cães sobrevivendo entre 6 horas e 2 dias. Utilizando leituras de electroencefalograma (EEG), o neurocirurgião também mostrou que as funções metabólicas dos cérebros transplantados estavam em alta atividade, reforçando os resultados positivos.

           Então, em 1970, e já usando imunossupressores disponíveis na época (como a azatioprina, a 6-mercaptopurina e corticoesteroides), White resolveu levar seus experimentos para um novo nível, com o objetivo agora de realizar um transplante de cabeça total entre macacos Rhesus, onde a cabeça de um seria colocado no lugar da cabeça de outro - diferente dos experimentos anteriores onde a cabeça era anexada a outro corpo completo) -, como mostrado na figura abaixo. O inédito procedimento foi feito empregando sutura direta da carótida e das veias jugulares, e uma laminectomia cervical no nível da quarta indo para a sexta vértebra cerebral. Por causa do subsequente choque e hipotensão que se seguiram à transeção, infusões de catecolamina e suporte mecânico pulmonar tiveram que ser iniciados e mantidos durante o experimento. Entre os quatro transplantes efetuados dessa forma, de três a quatro horas depois da cirurgia todos os macacos foram capazes de mastigar, engolir comida, seguir movimentos com os olhos e morder se oralmente estimulados. Além disso, através de monitoramento por EEG, White demonstrou que o cérebro nesses primatas exibiam padrões característicos de um estado acordado.

Ilustração original do artigo publicado por White, mostrando como foi realizado o transplante entre os macacos Rhesus

           Embora utilizando ferramentas e procedimentos cirúrgicos já bem avançados, os macacos Rhesus dos experimentos sobreviveram apenas entre 6 e 36 horas, com apenas um deles alcançando os 8 dias de vida, por causa de problemas de revascularização - as suturas não foram efetivas o suficiente para permitirem um fluxo sanguíneo desimpedido, requerendo contínuo uso de heparina, o que levou a uma significativa perda sanguínea e limitado tempo de longevidade. Somando-se a isso, temos o problema da transeção da espinha cervical: sem um método de fundir novamente a coluna espinhal cortada, o corpo do macaco fica completamente paralisado na linha abaixo do corte, sendo necessário contínuo suporte respiratório para mantê-lo vivo. E, claro, apesar do problema dos imunossupressores ter sido sanado em parte, o uso correto desses medicamentos ainda estava sendo otimizado. Geralmente as dosagens aplicadas eram muito altas ou eram combinados de forma ineficiente, o que contribuiu também para baixíssima longevidade dos primatas. Apenas a partir de 1999 que a combinação e doses eficientes de agentes imunossupressores foram alcançados.

       Em 1999, Robert White também fez uma previsão, após seus esforços no transplante de cabeça:

   ANASTOMOSE ESPINHAL

          Outro grande desafio que assombrou os cirurgiões até White: como fazer para fundir, com sucesso, as medulas espinhais da cabeça doadora com a do corpo do receptor, permitindo ganhos de funções motoras? Esse problema persistiu até ser abordado por recentes experimentos do cirurgião chinês, Xiaão Ping Ren, e pelo controverso neurocirurgião italiano, Dr. Sergio Canavero.

          Em 2014, Ren ofereceu uma alternativa para o tradicional método de transplante de cabeça, onde antes a transeção da medula espinhal ocorria no nível da vértebra C3/C4 e, portanto, não preservava o brainstem do doador e levava à perda da respiração e circulação sanguínea independente (ou seja, presença obrigatória de máquinas de suporte vital para manter o paciente vivo). Mantendo a integridade do brainstem da cabeça doada, Ren conseguiu manter ratos com a cabeça transplantadas com a respiração e circulação independentes e, consequentemente, maior potencial de longevidade e esperança de uso da técnica em humanos.

           Já Canavero resolveu seguir por outro caminho, e anunciou seu projeto "HEAVEN" (Head Anastomosis Venture) (Ref.3), no qual está presente sua peça fundamental: o GEMINI, focado na busca de uma solução para manter íntegra a medula espinhal do novo indivíduo formado. Ao contrário do que ocorre em lesões traumáticas, Canavero almejava por uma transeção altamente controlada e precisa da medula espinhal, e, através de fusógenos e neurônios propriospinais (PNs), conservar sua integridade, recuperação e posterior total fusão. Os PNs são os responsáveis pela conexão de axônios através do mecanismo cortico-truncoreticulopropriospinal, este o qual é um sistema descoberto no início do século passado por Charles Sherrington, sendo composto por fibras intrínsecas que formam uma rede de conexões entre os segmentos da medula espinhal. Inúmeros modelos animais já demonstraram que os PNs funcionam como "pontes anatômicas", permitindo função motora e recuperação depois de danos no trato corticoespinal. Em relação aos fusogenos, estes são polímeros - como o polietileno glicol (PEG), poloxameros e poloxaminas - que possuem a habilidade de fundir as membranas de células entre si.

          Para mostrar o poder dos fusogenos, em 2004 um time liderado pelo Dr. Richard Borgens, na Universidade de Purdue, tratou cães paraplégicos com injeções de PEG após 72 horas da lesão na medula espinhal e encontrou que mais da metade deles foram capazes de andar dentro de 2 semanas de tratamento. Em 2012, porcos-da-Guinea também mostraram ótima recuperação após receberem nanopartículas de PEG para tratar lesões na medula espinhal. E como essas são lesões, não cortes cirúrgicos precisos, a dificuldade de recuperação é aumentada bastante. Em 2016, Carnavero publicou artigos mostrando que estava conseguindo reparar cães com cerca de 90% da medula espinhal (na transeção) cortada, através de procedimentos usando o PEG, e devolvendo-os a habilidade de andar e, inclusive, correr. Aproveitando os procedimentos de Canavero, cientistas sul-coreanos recentemente afirmaram ter conseguido recuperar os movimentos motores de um cão após cortarem sua medula espinhal e injetarem uma solução de PEG para a reconstituição. Segundo os pesquisadores, dentro de 3 semanas, o cão ganhou novamente sua habilidade de andar. O neurocirurgião sul-coreano da Universidade de Konkuk, e colaborador de Canavero, também afirma ter obtido sucesso em ratos ao utilizar o PEG.

Cão que teve sua medula espinhal reconectada com o PEG por um grupo de cientistas sul-coreanos

          Voltando para a China, Ren já vem experimentando o transplante de cabeças em ratos desde 2015. No seu protocolo, Ren corta apenas uma artéria carótida e a veia jugular contralateral, permitindo que a artéria carótida e aveia jugular intactas continuem fornecendo sangue durante o procedimento para a cabeça a ser transplantada. Isso permitiu que os seus ratos mantivessem uma pressão sanguínea acima de 100/60 mmHG até o final da cirurgia. Seguindo esse guia de revascularização, os roedores mantiveram a atividade cerebral normal e acima de metade deles foram capazes de sobreviver por mais de 24 horas, sendo que a maior longevidade alcançada foi de 6 meses. Ren também realizou, em 2016, e com alegado sucesso, a operação em um macaco, utilizando protocolos do HEAVEN mas sem endereçar a fusão da medula espinhal. O procedimento foi realizado somente para analisar a integridade da circulação sanguínea após o transplante.


Em a) temos o procedimento de Ren sendo ilustrado para ratos e, em b), temos a imagem da primeira cirurgia aplicando o protocolo de Ren em um primata, na Universidade Médica de Harbin 

Um dos ratos de Ren, onde uma cabeça - e membros dianteiros - foi implantada no corpo de outro rato, e o macaco submetido ao transplante de cabeça completo, realizado pelo time de Ren e com apoio dos protocolos de Canavero 

           No final, para muitas questões, mais experimentos em modelos de primatas - incluindo até mesmo pacientes com morte cerebral (realização do procedimento entre os mesmos) - são, idealmente, ainda necessários antes de garantir a segurança para humanos, apesar de Caraveno ter prometido que iria realizar seu primeiro transplante de cabeça em um voluntário ainda neste ano.

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   COMO O PROCEDIMENTO SERIA FEITO EM HUMANOS?

          Primeiro, é interessante estabelecer quais pacientes seriam bons candidatos para o transplante de cabeça hoje. Bem, várias condições se qualificariam. Tetraplégicos com tendência a ter falência múltipla nos órgãos e indivíduos com metástase cancerígena intratável fora da região cerebral são dois exemplos. Na opinião de Caraveno, o primeiro paciente precisa ser alguém, provavelmente, jovem, sofrendo de uma condição que deixou seu cérebro e mente intacta enquanto o resto do corpo sofre grande devastação (distrofias musculares progressivas ou graves transtornos metabólicos, por exemplo). Um jovem Stephen Hawking seria um boa indicação e Caraveno já possui um voluntário.

         Além da condição médica justificando o doador da cabeça, seria hora de escolher o corpo receptor. Esse último precisaria ser um paciente com morte cerebral, ou seja, o cérebro se encontra falecido mas o resto do corpo continua em saudável funcionamento. Sua dimensão corporal precisaria, idealmente, ser bem parecida (altura, robustez), mesmo imunotipo e ausência de transtornos ativos sistêmicos e cerebrais.

          A sala de operação precisa ser grande o suficiente para ser conduzida por dois times cirúrgicos e possuindo equipamentos que possibilitem que o procedimento seja efetuado por ambos de forma simultânea (um com o doador e o outro com o receptor). E já indo para a operação cirúrgica em si, independentemente do tipo de procedimento que será utilizado, é essencial garantir o máximo possível de resfriamento do sistema nervoso para prevenir maiores danos e dar tempo suficiente para os cirurgiões realizarem o transplante. Mamíferos conseguem, no geral e em condições normais, suportar um resfriamento de até 12-15°C por cerca de 1 hora. À temperatura de 15°C a taxa metabólica cerebral em um homem adulto cai para 10% do normal. Recuperações de sucesso após supressão circulatória em humanos já foram reportadas após períodos em torno de 1 hora sob temperaturas inferiores a 20°C.

          Depois do transplante, o paciente será encaminhado para uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), mantido sedado por alguns dias e usando um colar cervical. Durante esse período, pequenos choques de estimulação elétrica seriam dados no paciente para estimular a medula espinhal e fortalecer a conexão entre o novo corpo e o cérebro. Após acordado, problemas de imagem corporal e de identidade precisam ser endereçados durante o período de adaptação do paciente ao novo corpo. Além disso, tratamentos e auxílio psiquiátricos podem ser necessários para prevenir uma reação emocional pós-operatória e para minimizar um estresse ou ansiedade relacionados ao procedimento.

        E enquanto sob regime de imunossupressores no período pós-operatório, biópsias e monitoramentos sanguíneos precisarão ser feitos regularmente e cuidadosamente para a verificação de quaisquer sinais de rejeição e desenvolvimento de anticorpos antidoadores.



        PROBLEMAS A SEREM SUPERADOS



           Apesar de termos hoje disponíveis excelentes imunossupressores - e otimizados protocolos de administração - e técnicas avançadas de anastomose vascular, muscular, gastrointestinal, etc., já testadas exaustivamente nas mais variadas cirurgias ao redor do mundo, existem muitos obstáculos ainda.

           Enquanto Canavero, possui um protocolo cuidadosamente planejado para realizar a transeção na medula espinhal e sua posterior fusão, esse só foi testado em modelos de animais, incluindo cães, ratos e gatos. É fato que todas as espécies de mamíferos possuem um sistema neuromotor muito parecido entre si, mas diferenças significativas existem. Gatos, por exemplo, onde a fusão e recuperação de medulas espinhais lesionadas geralmente resultam em excelentes resultados, são notáveis também por possuírem uma plasticidade única entre os mamíferos no que diz respeito à recuperação de funções motoras (não necessitam de estimulação extrínseca da medula espinhal lombar para voltarem a andar após uma lesão nessa região). Nesse momento, testes em pessoas mortas (explicado no próximo tópico) estão sendo efetuados por Canavero e colaboradores, sem resultados publicados por enquanto.

           Para a revascularização e neuroproteção, temos o procedimento utilizado por Ren em seus ratos, onde a circulação é mantida durante toda a cirurgia ao preservar uma veia e uma artéria. Porém, existem empecilhos físicos que acabariam levando a um curto intervalo de tempo de isquemia cerebral, como, por exemplo, a distância entre as macas de operação e tempo para a suturas. Bem, para tentar resolver isso podemos recorrer a uma melhor otimização da técnica de hiportemia ou utilizar veículos de sangue artificial. No caso da hipotermia, ela é padrão e obrigatória durante o transplante de cabeça desde os experimentos em macacos de White (nesse caso, foi implementada uma profunda hipotermia abaixo dos 25°C). Para os ratos de Ren, o procedimento foi realizado em condições de hipotermia menos agressivas, entre 29 e 33°C, e ainda faltam óbvios dados de qual deveria ser esse valor no caso de humanos, apesar dos valores de resistência já mencionados anteriormente. Nesse caso, Ren, e seu protocolo CSA (anastomose cefalomática) proposto, afirma que a hipotermia não seria um grande empecilho, já que o corpo sendo doado não precisaria estar submetido ao procedimento e, enquanto o corpo fornecedor da cabeça possivelmente sofreria de complicações como bradicardia, hipotensão e tromboses, esse não teria importância, já que seria descartado. O foco de preocupação ficaria somente na cabeça sendo transferida. Em relação ao sangue artificial, existem pesquisas explorando o uso de misturas oxigenadas que poderiam substituir temporariamente a circulação sanguínea em cérebros alvos de uma isquemia, como, por exemplo, o perftorano, um composto orgânico fluoretado de transferência gasosa, este o qual já demonstrou um efeito neuroprotetor e boa oxigenação em pacientes, apesar dos mesmos não estarem sob isquemia cerebral.

           Outro ponto de grande preocupação é a possível manifestação de uma CP (Dor Central, na tradução) após o procedimento de uma transeção do trato espinotalâmico (STT). É esperado que o STT seja fusionado, mas uma ineficiente fusão pode disparar grande dor em indivíduos suscetíveis. A gênesis do CP já foi elucidada e uma cura encontra-se disponível, mas essa última não foi ainda testada em tais situações.

           E mesmo nos desafios já superados, a questão da imunossupressão continua parcialmente em aberto, porque poderosos agentes imunossupressores seriam necessários após o procedimento cirúrgico e não temos bons modelos de como o corpo responderia ao mesmos a longo prazo, ou se seriam bem administrados na situação específica de um transplante de cabeça.


       QUESTÕES ÉTICAS

            Além dos desafios técnicos, problemas éticos também precisam ser considerados.  O que um transplante de cabeça feito com sucesso traria para o significado de identidade humana? Apesar de estarmos comumente reportando o procedimento como um ´transplante de cabeça´, este seria, na verdade, um transplante de corpo, onde o cérebro de um indivíduo estaria recebendo um novo organismo quase por completo. Como o paciente encararia essa impactante mudança?

          O problema da confusão de identidade seria o mais preocupante. A ciência cognitiva moderna mostra que a nossa cognição é estruturada profundamente pelo nosso corpo como um todo. O corpo seria parte fundamental da formação do ´eu´ humano. Portanto, após o transplante, a pessoa encontraria grande dificuldade em incorporar o novo corpo ao seu já formado e estabelecido antigo esquema corporal e visual. Mesmo a memória do papel do corpo original na criação da identidade poderia entrar em conflito com o novo corpo doado. Isso já é visto em limitada extensão em transplantes de mãos e rosto, e podemos citar o conhecido fenômeno de ´Membro Fantasma´ que segue uma amputação, ou seja, a sensação de um membro amputado ou perdido ainda está anexado ao corpo (entre 60 e 80% das pessoas amputadas possuem essa sensação, a qual, na maioria das vezes, é dolorosa e, em alguns casos, nunca deixa de existir completamente). Essa confusão de reconhecimento pode levar a sérios problemas psicológicos, gerar insanidade e, eventualmente, a morte.

          Outro problema é o sistema reprodutor. Como o corpo doado estará carregando o maquinário sexual e reprodutivo de outra pessoa, surgem problemas legais, já que tais partes corporais são proibidas de serem doadas em vários países, como a própria Itália, terra do Dr. Sergio Caraveno.

          Além disso, o procedimento também pode enfrentar problemas de saúde pública ao impedir que os órgãos de uma pessoa com morte cerebral sejam doadas para várias pessoas necessitando de um transplante de coração, rins, fígado, etc. E como é um procedimento delicado, muitos corpos e vidas podem ser perdidas nesse processo.

           Nesse ponto, é também preciso garantir que o paciente voluntário tenha total ciência dos enormes riscos que a operação trará, especialmente por ser algo inédito na medicina. O Dr. Caraveno, por exemplo, insiste que todos os desafios foram superados para a realização do transplante, mas isso passa longe da verdade. Nada é garantido até o procedimento ser feito em um real humano. Essas afirmações superestimadas podem encorajar vários voluntários a se submeterem a um procedimento que, na verdade, pode ter baixíssima chance de sucesso.

          E, por último, mas já sendo violado há muito tempo, reside na ética endereçada aos animais sendo utilizados nos inúmeros experimentos de transplante de cabeça e fusão da medula espinhal, especialmente primatas, gatos e cães. Nada disso está sofrendo real aprovação pelo Comitê de Pesquisa Ética e do Bem-Estar dos Animais. Será que o sacrifício de tantos animais de grande porte é justificado no que se refere à compatibilidade de modelos simulando um real humano? Diferenças significativas existem entre as espécies, e, para um procedimento tão delicado, elas podem representar enormes obstáculos práticos.  E isso está se tornando ainda mais problemático com os experimentos em cadáveres (explicado no próximo tópico) e, em breve, experimentos em pessoas com morte cerebral.

Obs.: É importante mencionar que questões religiosas também entram em peso nessa discussão, de forma paralela ao método científico. A Igreja Católica, por exemplo, apesar de aceitar o transplante de órgãos e outras partes corporais menores - com resistência histórica, válido mencionar - não aceita esse tipo de procedimento, porque o mesmo estaria ferindo gravemente a dignidade humana e o espírito do indivíduo, o qual está unido em todo o seu corpo. Além disso, a confusão na determinação se o procedimento é um transplante de uma cabeça para um corpo, ou de um corpo para uma cabeça, e as dúvidas que pairam sobre o real estado de ´morte´ em um indivíduo com morte cerebral, agravam a situação.

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      CIRURGIA PLANEJADA PARA O FINAL DESTE ANO (FOI CANCELADA)

             O Dr. Sergio Caraveno deixou a comunidade médica inteira em modo de ataque ao anunciar que estaria fazendo o primeiro transplante de cabeça entre humanos em Dezembro (dada estimada) deste ano, aplicando, finalmente, seu projeto HEAVEN. Antes de realizar o procedimento, com a ajuda de colaboradores dos EUA, China e Coreia do Sul, incluindo Dr. Ren, Caravena disse que iria testar primeiro a sua técnica de fusão e reconstituição da medula espinhal em cadáveres ´frescos´, através de algo bem próximo do que o personagem Dr. Frankenstein fez: estimulação elétrica para "reanimar" os corpos e verificar se a fusão foi realizada com sucesso. Se a medula espinhal for conectada de forma efetiva, a corrente elétrica passará pelo início da mesma e alcançará o resto do corpo, gerando sinais de movimentação nos membros e outras partes.

Dr. Sergio Caraveno, diretor do Grupo de Neuromodulação Avançada de Torino, Itália

          Segundo Caravena, o experimento que ele conduziu em cães - incluindo aquele que voltou a ter suas funções motoras após corte em sua medula espinhal - abre caminho agora para os dois últimos passos: testar o procedimento em cadáveres frescos e depois em pacientes com morte cerebral. Caso obtenha sucesso e garantia de segurança em torno de 90%, o próximo passo - que pode acontecer ainda este ano - seria em um voluntário humano, este o qual já possui nome: o russo Valery Spiridonov.

Valery Spiridonov, voluntário para o primeiro transplante de cabeça entre humanos

          Valery Spridonov, 31 anos, seria o primeiro ser humano consciente a ter sua cabeça transplantada para outro corpo. Spridonov sofre de um transtorno genético, conhecido como Werdnig-Hoffmann, que faz com que ele fique preso em sua cadeira de rodas e precise de constante assistência para quase tudo, devido a uma severa atrofia muscular espinhal. "Minha motivação pessoal é a possibilidade de melhorar as condições da minha própria vida e finalmente poder cuidar de mim mesmo, e ficar independente das outras pessoas", afirma o russo. Sua namorada não concorda com sua decisão e diz que aceita Spridonov do jeito que ele é, mas que não impediria o procedimento.

         O procedimento planejado por Caraveno irá utilizar cerca de 150 médicos, 36 horas de operação e custo entre 7,5 e 20 milhões de dólares. O corte na medula espinhal, processo crítico para o resultado final, será feito com a aplicação de um corte especial que utilizará uma força de apenas 10 N - algo baixíssimo quando comparado com os 26 000 N que geralmente estão associados com os danos gerados na medula espinhal durante um acidente de carro, por exemplo. E, então, será finalmente a hora de saber se o protocolo com o PEG realmente funcionará como esperado após a junção da cabeça ao novo corpo.

          Apesar de afirmar desde 2015 (Ref.10) que os desafios impostos para um transplante de cabeça tinham sido superados, o consenso médico discorda avidamente. Muitos dizem que ainda falta pelo menos próximo de 1 década para tal procedimento ser possível de ser realizado em humanos. Alguns especialistas estão comparando Caraveno com o Dr. Frankenstein e chamando seus atuais anseios de "pura fantasia". Arthur Caplan, diretor de Ética Médica na Universidade do Centro Médico de Langone, New York, descreveu Caraveno como um ´maluco´. Já o Dr. Hunt Batjer, presidente da Associação Americana de Cirurgiões Neurológicos, em entrevista à CNN, comentou: "Eu não desejaria isto para ninguém. Eu não permitiria que ninguém fizesse tal procedimento comigo, porque existem coisas piores do que a morte."

           Não ligando para as críticas, Dr. Caraveno planeja seguir em frente com o seu projeto e em entrevista para a BBC, no final do ano passado (Ref.9), chegou inclusive a afirmar que haviam vários voluntários dispostos a realizarem o procedimento, especialmente no Reino Unido. Ele planeja realizar a operação ou no Reino Unido, ou na França ou na Alemanha, ou, mais provável, na China, onde encontraria menos barreiras legais. Desde o começo de 2016, Caraveno vem pedindo ajuda internacional para fomentar o projeto HEAVEN, e conseguiu apoio de peso de agências chinesas e interesse de cientistas russos do Instituto de Física Teórica e Experimental de Moscou - os quais visavam empecilhos tecnológicos no procedimento -, em 2015, além dos já citados colaboradores norte-americanos, chineses e sul-coreanos (em um total de 800 profissionais de saúde decididos a ajudar).

           Segundo Caraveno (Ref.12), muitas pessoas sofrem graves deficiências e problemas de saúde ainda incuráveis ou intratáveis pela medicina moderna, e que os problemas éticos e/ou céticos que envolvem o transplante de cabeça não podem encobrir o grande sofrimento experimentado por esses indivíduos. Apoiadores do procedimento entre a comunidade médica lembram que os primeiros transplantes de coração, iniciados na década de 1960, também foram encarados com grande ceticismo, mas que, apesar das falhas iniciais, hoje o procedimento é bem estabelecido e salva milhares de vidas todos os anos. É preciso iniciar de algum ponto.


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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.nlm.nih.gov/exhibition/frankenstein/index.html
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4743270/
  3. https://dx.doi.org/10.4103%2F2152-7806.113444
  4. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5116034/
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  6. www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-3798056/Head-transplant-surgeon-plans-controversial-Frankenstein-experiments-reanimate-corpses.html
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