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Doenças mentais aumentam o risco para crimes violentos?


- Atualizado no dia 20 de outubro de 2020 - 

          Um robusto estudo conduzido em 2016 pela campanha Time to Change, a qual luta pelo fim da discriminação contra indivíduos com problemas mentais, trouxe dados alarmantes. De acordo com os resultados do estudo, cerca de um terço (1 em cada 3 pessoas) do público em geral expressou acreditar que as pessoas com problemas mentais tendem a cometer muito mais violência do que os indivíduos normais. A visão preconceituosa era exacerbada quando transtornos neurais mais graves, como a esquizofrenia, eram considerados. De fato, um estudo publicado em 2019 no periódico Health Affairs (Ref.12), utilizando questionários, encontrou que mais de 60% dos participantes percebiam pessoas com esquizofrenia como perigosas para outras pessoas, e 44-59% deram suporte para o tratamento coercivo.

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            Por mais que o senso comum diga o contrário, é um mito achar que as doenças mentais em geral estão diretamente relacionadas com o aumento de violência contra terceiros. Análises sugerem, por exemplo, que cerca de apenas 1% das vítimas de crimes violentos relatam que o incidente ocorreu porque o criminoso possuía problemas mentais. No Reino Unido (União de 4 países na região das ilhas britânicas), apenas entre 50 e 70 casos de homicídios são cometidos anualmente por pessoas com problemas mentais, sendo que o número total dos portadores dessas enfermidades são de mais de 7 milhões de indivíduos nesse bloco europeu. Nos EUA, apenas 4% da violência reportada é atribuída a pessoas que sofrem de transtornos psiquiátricos. E mesmo nesses casos de violência, os crimes podem estar associados a circunstâncias e fatores específicos que se somam ao problema mental.

             É um consenso entre especialistas que não existe sólida relação científica entre os sintomas de transtornos mentais e um comportamento violento ou desejo de machucar alguém para a grande maioria das doenças mentais. E nas poucas situações em que os comportamentos violentos são expressos entre os doentes mentais, na maioria das vezes não existe ódio contra as pessoas ao redor, resultando frequentemente em danos ao próprio paciente. Além disso, estudos mostram que os pacientes mentais é que acabam sendo uma das maiores vítimas de violência oriunda justamente das pessoas "normais", devido ao preconceito. E são muito raros os casos em que uma psicopatia leva a comportamentos assassinos (serial killers, por exemplo) ou vício por violência.


Infelizmente, muitos acham que a maioria das pessoas com problemas mentais são como uma versão do 'Médico e o Monstro'.

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> Transtornos mentais severos têm sido associados com uma alta incidência de comportamento violento e são caracterizados por sintomas severos que dramaticamente prejudicam a adaptação social do paciente e outras funções, e previnem que o paciente entenda completamente suas próprias ações. Seis tipos de transtornos mentais são categorizados como severos: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, psicose paranoica, transtorno bipolar, transtorno psicótico causado por epilepsia, e retardo mental. Porém, comportamento violento é representado por amplo espectro de ações, incluindo impulsividade, dano a propriedade, dano auto-infligido, suicídio e agressões contra outros indivíduos. Ref.20
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          E de onde vem esse preconceito? Existem cinco causas que podem explicar:

1. A primeira é voltada para produções de entretenimento, onde filmes, séries, entre outros, tendem a representar os doentes mentais como psicopatas violentos ou uma ameaça constante a todos a sua volta. Isso ficou bem notável com o recente filme Coringa (Joker, 2019). O Coringa foi o primeiro filme com censura de 18 anos que faturou mais de 1 bilhão de dólares no box office, com mais de 100 milhões de espectadores ao redor do mundo. No filme, o protagonista Arthur (representado pelo ator Joaquin Phoenix) é mais um personagem com doença mental retratado como um indivíduo extremamente violento. Em um estudo publicado no periódico JAMA Network Open (Ref.13), pesquisadores encontraram forte evidência de que, de fato, o filme exacerbou no público a ideia de que que as pessoas com doenças mentais são violentas.

2. Em segundo lugar, temos a real relação entre prisioneiros e saúde mental. Nos EUA, por exemplo, quando se é levado em conta um amplo espectro de transtornos mentais, das mais leves (ex.: comportamento antissocial) até as mais graves (ex.: esquizofrenia), cerca de 80-90% dos presidiários possuem alguma dessas doenças.

3. A terceira causa relaciona atentados em massa (como estudantes que comentem chacinas em escolas) com a saúde mental, onde alguns dos casos de fato estão associados a graves transtornos de psicopatia. Esses casos, porém, amplificados pela mídia e distorcidos por questões políticas e ideológicas, levaram à forte associação entre violência com armas de fogo (incluindo atos terroristas) e doenças mentais, especialmente nos EUA e principalmente quando os responsáveis pelo crime são brancos. Radicalização, um processo pelo qual indivíduos adotam extremas idealizações políticas, sociais e religiosas, é frequentemente associada com doenças mentais (ex.: depressão) e frequentemente as pessoas assumem que entre terroristas existe uma maior prevalência de transtornos mentais, sem sólida evidência para tais alegações (Ref.17). Algo semelhante ocorre quando tentam jogar a culpa de crimes violentos em jogos de videogame violentos, algo sem sustentação científica (I).

4. A quarta é relacionada ao comportamento mais agressivo de certos pacientes nos sanatórios e outros centros de reabilitação. Todo profissional de saúde será vítima, pelo menos uma vez em sua estadia em tais locais, de violência dos internos, influenciando negativamente a percepção do público quando tais episódios são divulgados pela mídia.

 5. Devido ao fato de que por muito tempo as doenças mentais foram associadas a maus espíritos e a outras entidades malignas durante a história da sociedade humana, um estereótipo bastante negativo ainda persiste contra os portadores dessas enfermidades, especialmente disseminado entre as pessoas com um menor nível educacional.               .

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             Na segunda causa em específico, é mais do que válido uma pontuação explicativa. Indivíduos que cometem crimes violentos tendem a ser pessoas que sofreram abuso na infância e outros traumas marcantes, passaram por extrema pobreza, e se viram cercados de drogas/álcool em seu ambiente familiar. Esses são os reais grandes responsáveis pela violência na nossa sociedade, especialmente o último. E pessoas submetidas a essas experiências têm altas chances de desenvolverem transtornos mentais (II), algo refletido na população carcerária. Na verdade, esse é o mesmo fenômeno que relaciona com negros com violência.

            Devido ao fato de que a maioria dos prisioneiros são negros (!), e grande parte da população que vive em áreas extremamente violentas são constituídos por indivíduos negros, muitas pessoas preconceituosas acham que existe uma relação racial direta do tipo "negros são, em natureza, mais violentos". Mas, obviamente, a exclusão e o preconceito históricos fizeram grande parte da população negra ser bastante explorada e ter poucas oportunidades, empurrando-a para comunidades muito pobres e incentivando o crime como opção de sustento. Um doente mental, quando analisado de forma isolada, não apresenta maior probabilidade de querer causar o mal às pessoas a sua volta, salvo raras exceções. Já no caso dos pacientes mentais em clínicas de reabilitação, a violência é gerada não por causa dos sintomas e, sim, porque eles acabam sendo submetidos a tratamentos fortes e obrigados a se comportarem contra a sua vontade, gerando uma agressividade contra os profissionais de saúde. Não é por menos às diversas críticas questionando a existência dos sanatórios.

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(!) Lembrando que 'negro' aqui não faz referência a uma 'raça' em termos biológicos, porque não existem raças/subsespécies na nossa espécie (Homo sapiens). Aqui faz-se referência primariamente à cor escura da pele, associada ou não com outros traços fenotípicos. Para mais informações, acesse: Existem raças humanas?
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             Um estudo conduzido na Suécia, analisando 250419 indivíduos com transtornos psiquiátricos comuns (ex.: esquizofrenia, transtorno bipolar, depressão e ansiedade) e publicado no periódico JAMA Psychiatry (Ref.18), encontrou que indivíduos com doenças mentais eram 3-4 vezes mais prováveis de sofrerem violência e de perpetrarem violência em relação aos seus irmãos sem doenças psiquiátricas. Note, porém, que o risco é aumentando em ambos os lados (violência passiva e ativa), reforçando que a sujeição à violência é um gatilho para a subsequente perpetração da violência. A única exceção no estudo foram indivíduos com esquizofrenia, que não se mostraram mais sujeitos a sofrerem violência, talvez devido ao isolamento social.

           Evidências de meta-análises também sugerem que mulheres com depressão e transtornos de ansiedade são 3 a 4 vezes mais prováveis de serem expostas à violência doméstica do que aqueles sem esses transtornos, e exposição a essa forma de violência pode afetar até 60% das mulheres com doença mental severa (Ref.19).

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            Bebidas alcoólicas, uso de substâncias de abuso, má educação familiar, criminalidade, alienação ideológica e preconceito, sim, geram comportamentos agressivos no sentido de aumentarem o risco de crimes violentos, especialmente violência doméstica. Aliás, um estudo recente publicado no periódico Frontiers in Psychiatry (Ref.21) encontrou que mulheres ofensoras com comportamentos letais e violentos estavam fortemente associadas a um histórico de exposição a violência prévia [como vítimas], independentemente do estado de saúde mental; relações íntimas e abuso de substâncias estavam fortemente associados com ofensoras sem transtornos mentais.

           E, infelizmente, vários doentes mentais acabam sendo marginalizados pela família e sociedade em geral, ficando suscetíveis a fatores de aumentam o risco para crimes violentos e agressão contra terceiros. Com o preconceito contra os portadores de transtornos mentais e consequente marginalização desses indivíduos, alguns acabam buscando conforto no álcool e outras drogas, algo que pode levar a episódios violentos e fortalecer o preconceito. Caso exista um ambiente familiar acolhedor e livre de fatores de risco associados à violência, os sintomas da doença, por si só, não fomentam comportamentos violentos - em especial no sentido de causar danos físicos a outras pessoas - na grande maioria dos casos (algumas psicopatias podem levar a uma maior agressividade, mas são casos mais raros). 

          Enquanto massivas campanhas de conscientização não forem mais promovidas visando resolver o problema, indivíduos com transtornos bipolares, psicopatias, esquizofrenias, entre outras, continuaram sendo vistos pelo público como sendo extremamente perigosos, ficando sujeitos ao preconceito, violência e ao isolamento social. Quem cria o monstro acaba sendo nós mesmos, não a enfermidade. 


O preconceito acaba trazendo o isolamento, o qual induz aos vícios químicos e este, sim, pode trazer a violência e agressividade.

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(II) Diversos são os fatores que levam ao desenvolvimento de doenças mentais, especialmente genéticos, e até parasitas estão associados com essas doenças (Sugestão de leitura: O que é Toxoplasmose Congênita?).  
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://ajph.aphapublications.org/doi/abs/10.2105/AJPH.2014.302242
  2. http://link.springer.com/article/10.1007/s00127-011-0356-x
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1525086/
  4. http://ps.psychiatryonline.org/doi/abs/10.1176/appi.ps.201100529
  5. http://ps.psychiatryonline.org/doi/pdf/10.1176/appi.ps.201300136
  6. http://psycnet.apa.org/journals/lhb/38/5/439/
  7. http://ps.psychiatryonline.org/doi/abs/10.1176/ps.2008.59.11.1335
  8. http://www.bbc.com/future/story/20150723-the-myth-of-mental-illness-and-violence
  9. http://icclr.law.ubc.ca/sites/icclr.law.ubc.ca/files/publications/pdfs/Mental%20Illness%20and%20the%20Criminal%20Justice%20System%20[Final%20VS].pdf
  10. Medicine and Psichiatry in Western Culture: Ascient Greek myths and modern prejudice
  11. http://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.1001452
  12. https://www.healthaffairs.org/doi/abs/10.1377/hlthaff.2019.00702
  13. https://jamanetwork.com/journals/jamapsychiatry/article-abstract/2758324
  14. https://psycnet.apa.org/record/2020-79592-001
  15. https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0022427818787225
  16. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0165178117300252
  17. https://www.cambridge.org/core/journals/european-psychiatry/article/systematic-review-on-the-relationship-between-mental-health-radicalization-and-mass-violence/A9E1E9F4409058D5D55ADA5568430AB7
  18. https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2764842
  19. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9077615/
  20. Fang et al. (2023). Identifying risk factors to predict violent behaviour in community patients with severe mental disorders: A retrospective study of 5277 patients in China. Asian Journal of Psychiatry, Volume 83, 103507. https://doi.org/10.1016/j.ajp.2023.103507
  21. Trägardh et al. (2023). Lethal and severe violence: Characterizing Swedish female offenders with and without a severe mental disorder. Frontiers of Psychiatry, Volume 14. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2023.1143936