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Como o pica-pau protege a cabeça durante as bicadas nos tronco das árvores?


- Atualizado no dia 4 de fevereiro de 2023 - 

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            Bastante populares, especialmente devido ao famoso desenho animado 'Pica-Pau', as aves da família Picidae, esta a qual engloba 30 gêneros e 200 espécies conhecidas, são encontradas no mundo inteiro, exceto na Austrália, Nova Guinea, Nova Zelândia, Madagascar e nas regiões dos extremos polos. Com a maioria das espécies habitando áreas com alta densidade de árvores, os pica-paus são muito conhecidos pelo seu hábito peculiar de alimentação: dão fortes bicadas no tronco das árvores, em alta velocidade e frequência, visando abrir um buraco na madeira e enfiar a longa língua em busca de insetos e outros invertebrados. E a pergunta que não se cala: como diabos eles não ficam com fortes dores de cabeça ou desenvolvem sérias lesões cerebrais?

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            Os Pica-Paus variam bastante em suas medidas corporais, com alguns sendo tão pequenos quanto 7 cm de comprimento e 7 g de massa, e com outros alcançando os 50 cm de comprimento e mais de 500 g de massa. Suas cores e aspectos físicos gerais também variam muito, e isso se estende para a dieta. Apesar de grande parte fazer honra ao nome e se alimentar basicamente de invertebrados (especialmente larvas) vivendo dentro do tronco de árvores - às vezes também seiva -, a dieta dessas aves, em geral, é bem diversificada, incluindo pequenos roedores, formigas, lagartos, frutas, sementes, ovos, entre outros. Suas "brocas" em forma de bico não são usadas somente para abrir troncos de árvores na busca de alimento, mas também para a construção de ninhos e até mesmo para comunicação na forma de "tambor". De qualquer forma, todas as espécies de pica-pau possuem uma característica comum: aparentemente, são super resistentes a danos cerebrais. Mas até onde isso é verdade?


   IMUNES A CONCUSSÕES?

           Entre os humanos, as lesões na cabeça são uma das principais causas de morbidez e morte tanto em países industrializados quanto em países em desenvolvimento. É estimado que os danos cerebrais correspondem por 15% dos fardos de fatalidades e deficiências físicas, e são a principal causa de mortes entre jovens adultos. Esses danos cerebrais podem ser causados por um impacto (acidentes automobilísticos, esportes, etc.) ou uma súbita mudança na velocidade linear e/ou angular da cabeça (acidentes envolvendo altas velocidades, como os automobilísticos). De acordo com a Consórcio Europeu de Lesões Cerebrais (EBIC), cerca de 51% das lesões na cabeça têm relação com batidas de automóveis ou acidentes de esporte. Porém, os pica-paus demonstram aparente super resistência a danos associados à cabeça oriundos desses fatores de impacto e velocidade, em situações onde humanos já teriam se lesionado seriamente.

          A prevenção de danos cerebrais, e também oculares, nos pica-paus tem sido um intrigante problema biomecânico há bastante tempo. Diversos estudos sobre o tema já foram publicados nas últimas décadas tentando explicar quais os fatores de proteção envolvidos por trás dessa habilidade. Para você ter a noção da violência de impacto que essas aves produzem, suas bicadas nas árvores chegam a ultrapassar a frequência de 20 Hz (20 bicadas por segundo!) com velocidades acima de 7 m/s, e sob desacelerações que podem superar os 1200 G (1G = aceleração da gravidade na superfície da Terra, ou seja, próximo de 10 m/s2), resultando em bicadas durando ~50 milissegundos cada. E tudo isso em um total médio de 12 mil bicadas em troncos de árvores por dia! Porém, mesmo sob essas condições de alto estresse mecânico, os pica-paus não parecem sofrer com danos significativos na cabeça/cérebro. Humanos, com a cabeça sob aceleração de 60 a 100 G já podem sofrer uma concussão, por exemplo. 

          Existem dois principais fatores que têm sido apontados que podem ajudar a esclarecer o mistério:

1. A estrutura anatômica única da cabeça do pica-pau, onde podemos citar:

a) Um sólido, robusto e afiado bico, este o qual é mais longo na parte superior do que na inferior, e essa última possuindo uma maior força óssea;

b) Uma longa língua sustentada por um distinto osso hióide envolto por tecido muscular. Esse osso tem origem no dorso da maxila, atravessa a narina direita, se divide em duas partes entre os olhos, com estes dividendos, então, arqueando acima da porção superior do crânio e ao redor do occipício, passando por cada lado do pescoço, vindo para frente através da mandíbula inferior, e se unindo novamente abaixo da testa;  
         
c) Estreito espaço subdural e pouco fluído  cerebroespinhal;

d) Cérebro relativamente pequeno e macio, especialmente orientado para permitir o maior contato superficial possível com o crânio (maior distribuição da força de impacto por área);

2. A trajetória linear das bicadas no plano sagital (em forma de seta) já foi sugerida ser contra forças rotacionais como mecanismo de proteção, onde acelerações rotacionais, ao invés de translacionais, induzem à concussão (danos cerebrais);

            Historicamente, os trabalhos científicos têm focado na estrutura craniana do pica-pau como principal fator de proteção. Apesar de experimentos mostrarem que, de fato, a trajetória no plano sagital no momento da colisão, quando essas aves aumentam o ritmo de bicadas, é linear, componentes rotacionais também emergem nos planos coronal e horizontal. Isso mostra que existe também uma grande resistência às forças rotacionais, algo que coloca dúvidas na hipótese centrípeta da trajetória linear como importante fator de proteção contra concussões (Ref.2). Apesar disso, o pica-pau, ao variar frequentemente os caminhos de bicada, movendo mais seus bicos ao redor, parece minimizar danos cerebrais em áreas específicas.

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            Tornou-se amplamente aceito no meio acadêmico e entre o público que a morfologia especial da cabeça do pica-pau comporta-se como um sofisticado sistema de absorção de impacto. O longo osso hioide ao redor do crânio funcionaria como um cinto de segurança, com uma estrutura geral otimizada para a dissipação de energia mecânica. Já ossos achatados, esponjosos e irregulares presentes no crânio ajudariam a minimizar os danos de impacto. Por fim, o pica-pau é uma das únicas aves onde o bico não é ligado diretamente no crânio, sendo ambos separados por uma cartilagem esponjosa e flexível, sugerindo uma função de amortecimento. 



            A sugestão de que a cabeça dos pica-paus funciona como um capacete altamente eficiente tem inclusive inspirado projetos de engenharia na construção de reais capacetes visando uso em humanos. Em 2014, por exemplo, o designer industrial, Anirudha Surabhi, criou um capacete para bicicleta, apelidado de Kranium e baseado em características estruturais presentes na cabeça do pica-pau; o produto se mostrou eficiente na absorção de impactos (Ref.8).
          
          Por outro lado, um estudo publicado em 2018 na PLOS One (Ref.9) mostrou que o cérebro do pica-pau - no caso, da espécie Sphyrapicus varius - apresenta sinais de acúmulo excessivo de proteína tau, algo que, nos humanos, é associado com danos cerebrais. Ainda é incerto se esse acúmulo de tau realmente traduz-se como um indicativo de danos no cérebro nesse tipo de ave, ou se está diretamente associado às bicadas. Até o momento, apenas um estudo, publicado em 1976, tinha feito uma análise histológica do cérebro desses pássaros na busca por neurotraumas. O estudo de décadas atrás não encontrou nenhum sinal de dano e, desde então, tem sido referenciado inúmeros papers.

           Mais recentemente, um convincente estudo publicado no periódico Current Biology (Ref.) trouxe forte evidência sugerindo completamente o contrário da alegada função de "capacete" no crânio dessas aves. Analisando vídeos de alta velocidade com modelos biomecânicos e englobando três espécies de pica-paus (Dendrocopos major, Dryocopus pileatus e Dryocopus martius), os pesquisadores encontraram que essas aves não absorvem em nenhuma significativa extensão o choque do impacto com o tronco das árvores. De acordo com os resultados do estudo, o bico e o crânio dos pica-paus funcionam, basicamente, como um martelo, ou seja, uma estrutura rígida visando máxima transferência de energia cinética para o alvo. E mais: qualquer potencial mecanismo de absorção de impacto no crânio mostrou-se desvantajoso para essas aves em simulações biomecânicas e cinemáticas e não seria favorecido por seleção natural. 

           

          Mas se o crânio não atua como absorvedor de impacto, como o cérebro dos pica-paus é protegido durante os violentos impactos? De acordo com os experimentos do último estudo, enquanto a desaceleração associada ao choque de cada bicada dos pica-paus na madeira excede o limite conhecido para concussões em primatas - incluindo humanos -, o cérebro de menor dimensão dessas aves suportaria o estresse mecânico - mesmo após >100 bicadas consecutivas. O único perigo seria se os pica-paus aplicassem acidentalmente as fortes bicadas em uma rígida estrutura metálica, por exemplo. Mesmo sem o crânio servindo como capacete protetor, os impactos no tronco de árvores estariam bem abaixo do limite de concussão para os pica-paus. 

          Segundo os pesquisadores, os achados são conclusivos e podem explicar porque não existem pica-paus com cabeças e músculos no pescoço muito maiores. Enquanto um fenótipo mais musculoso e "cabeçudo" resultaria em bicadas mais poderosas e energeticamente eficientes, concussões causariam muitos problemas devido à "estrutura de martelo".

           A "cabeça martelo" dos pica-paus pode talvez explicar também os resultados do estudo publicado na PLOS One. Enquanto sérias concussões podem não ocorrer durante as atividades dessas aves, danos de menor extensão podem ainda se acumular no cérebro.

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CURIOSIDADE: Os pica-paus usam rápidas batidas na madeira - gerando padrões específicos de sons - para comunicação altamente especializada visando interações territoriais e disputas com outros membros da mesma espécie. Evidência recente (Ref.13) aponta que regiões no cérebro dessas aves estão envolvidas com avançado aprendizado desses padrões sonoros, similar ao aprendizado vocal observado em pássaros de canto, papagaios e beija-flores. Isso explicaria aparentes traços individuais marcando as "batucadas" de cada pica-pau durante comunicação - tentativas de gerar ótimos sinais comunicativos a partir de variações conscientes no controle motor da cabeça e do pescoço durante as bicadas.
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   MARTELA MAS NÃO PREGA

          Considerando o afiado bico dos pica-paus e a força com que batem no tronco das árvores, seria esperado que ficassem sempre agarrados na madeira como pregos martelados. Pelo contrário, essas aves realizam repetidas e rápidas bicadas com facilidade, removendo o bico do tronco sem muitos problemas. Um estudo publicado em 2022 no periódico Journal of Experimental Biology (Ref.10) - e também conduzido pelos autores do estudo anteriormente mencionado (Wassenbergh et al., Ref.12) resolveu investigar essa habilidade em dois pica-paus da espécie Dryocopus martius, usando análise cinemática de registros em vídeo de alta velocidade.   

          Eles encontraram que essas aves se libertam do tronco após a bicada primeiro deslizando a parte superior do bico ~1,4 mm para trás, enquanto levantando a parte final da cabeça em ~1 mm para abrir uma leve lacuna entre as partes inferior e superior do bico - isso tudo enquanto o bico permanece preso no tronco. Então, a cabeça se move levemente para frente enquanto as partes inferior e superior do bico se movem para cima, fechando a lacuna criada enquanto a parte inferior do bico desliza para trás, permitindo a retirada de todo o bico da madeira. Toda essa manobra - a qual pode ser observada no vídeo abaixo - dura cerca de 0,05 segundos, e permite a realização de três bicadas por segundo. 

            

          Segundo os autores do estudo, essa manobra parece ser possível pela baixa resistência friccional entre as superfícies inferior e superior do bico, constituídas de queratina, à medida que deslizam uma sobre a outra. O achado também explica por que os pica-paus não possuem o bico rigidamente anexado ao crânio, algo que tornaria mais eficiente os movimentos de alto impacto: a flexibilidade nas articulações entre o crânio e o bico permitem a realização da manobra. Mas mesmo com a manobra, os pesquisadores encontraram que os dois pica-paus analisados ficavam com o bico preso cerca de 36% do tempo de bicadas.
 

   CONCLUSÃO

          A hipótese de que a cabeça dos pica-paus funciona como um "capacete" de proteção, amortecendo impactos durante as bicadas para proteger o cérebro, não possui sólido suporte científico ou mesmo lógica em termos de seleção natural, e é mais provável que o conjunto 'cabeça-bico' dessas aves funcione como um martelo. O cérebro desses animais parece não sofrer sérios danos durante as violentas bicadas devido ao seu pequeno tamanho. As maiores "preocupações" evolucionárias moldando o crânio, comportamento de bicada e bico dessas aves focam em transmitir a maior quantidade possível de energia cinética em cada bicada - até o limite de concussão - e evitar que o bico fique preso na madeira durante a atividade.


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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. www.birds.cornell.edu/wp_about/biology.html
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3202538/
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25902356
  4. https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11427-013-4523-z
  5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27000554
  6. https://askabiologist.asu.edu/plosable/woodpeckers
  7. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27780157
  8. http://www.bbc.com/future/story/20130115-woodpecker-inspires-bike-helmet
  9. http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0191526
  10. Wassenbergh et al. (2022). Cranial kinesis facilitates quick retraction of stuck woodpecker beaks. Journal of Experimental Biology 225, jeb243787. https://doi.org/10.1242/jeb.243787
  11. https://journals.biologists.com/jeb/article/225/5/jeb244092/274556/Stuck-woodpeckers-walk-their-beaks-free-for
  12. Wassenbergh et al. (2022). Woodpeckers minimize cranial absorption of shocks.  Current Biology, Volume 32, Issue 14, P3189-3194.E4. https://doi.org/10.1016/j.cub.2022.05.052
  13. Jarvis et al. (2022). Forebrain nuclei linked to woodpecker territorial drum displays mirror those that enable vocal learning in songbirds. PLoS Biology 20(9): e3001751. https://doi.org/10.1371/journal.pbio.3001751