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O que acontece se o corpo humano é exposto ao vácuo espacial?



         O que aconteceria com o nosso corpo caso ficássemos expostos ao vácuo espacial, sem a proteção de nenhum traje especial, como aqueles utilizados pelos astronautas? Nosso corpo explodiria? Congelaríamos totalmente? A morte seria instantânea? Para respondermos essas perguntas, primeiro temos que esquecer toda uma história vendo filmes de Hollywood.

       Vamos começar lembrando que a atmosfera terrestre é composta por várias camadas, onde a exosfera é a última camada de transição com o espaço e a troposfera é a porção em que habitamos. Nesta última, as altitudes variam entre 7 (Polos) e 18 km (Equador), devido às deformações no globo terrestre. Na troposfera, encontramos cerca de 75% da massa de ar da atmosfera, sendo que 50% do bolo está presente nos primeiros 5,6 km de altitude. À medida em que aumentamos de altitude, o ar vai ficando cada vez mais rarefeito, ou seja, com cada vez menos ar (moléculas que compreendem os gases oxigênio, nitrogênio, carbônico, etc.). Isso ocorre porque as forças gravitacionais diminuem com a distância do centro de massa do corpo (no caso, a Terra), e, quanto mais afastado os objetos, menos atração eles sentem. Nesse ponto, será importante entendermos os efeitos da pressão e, mais à frente, alguns fatos sobre transferência de calor.

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          Na superfície terrestre, temos, portanto, uma grande e relativamente densa massa de ar à nossa volta, exercendo uma grande pressão  (e peso) sobre o nosso corpo. Para ser mais exato, em cada 0,1 metro quadrado do nosso corpo, ao nível do mar, existe uma pressão aproximada de 1 tonelada de ar! Mas como raios não sentimos isso, ou somos esmagados completamente? Isso é porque essa enorme pressão está atuando por todo o nosso corpo, de forma uniforme, tanto de fora quanto de dentro (o ar dentro de nós está também exercendo essa mesma pressão). Por isso fica parecendo que o ar a nossa volta não é nada demais. Agora fica mais plausível o enorme poder dos furacões e a capacidade de voo dos pesados aviões, certo?

> Leitura recomendada: Por que a atmosfera da Terra não escapa para o espaço ou é sugada pelo vácuo espacial?

        Um dos efeitos interessantes da pressão do ar (1) é a sua capacidade de influenciar o estado físico das substancias, especialmente dos líquidos. Pegando o exemplo da água, quanto maior a pressão sobre uma porção desse fluído, maior a temperatura do ponto de ebulição (passagem rápida do estado líquido para o vapor). Isso porque, quanto maior a pressão, mais vapor de água é forçado a ficar na forma líquida (maior agregação e consequente maior interação intermolecular). Assim, é necessário fornecer mais energia para vencer essa contraforça, com o aumento da temperatura (transferência de calor) sendo uma alternativa. E, vice-versa, quanto menor a pressão, menor a temperatura necessária para ebulir a água.

   Nosso corpo explode no espaço? 

           Essa alegação tão disseminada - incluindo "olhos explodindo das órbitas" - é baseada no fato de que, no vácuo espacial, não existe ar (apenas uma concentração ínfima de partículas e átomos), fazendo com que a pressão externa ao nosso corpo seja, virtualmente, igual a zero. Nessas condições, a temperatura de ebulição da água no nosso corpo, incluindo a do sangue, fica bem baixa, com a nossa própria temperatura corporal (cerca de 36°C) sendo suficiente para fazê-la ebulir. Sim, isso é verdade, e veríamos, por exemplo, nosso corpo ficar mais inchado devido ao vapor de água sendo gerado internamente. Mas isso não seria suficiente para "explodir" o nosso corpo porque a pele é muito resistente. O mesmo vale para o sangue dentro das veias e artérias, estas as quais não seriam rompidas por dois motivos: o primeiro é que a pressão sanguínea - injetada pelo coração - dificultaria a ebulição da água no plasma sanguíneo, não gerando intenso vapor; e, em segundo lugar, grande parte das veias e artérias conseguiriam comportar o vapor sendo produzido. O que entraria em ebulição e escaparia do nosso corpo seria a água das mucosas (boca, superfície dos olhos, nariz, entre outros) e provavelmente do nosso sistema digestivo e sistema urinário (sim, a pessoa, literalmente, iria deixar grandes volumes de gás sair pela boca, ânus e uretra, junto provavelmente com vômito, urina e fezes).

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> Em experimentos dentro de câmaras de vácuo (programas de treinamento para astronautas), a experiência de exposição ao vácuo já foi reportada durante acidentes (Ref.2). Quando a água entra em ebulição na boca e sobre a língua e escapa para o vácuo, é relatada uma sensação de efervescência, similar àquela durante a ingestão de refrigerante. 
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            Nesse último ponto, uma condição potencialmente letal, chamada de ebulismo (formação de bolhas nos fluídos corporais devido a uma redução na pressão ambiente), pode engatilhar graves complicações . No melhor cenário, o ebulismo irá causar inchaço nos tecidos - como já mencionado - e hematomas devido à formação de vapor de água sob a pele; no pior cenário, a condição pode dar emergência a um quadro de embolismo gasoso, ou bloqueio de vasos sanguíneos, devido às bolhas de gás na corrente sanguínea.

         Ainda por causa da dramática redução de pressão, teríamos outro agravante. Sem ar do lado de fora, só teria ar saindo do corpo, algo que levaria a uma morte em torno de 1 minuto por falta de oxigênio e excesso deste saindo do sangue (difusão forçada devido à brusca queda da pressão pulmonar). A desoxigenação forçada do sangue levaria a um severo quadro de hipoxia (baixa concentração sanguínea de oxigênio) e, dentro de 15 segundos, sangue desoxigenado começa a circular pelo cérebro, resultando em inconsciência. Nesse cenário, para piorar, caso a pessoa prendesse o ar antes de ir para o vácuo (reflexo natural ao saber que existirá falta de ar), a forte expansão do gás comportado dentro do pulmão - devido ao vácuo externo e bem mais alta pressão interna - causaria sérios danos nesse órgão, impossibilitando qualquer tentativa de resgate. Por outro lado, se a pessoa deixar o ar escapar imediatamente após entrar no vácuo, poderá haver um intervalo entre 60 e 90 segundos em que será possível resgatá-la pressurizando o ambiente novamente. Na verdade, o movimento respiratório permaneceria normal, apenas não existiria ar entrando. Portanto, fica a dica: nunca prenda o ar antes de entrar desprotegido no vácuo espacial.

   E sobre a alegação do corpo congelar? 

          Existe uma grande confusão nessa proposta. No vácuo, não existiria ar ou outros corpos em contato à sua volta permitindo uma eficiente troca de calor. Ou seja, seu corpo no vácuo perderia muito pouco calor superficial por estar isolado; o calor seria perdido em maior extensão apenas por radiação infravermelha emitida pelo organismo aquecido (2). Na verdade, mesmo se você eventualmente morrer em meio ao vácuo espacial, seu corpo permanecerá quente por um certo tempo. O mesmo princípio é aplicado em várias garrafas térmicas (aquelas que você usa para armazenar o café quente), onde nas camadas desse recipiente existe uma composta de um semi-vácuo, a qual dificulta a perda de calor. 

          As únicas partes do seu corpo que experimentarão um forte resfriamento seriam as regiões das mucosas, como a boca, onde a água ebuliria e o vapor levaria o calor da região para o exterior de forma bem rápida. Nessas regiões, sim, haveria um grande resfriamento, com temperaturas chegando próximas de 0°C.  Depois de morto, a água do seu corpo, especialmente do sangue, começaria a ebulir mais facilmente e escapar de você, levando bastante calor no processo e ocorrendo ainda mais resfriamento. Mas isso não seria suficiente para congelar seu corpo por inteiro, principalmente por causa da água já estar previamente no estado gasoso e continuamente escapando.

          Existe também outro perigo no espaço. Pegando o exemplo do Sistema Solar, caso estivéssemos fora da nossa atmosfera protetora, seríamos um alvo fácil da forte radiação solar incidindo diretamente sobre a pele, caso não estejamos protegidos na sombra do nosso planeta ou de outro objeto. E considerando uma posição próxima da Terra, isso poderia significar um aquecimento de cerca de 120°C no lado exposto ao Sol! (3). Nesse caso, em específico, parte do seu corpo talvez até pudesse explodir devido ao vapor interno gerado, mas até o aquecimento superficial alcançar as partes internas, você provavelmente não estaria mais vivo devido à falta anterior de oxigênio pressurizado.

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   EXPERIMENTO COM CÃES

           Na década de 1960, um departamento de pesquisas fisiológicas a serviço Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (NASA), conduziu um experimento (!) sob condições de quase vácuo envolvendo 126 cães (Ref.4). No experimento, os cães foram expostos uma rápida descompressão variando (1 ou 0,2 segundos) a uma altitude próxima de 11 km (pressão ambiente de ~180 mmHg, em comparação com a pressão ambiente de ~750 mmHg a nível do mar), simulando o que aconteceria se astronautas humanos em órbita fossem expostos ao vácuo espacial durante acidentes. Os cães foram expostos ao ambiente de quase vácuo (~1 mmHg) por períodos variando de 5 até 180 segundos - com ou sem oxigenação (>90% de oxigênio) prévia - e, então, recompressados (simulando um astronauta sendo resgatado).

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(!) Hoje, provavelmente, esse tipo de experimento não seria aceito por questões éticas, especialmente fora do contexto de corrida espacial da Guerra Fria.
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          Todos os animais expostos ao quase vácuo por mais de 5 segundos tenderam a perder consciência e começaram a inchar e colapsar dentro de 9 a 11 segundos. Caso não fossem recompressados dentro de 5 segundos, os cães começavam a mostrar notáveis sinais de expansão gasosa e envolvimento de vapor de água. Isso foi manifestado por um alto grau de enfisema subcutâneo e expulsão de gás do estômago e intestino, frequentemente com projeção simultânea de vômito, fezes e urina. 

           O efeito do vapor de água e expansão de gás foram tão intensos que os animais se tornaram completamente imobilizados, com as extremidades, pescoço e corpo em uma posição estendida, similar em aparência a "animais de bexiga/balão". Estranhamento, as orelhas e o globo ocular aparentemente não exibiram efeitos similares, permanecendo essencialmente normais em aparência, mas com distensão ao redor dos olhos e na língua. 

          No final de 10 segundos, todos os cães estavam aparentemente inconscientes. Isso foi seguido por uma espécie de convulsão, terminando em apneia e uma rigidez espástica que progrediu para uma paralisia flácida. Todos os animais entraram nesse estado de paralisia flácida dentro de ~30 segundos, e permaneceram assim até serem recompressados. Durante esse período, secreções similares a saliva e a urina se tornaram congeladas e parcialmente desidratadas. A língua também mostrou-se coberta com gelo, especialmente em animais expostos ao quase vácuo por mais de 2 minutos, quando resfriamento por evaporação é acentuado em superfícies úmidas.

           Após recompressão para maiores pressões, os gases subcutâneos foram recompressados e os animais rapidamente e dramaticamente desinflaram, voltando à aparência normal a partir de pressão em torno de 70 mmHg mas permanecendo em estado de paralisia flácida, inconscientes e com apneia. Em pressão reestabelecida de 45-50 mmHg, grande porção da desinflação foi completada, reforçando que vapor de água representava o principal gás inflando os cães.

          A rapidez da recuperação durante ou após a recompressão mostrou-se geralmente dependente da duração da exposição ao quase vácuo, a taxa de recompressão, e se os animais foram ou não recompressados com oxigênio ou ar atmosférico normal. Como esperado, quanto menor o tempo de exposição às baixas pressões e mais rápida a recompressão com oxigênio, mais curto e menos complicado o período de recuperação. Na ausência de complicações cardíacas, respiração normal começava dentro de 2-3 minutos após a recompressão, com movimentos das extremidades do corpo dentro de 10-15 minutos. Durante esse período, os cães exibiram movimentos desorientados e aparente cegueira, com recuperação ocorrendo ao final de 30 minutos. Ao final de 24 horas, os cães sobreviventes espontaneamente exibiam completa recuperação, com função respiratória e comportamento normais.

          Todos os cães expostos ao ambiente de quase vácuo por menos de 120 segundos sobreviveram praticamente sem complicações de longo prazo, apesar de evidência de severo mas transitório envolvimento pulmonar. Por outro lado, exposições variando de 120 a 180 segundos resultaram em taxas de mortalidade de ~15% a mais de 80%, respectivamente, com grandes variações nos sobreviventes em termos de complicações (alguns com exposição até 3 minutos se recuperaram bem, mas um com exposição de 2 minutos sofreu severo mas não-fatal dano no sistema nervoso central).

          Como base no experimento e em experimentos prévios similares, os pesquisadores concluíram que é possível prevenir a morte de um astronauta exposto ao vácuo espacial caso seja repressurizado com oxigênio dentro de ~90 segundos. Perda de consciência "útil" provavelmente ocorreria dentro de <12-15 segundos

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   CONCLUSÃO

          Caso um astronauta remova o capacete ou o seu seu traje em meio ao vácuo espacial, ele não explodiria ou congelaria de forma instantânea como geralmente alegado, mas morreria rapidamente, em cerca de 1 minuto por causa da rápida e dramática hipoxia (baixa concentração de oxigênio circulante). A resistência da pele e sistema circulatório são suficiente para segurar a expansão interna de gases (especialmente vapor de água) e a falta de um meio eficiente de dispersão de calor, aliado à ausência de um escape completo e rápido da maior parte da água do corpo, não permitiria um extenso congelamento, apenas em áreas específicas do corpo (ex.: mucosas). Com base em experimentos laboratoriais com animais não-humanos, é possível salvar um astronauta exposto ao vácuo espacial, mas, no máximo, dentro de ~90 segundos.

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(1) Foi mencionado 'pressão do ar', mas o processo serve para qualquer tipo de pressão sobre o sistema.

(2) A radiação infravermelha é produzida quando os elétrons excitados dos átomos liberam fótons com comprimentos de ondas entre 700 e 105 nanômetros. Essa excitação possui alta resposta dentro da faixa de temperatura do nosso corpo, a qual fornece calor para os átomos. Como a radiação infravermelha é eletromagnética, ela não precisa de um meio para ser transmitida, escapando do nosso corpo mesmo no vácuo. Para entender mais sobre o assunto, acesse: Por que o calor vai do quente para o frio?

(3) Algo interessante de se observar nesse ponto é que, como não existe ar, ou qualquer outro meio material de imersão, caso o astronauta estivesse em um traje espacial, este se aqueceria até os cerca de 120°C de um lado e o outro lado não exposto ao Sol poderia estar a uma temperatura de 100°C negativos! Isso acontece porque, se o calor de uma lado não for transmitido ao outro lado, não ocorre aquecimento algum, a não ser de radiação/partícula aleatória viajando pelo espaço, como o infravermelho emitido pela Terra. Se existisse ar em volta, este ajudaria a transmitir o calor uniformemente ao redor do traje. Aliás, a cor branca do traje espacial ajuda a amenizar o aquecimento por refletir bem a radiação visível. Um situação relativamente similar ocorre nos desertos, onde a temperatura ambiente chega a ultrapassar 50°C durante o dia e, à noite, pode atingir um valor abaixo de 0°C, por causa da pouca umidade do ar e baixo calor específico da areia, ambos fatores que dificultam o armazenamento do calor gerado durante o dia.
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> Artigo relacionado: Qual é a relação entre GPS e Relatividade?


REFERÊNCIAS
  1. Jenkins, Dennis R. (2011). Dressing For Altitude. U.S. Aviation Pressure Suits - Wiley Post to Space Shuttle. NASA, ISBN 978-0-16-090110-2. https://www.nasa.gov/pdf/683215main_DressingAltitude-ebook.pdf
  2. http://curious.astro.cornell.edu/the-universe/galaxies/151-people-in-astronomy/space-exploration-and-astronauts/human-spaceflight-current-or-past/954-what-would-happen-if-you-took-off-your-helmet-in-space-beginner
  3. https://sitn.hms.harvard.edu/flash/2013/space-human-body/
  4. Bancroft et al. Experimental Animal Decompressions to a Near-Vacuum Environment. Physiology Branch, No. 115801. https://ntrs.nasa.gov/api/citations/19660005052/downloads/19660005052.pdf