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Afinal, os Dragões-de-Komodo são peçonhentos ou não?


- Atualizado no dia 11 de outubro de 2023 -

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           O Dragão-de-komodo (Varanus komodoensis), também conhecido como Crocodilo-da-Terra, é hoje a maior espécie de lagarto, podendo ultrapassar 3 metros de comprimento e alcançar 166 kg de massa corporal. Habitando as ilhas de Komodo, Rinca, Flores, Gili Motang e Padar, todas localizadas na Indonésia, esse gigantesco réptil domina todo o ecossistema nesses territórios, apesar de estar muito ameaçado em termos de conservação (Ref.25). A mordida dessa espécie é famosa pela sua alta 'letalidade', e, nesse sentido, um grande debate tem persistido por décadas: afinal, será que o dragão-de-Komodo realmente usa veneno para a caça e, com isso, poderia ser reconhecido como peçonhento? Em 2009, um estudo causou grande impacto ao afirmar que sim, gerando grande repercussão na mídia na semana da sua publicação (Ref.8-9). E, apesar de muitos terem fincado o rótulo de 'peçonhento' no Dragão-de-Komodo desde então, existe ainda muita controvérsia sobre a questão, especialmente em relação ao sucesso de caça desses animais.

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CURIOSIDADE:  Dragões-de-Komodo se reproduzem também via partenogênese. Para mais informações, acesse: Partenogênese: É possível nascimento virgem em humanos?
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   BOCA SUJA?

            A nossa história começa quando as pessoas começaram a notar e reportar que os animais feridos com as mordidas do Dragão-de-Komodo ficavam estranhamente quietas e em um estado de choque que se desenvolvia bem rápido, caso conseguissem escapar com vida do ataque. Pouco tempo depois (horas ou, no caso de búfalos, poucos dias), as vítimas acabavam morrendo não muito longe e devoradas pelo gigantesco lagarto perseguidor ou outros à espreita.

          A primeira relevante hipótese que emergiu para explicar essa observação foi a de que as inúmeras bactérias presentes na boca desses répteis causavam uma grave infecção na vítima após a mordida, culminando em uma rápida morte. Essa ideia ficou tão disseminada e popular que continua sendo tratada como factual até hoje nas discussões sobre o tema. Porém, as mais de 120 bactérias, anaeróbicas e aeróbicas, encontradas na região bucal desses animais em estudos mais recentes analisando espécimes em cativeiro (Ref.2, 16) dificilmente causariam graves infecções a ponto de matar rapidamente as vítimas, sendo tais procarióticos originários em grande parte da microbiota do intestino e da pele das suas presas, apesar de alguns desses organismos serem bastante nocivos. Para se ter uma ideia, os leões possuem a boca bem mais "suja" segundo especialistas.             
       
           Bem, nesse ponto, a hipótese da infecção bacteriana como 'arma de caça' já foi amplamente abandonada. Dois outros modelos têm sido tem sido considerados como mais plausíveis alternativas, um bem simples e o outro mais sofisticado. Esse último entra justamente com a questão do Dragão-de-Komodo ser uma alegada espécie peçonhenta (ou seja, inocula ativamente veneno em outro ser vivo com o intuito de defesa ou ataque). Para entendermos a 'hipótese da peçonha', primeiro vamos explicar o clado (grupo de espécies que compartilham características adquiridas de um ancestral comum exclusivo) no qual nosso lagartão se encontra.

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IMPORTANTE: Mesmo não usando bactérias como arma de caça, os dragões-de-Komodo parecem ter evoluído defesas imunes contra as suas próprias bactérias na região bucal. Por exemplo, um estudo publicado na Nature (Ref.21) em 2017 conseguiu isolar e identificar uma proteína da saliva desses répteis chamada de VK25, com notáveis propriedades antibacterianas. Em seguida, os pesquisadores sintetizaram outra proteína (DRGN-1) inspirados na VK25, a qual se mostrou muito efetiva para para o tratamento de feridas tópicas, além de demonstrar forte atividade antimicrobiana e anti-biofilme (bacteriano). Um estudo publicado em 2019 no periódico BMC Genomics (Ref.22) conduziu uma análise genômica do V. komodoensis, determinando um tamanho genômico total de 1,6 Gb e identificando 17213 genes preditos. Análise mais específica do DNA identificou genes e agrupamentos genéticos responsáveis pela expressão de vários peptídeos (defensinas e ovodefensinas) associados a defesas antimicrobianas.

De fato, os dragões-de-Komodo não parecem ser afetados em nenhuma significativa extensão pelas bactérias bucais, mesmo com frequentes mordidas entre membros do grupo durante lutas, constante sangramento das gengivas durante a alimentação e comum consumo de carcaças em processo inicial de putrefação. As evidências suportam uma robusta imunidade inata nesses répteis, mediada parcialmente por peptídeos antimicrobianos.
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    TOXICOFERA

          Do grego, 'toxicofera' significa "aqueles que carregam toxinas", e essa palavra dá o nome a um recém-criado clado de répteis escamados (Squamata) que inclui as cobras, os anguimorfos (lagartos-monitores, monstro-de-gila e lagartos do gênero Elgaria) e as iguanias (iguanas, agamas e camaleões) (Ref.13). Esse clado contém cerca de 4600 espécies - algo que corresponde a quase 60% dos esquamatos (ou escamados) ainda existentes no planeta - e engloba todas as espécies de répteis peçonhentos, assim como diversos répteis não-peçonhentos.

          A ideia de juntar todos esses animais veio depois que estudos descobriram que não só as cobras peçonhentas produziam veneno na boca, mas também outras espécies de répteis, antes tidos como não venenosos, mostraram possuir proteínas tóxicas na salivas liberadas por glândulas específicas. Mais estudos mostraram que quase todas as serpentes consideradas 'não-peçonhentas' produziam veneno em alguma extensão. E isso também se estendeu para outros grupos, como em espécies no Iguania (especificamente o Pogona barbata) e nos anguimorfos (no Varanidae/lagartos-monitores/varanos, como o Varanus varius e o nosso Varanus komodensis). Isso fez os cientistas considerarem que todos surgiram de um ancestral comum que primeiro desenvolveu genes produtores de veneno, fazendo sentido juntá-los no Toxicofera.

          Além da descoberta dos novos peptídeos (proteínas) tóxicos nesses animais alegrarem pesquisadores no mundo inteiro - já que essas complexas moléculas possuem grande potencial em pesquisas para novos medicamentos - com o tempo outras questões começaram também a ser levantadas: será que existem mais animais peçonhentos do que aqueles já reconhecidamente caracterizados como tal? Apesar de muitas espécies não-peçonhentas produzirem veneno - em relativas baixas concentrações -, não existe nesses animais estruturas óbvias para a inoculação do fluído tóxico, como acontece com as Najas e suas temidas presas inoculadoras. Porém, pesquisadores começaram a propor que os pequenos dentes nesses animais cumpririam a função de causar feridas e entregar veneno para as presas ou atacantes, aumentando os danos propositalmente. Em outras palavras, o veneno estaria sendo utilizado para deferir ataques e, portanto, tais espécies poderiam ser consideradas também peçonhentas.

          Nesse novo contexto, por exemplo, já existem as duas únicas espécies de lagartos consideradas hoje, consensualmente, peçonhentas: o Monstro-de-Gila (Heloderma suspectum) e o Lagarto-Mexicano-de Contas (H. horridum), ambos do mesmo gênero.

À esquerda, um Lagarto-Mexicano-de-Contas e, à direita, um Monstro-de-Gila

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    ESTUDO DE 2009

          Liderado pelo pesquisador Bryan G. Fry, da Universidade de Melbourne, Austrália, e envolvendo diversos departamentos e institutos de zoologia, bioquímica e biologia molecular de vários países, um estudo publicado no periódico Proceedings of the National Academy of Science (Ref.3) investigou o papel e potencial relação entre a mecânica craniana, bactérias tóxicas e o então recém-revelado veneno no Dragão-de-Komodo.

           Nesse estudo, mais uma vez, foi reforçada a rejeição à noção do envolvimento ativo de bactérias bucais como auxiliares de predação. Ao invés disso, segundo os dados obtidos pelos pesquisadores, o veneno englobando proteínas tóxicas diversas presentes na saliva do animal e produzido por glândulas mandibulares presentes no maxilar inferior - descobertas e caracterizadas durante o estudo - contribuía de forma decisiva no ataque às presas, gerando atividades tóxicas que incluem efeitos de choque, hipertensivos e anticoagulatórios. Esses efeitos combinados contribuiriam para que o sangramento da ferida aberta pela dilacerante mordida se agravasse, criando progressivamente sérias debilidades motoras na vítima e levando a presa ao encontro de uma morte mais rápida sem dar-lhe muitas chances de reagir. E, como mencionado, canais glandulares foram também caracterizados e confirmados, - parecendo indicar claros locais de secreção e armazenamento de peçonha -, assim como genes de expressão de veneno ativos nessa área.

Uma ressonância magnética (MRI) da cabeça de um Dragão-de-Komodo mostrou que eles possuem um complexo de glândulas de veneno (extensão em vermelho)

            Segundo o estudo, o crânio muito leve desses répteis é relativamente mal adaptado para gerar fortes mordidas, mas melhor adaptado para resistir à forças de tração altas. Assim, para ajudar a matar a presa, a relativa fraca mordida - porém gerando profundas feridas através de dentes adaptados para cortar e rasgar - seria auxiliada pelo veneno na saliva. Com essa estratégia, um vasto número de presas, grandes ou pequenas, estariam disponíveis para esse lagarto, já que o combate corpo a corpo seria reduzido. E as quantidades de tóxicas proteínas contidas na saliva e entregues a cada mordida seriam suficientes para causar danos consideráveis.

Modelos computacionais do esqueleto da cabeça dos Dragões, analisando os estresses gerados durante as mordidas (figura à esquerda) mostraram que as áreas em vermelho (de alto estresse) podem fazer com que as suas mandíbulas se quebrem durante mordidas muito fortes; especializar os seus 60 dentes afiados para rasgarem profundamente e utilizar o veneno em conjunto faria qualquer ataque potencialmente fatal, compensando uma mordida mais fraca

             Comparando também a arquitetura do esqueleto da cabeça e dentição do seu parente gigante já extinto, o V. priscus (Megalania) - o qual podia alcançar os 5,5 metros de comprimento - , o estudo também sugeriu que esses últimos, os maiores lagartos que já existiram no planeta (pelo menos até onde sabemos), podem também ter sido os maiores animais peçonhentos que já existiram.

O Varanus priscus fazia parte da megafauna que habitava o sul da Austrália, sendo provavelmente extinto há cerca de 40 mil anos

              Em um comentário, na época, do biólogo evolucionário do Museu Nacional de História Natural (Paris), Dr. Nicolas Vidal, "o estudo do Dr. Fry claramente demonstra que o Dragão-de-Komodo é um predador peçonhento" (Ref.7).

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   OUTRO LADO DA HISTÓRIA

              Mas apesar do estudo ter sido celebrado entre muitos cientistas como conclusivo, outros especialistas discordaram dos resultados e até hoje os debates sobre o assunto persistem. Entre os principais argumentos contra o achado, podemos citar:

1. Apesar de terem sido achados genes de produção de veneno ativados nas regiões das "glândulas de peçonha" no Dragão-de-Komodo, essas estruturas podem não ser os alvos específicos desses genes. Lagartos-monitores já mostraram também tê-los não só nas suas estruturas de supostas glândulas de peçonha, mas também em várias outras partes do corpo onde a presença essa peçonha não faria sentido (como no fígado ou no cérebro). Assim, pode ser que as glândulas no maxilar seriam apenas vestígios evolucionários ou estruturas de veneno incompletas sem função peçonhenta. E, para completar o quadro, esses mesmos genes já foram identificados em lagartos fora do clado Toxicofera.

2. Como as pesquisas de campo geralmente envolvem acidentes de manuseio com o lagartos-monitores e o fato de que muitos desses animais são mantidos como animais de estimação (infelizmente) - em ambos os casos incluindo o Dragão-de-Komodo -, muitos são os reportes de feridas com diferentes graus de gravidades em humanos causadas por suas mordidas. Porém, virtualmente, não existem casos reportados de envenenamento, apenas de danos normais causados pelas mordidas ou outras reações mais incomuns que não tendem a caracterizar um envenenamento (!). Ou seja, isso coloca em xeque não apenas a natureza peçonhenta do Dragão-de-Komodo mas como a própria real presença de um veneno ali ou quantidades mínimas de proteínas tóxicas para caracterizá-las como um (no caso, para serem usados na caça de grandes presas), e o mesmo sendo válido para outras espécies. 

3. Suportando esse último ponto, um reporte publicado no periódico Wilderness & Environmental Medicine (Ref.18) descreveu o caso de uma pessoa que morreu após ser atacado por um dragão-de-Komodo. A vítima não apresentou sinais de envenenamento, infecção na ferida associada ou sepse, morrendo simplesmente devido à traumática dilaceração causada pela mordida. Ainda em 2015, outro relato de caso foi reportado pelos mesmos autores do reporte anterior (Ref.20) descrevendo uma ferida causada pela mordida de um dragão-de-Komodo juvenil (~1 kg) no dedo polegar de uma tratadora de 34 anos. A mordida gerou apenas trauma leve, sem sinal de significativo envenenamento ou infecção. Por fim, em 2016, também no periódico Wilderness & Environmental Medicine (Ref.21), pesquisadores reportaram o caso de uma tratadora de 38 anos mordida na mão por uma fêmea saudável de dragão-de-Komodo com massa aproximada de 5 kg. Apesar da ferida ter sido profunda e extensiva, com bastante sangramento e subsequente quadro de hipotensão (atribuído a uma provável resposta vasovagal), nenhum sinal de envenenamento ou de infecção foi observado.

3. Pesquisadores acompanhando de perto o comportamento de vários lagartos-monitores, incluindo Dragões-de-Komodo, raramente os veem caçando animais que ultrapassam 10% das suas massas corporais. Ou seja, esses predadores quase sempre preferem atacar animais menores, estes os quais não precisam de peçonha para serem mortos, apenas uma mordida bem dada, ou, no caso dos Dragões, visam pratos maiores mas em forma de carniça. Em muitos desses ataques, aliás, esses répteis usam grande violência para estraçalhar a presa. Assim, mesmo se certas proteínas tóxicas de fato existem em suas salivas, efeitos como enfraquecimento muscular (imobilização da presa) agindo 4 minutos após a mordida na presa seriam inúteis considerando que essa última já estaria morta há 3 minutos e meio ou completamente desmembrada há 3 minutos.

Análise macroscópica dos dentes mandibulares do Dragão-de-Komodo. (a) Dentes lateralmente achatados, coroa dentária com forma de gancho caudal. (b) Margens serrilhadas de um dente. (c) Visão lateral via raio-X da mandíbula (lado direito) com múltiplos dentes, cada um deles com superfície vestibular assim como margens mesial e distal (barra de escala: 5 mm). Os dentes serrilhados desses répteis são otimizados para cortes profundos mesmo sem aplicação de muita força na mordida. Ref.26


 4. Por outro lado, como os lagartos-monitores, especialmente os dragões-de-Komodo, são predadores oportunistas, não podemos deixar de lembrar que eles também costumam caçar presas bem grandes, como veados. Bem, a morte de veados com um único ataque pode ser explicada pelo simples fato do grande dano direto causado pelos dragões, levando-os à morte por sérias hemorragias e danos viscerais, seja momentos após o ataque ou mais tarde. Porcos, por exemplo, quando atacados, chegam a ter até seus intestinos lançados para fora com a violência. Porém, existe o clássico exemplo de búfalos sendo mordidos apenas uma vez na perna, começarem a ter perda de mobilidade e, alguns dias depois, caírem mortos no chão. No YouTube existe até um vídeo bem famoso narrado pelo ator Daniel Craig mostrando e descrevendo um desses ataques, onde um horda de dragões ficam esperando o búfalo tombar sem mais forças*. Só que nesse exemplo, muitos especialistas dizem que é muito mais fácil explicar a morte por sepse (infecção generalizada) devido ao fato de que o búfalo, após a mordida e ferida aberta, fica com essa última inundada de lama e sujeira cheias de fezes e outros perigosos patógenos (não confundir isso com supostas bactérias entregues pela saliva do dragão-de-Komodo). O próprio Dr. Fry, responsável pelo estudo de 2009, concorda que as bactérias do ambiente em torno do búfalo são as responsáveis principais pela morte nesse caso, levando a um quadro de sepse (Ref.15).

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*ATUALIZAÇÃO (15/05/19): O vídeo foi tirado do ar pela BBC, provavelmente devido à errônea forma como a morte do búfalo foi explicada.
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           Já na época do estudo de 2009, o biólogo evolucionário da Universidade de Connecticut, Kurt Schwenk, lançou críticas e desconfiança quanto aos resultados encontrados pelo Dr. Fry, e comentou: "Eu garanto que se você tem um lagarto de 3 metros de comprimento pulando dos arbustos e rasgando suas tripas para fora, você ficaria meio que paralisado e quieto for um tempo, pelo menos até você cair no chão de choque e grande perda de sangue pelo fato dos seus intestinos estarem esparramados no chão bem na sua frente." Dr. Schwenk acrescentou que os achados em relação às glândulas e as proteínas tóxicas nelas contidas foram interessantes, mas que essas proteínas podem ter outro papel para o animal além da alegada predação (Ref.7).

O próprio ataque violento em si seria a causa das rápidas mortes, grandes perdas de sangue e sintomas de choque


   (!) CASOS MAIS RECENTES DE MORDIDA 

          Em 18 de junho de 2021, mais um caso de mordida foi reportado no periódico Foot & Ankle Orthopaedics (Ref.24). Uma tratadora de 43 anos em um zoológico dos EUA foi mordida violentamente por um dragão-de-Komodo adulto, resultando em profundas lacerações na perna e no braço esquerdos e levando a lesões neurovasculares e de tendão. Porém, os pesquisadores não encontraram nenhum anormal sangramento, episódios hipotensivos ou preocupações relativas a possível sepse durante a estadia da paciente no hospital. O caso, mais uma vez, não suportou efeitos de peçonha ou de sérias infecções, mesmo envolvendo sérias e profundas lesões.

> Para fotos das lesões causadas, acesse aqui

         Mais recentemente, no periódico The Journal of Emergency Medicine (Ref.26), pesquisadores reportaram e descreveram outra mordida acidental em um zoológico, também de um indivíduo de 43 anos mas do sexo masculino. Enquanto estava vistoriando as condições ambientais do espaço onde dragões-de-Komodo estavam sendo criados, uma fêmea grávida da espécie mordeu o tratador na parte inferior da perna e o agarrou com as garras na parte inferior da perna direita. Pensando que o réptil havia mordido apenas sua calça, o tratador pegou uma faca e cortou o tecido da calça, livrando-se da mordida. No entanto, ele percebeu que sua perna havia sido efetivamente mordida na pele. Nesse sentido, apresentou-se no departamento de um hospital para tratar a ferida. O dano tecidual local não exibiu sangramento em excesso, e nenhum sintoma sistêmico foi observado sugestivo de envenenamento. Nenhuma terapia específica foi administrada além de simples irrigação local da ferida. O paciente foi colocado sob profilaxia com antibióticos e acompanhado, e nenhuma infecção local ou sistêmica foi observada. Esse é outro caso que não suporta a hipótese de que mordida do Dragão-de-Komodo é peçonhenta ou inerentemente infecciosa.

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      CONCLUSÃO

            Podemos resumir em três hipóteses principais que tentam explicar o sucesso de caça do Dragão-de-Komodo com base no mecanismo de mordida da espécie:

1. Sepse (infecção generalizada, no caso causada por bactérias na saliva do Dragão-de-Komodo);

2. Uso de peçonha;

3. Trauma direto.

             A primeira perdeu quase toda a credibilidade com as evidências científicas acumuladas nas últimas décadas, e hoje é mais um mito do que qualquer outra coisa. Para exemplificar, dragões criados em zoológicos apresentam o perfil da sua microbiota bem diferente daquele encontrado em animais selvagens, e esse perfil varia bastante dependendo do local em que se encontram e da alimentação oferecida. Ou seja, eles não nascem com um mecanismo de "ataque bacteriano" e a microbiota bucal varia bastante de animal para animal. Bactérias nocivas que, por ventura, venham a ser incorporadas à sua saliva provavelmente virão do ambiente, especialmente de carnes em decomposição que os dragões costumam comer. De qualquer forma, esses animais parecem ter uma relativa boa higiene bucal, e mesmo em ambiente selvagem a microbiota dessa espécie não é tão populosa ou perigosa. Além disso, para a maior parte das presas de grande porte que eles evoluíram para caçar (os búfalos foram introduzidos em seu habitat bem mais tarde) - porcos, veados, porcos do mato - as mortes geralmente são muito rápidas para terem qualquer participação decisiva de uma infecção bacteriana generalizada. Aliás, grande parte das mortes ocorre no momento do ataque.

          Uma hipótese interessante proposta em 2017 (Ref.16) defende que as bactérias com grande potencial infeccioso presentes na boca de muitos dragões não estão ali com o objetivo de armar esses répteis, e, sim, apenas de os infectarem. Assim, esses microrganismos utilizariam a mordida desses animais para se propagarem para outros dentro de uma população local. Já que um animal que foge do ataque desse lagarto acaba morrendo pouco tempo depois e geralmente não é devorado pelo atacante e, sim, por outro Dragão ou - mais comum ainda - por um grande grupo de Dragões, as bactérias de um acabam se espalhando facilmente para outros indivíduos, assim como ocorre com os microrganismos que passam de pessoa para pessoa através do beijo ou contato com outros fluídos corporais (DSTs, por exemplo). Com a presença de um poderoso sistema imune inato, incluindo vários peptídeos antibacterianos, as bactérias colonizando a boca desses lagartos continuam se disseminando sem causar prejuízos para o hospedeiro.

Geralmente, as caças de médio e grande porte são comidas por mais de um indivíduo

           Em relação às duas outras hipóteses, enquanto um lado acadêmico defende que apenas o estrago feito pela temida mordida cortante é suficiente para explicar as rápidas mortes, o outro lado, baseado principalmente no estudo de 2009, defende que as proteínas tóxicas produzidas na glândula mandibular dos dragões possui papel importante na morte de animais de relativo grande porte, especialmente naqueles que conseguem escapar da primeira investida. 

           Atualmente, não existe evidência objetiva de suporte para uma função peçonhenta no V. komodoensis. Os fatores mais provavelmente responsáveis pelo sucesso de caça do dragão-de-Komodo englobam a profunda lesão em tecido mole, massiva perda de sangue e subsequente choque hipovolêmico causados por suas agressivas mordidas. Mesmo com fraca força de mordida, esses animais são capazes de rasgar facilmente a carne da presa com seus dentes serrilhados e afiados e forte tração pós-craniana.

          Mesmo em estudos mais recentes que defendem crítica ação de peçonha na mordida desses répteis, os pesquisadores realçam que os mecanismos de fluxo de veneno das glândulas através da superfície dos dentes para os tecidos da vítima ainda precisam ser melhor esclarecidos (Ref.26). Na hipótese do "Dragão peçonhento", é incerto se o veneno é entregue mecanicamente durante a mordida ou se uma reação ocorre, ou se o veneno é injetado através da ação da própria musculatura associada à glândula de veneno ou através de segmentos protuberantes. E ainda não é explicado em qual grau o veneno auxiliaria na incapacitação da vítima.

            Apesar da controvérsia, é interessante notar que outros lagartos-monitores de menor porte - filhotes em específico - podem ser os reais beneficiários de uma alegada peçonha. Mas não no quesito 'ataque' e, sim, 'defesa'. Para escapar de predadores, principalmente de serpentes, os filhotes podem usar proteínas tóxicas para potencializar a dor das suas mordidas e afugentar atacantes. Seria um mecanismo de inoculação ativa de veneno e poderia provar que muitos desses lagartos são realmente peçonhentos. Mas, no caso dos Dragões-de-Komodo adultos, mecanismos de defesa não parecem ter utilidade alguma, já que eles dominam o ecossistema em seus habitats, como os maiores predadores. Por outro lado, os filhotes podem, de fato, se beneficiar de alguma forma, faltando trabalhos científicos para comprovar isso. Mas, segundo alguns cientistas, "tender a chamar todos do clado Toxicofera de 'peçonhentos' implica um perigo que não existe, atrapalha as análises de risco pelas equipes médicas e confunde a avaliação biológica dos sistemas biomecânicos pertencentes aos escamados." (Ref.5)

            No final, podemos afirmar que os dragões-de-Komodo, assim como os outros membros atualmente agrupados no grupo Toxicofera podem ser considerados 'venenosos' por produzirem proteínas tóxicas em suas bocas. Porém, se existe papel de caça ou de defesa para essas toxinas tanto em termos quantitativos quanto em termos qualitativos (função de peçonha), já é outra história. Nesse sentido, ainda é cedo para definitivamente concluir se esses temíveis répteis podem ou não ser considerados peçonhentos.

Imagem de capa: National Geographic Kids

> Para mais informações sobre os dragões-de-Komodo, acesse aqui.

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REFERÊNCIAS
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  3. https://www.pnas.org/content/106/22/8969 
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