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Chá de fita possui algum fundamento?


- Atualizado no dia 14 de setembro de 2021 -

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           Drogas recreativas, com variados graus de periculosidade e de adicção, são encontradas aos montes para a venda, legais ou ilegais. Desde fumo de cigarro e de maconha, até consumo alcoólico e aplicação intravenosa de metanfetamina, muitos são os tipos e formas de administração de substâncias de abuso. Entre chás, os mais conhecidos são aqueles alucinógenos derivados de cogumelos (!), porém existe uma infusão que talvez ninguém com mínimo bom senso pensaria em consumir: chá de fita. Sim, é isso mesmo que você está pensando: o cidadão pega um bolo de fita cassete (K7) ou de VHS (video home system), mistura com água, ferve, filtra e bebe. E o pior: considerando relatos na internet (fóruns e afins), essa prática é antiga, popularmente disseminada e até hoje possui significativa adesão, particularmente aqui no Brasil.
           

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          Chá de fita é um conceito tão absurdo que quase inexiste qualquer conteúdo na literatura acadêmica explorando essa "droga". É difícil entender como esse "chá" se tornou uma realidade, talvez por causa da curiosidade aliada com o baixo custo da matéria-prima (muito material descartado ou esquecido, considerando que a tecnologia K7 e de VHS praticamente não é mais utilizada entre a maior parte da população), mas é relatado que a infusão resultante pode causar alucinações - alegadamente tão fortes quanto àquelas deflagradas pelo LSD -, comportamento agressivo e perda de consciência, apesar de não existir estudo dando suporte para esses reportes anedóticos. Esses efeitos têm sido especulados de serem causados pela presença de chumbo e de mercúrio em níveis tóxicos na 'fita' usada na preparação do chá.          

           As fitas cassetes e de VHS são constituídas, basicamente, de compostos magnetizáveis, na maioria óxidos de ferro ou cromo, uma estrutura plástica de suporte (acetato de celulose, cloreto de polivinila ou poliéster), lubrificantes e uma cola orgânica de estabilização. Nenhum desses compostos, puros ou fervidos, provocam efeitos alucinógenos descritos pela ciência ou "dão um barato". Na forma de chá, talvez a única coisa que esses materiais podem fazer para alterar o cérebro seja intoxicá-lo, já que pode existir alto nível de metais tóxicos e outras toxinas extraídos da fita e dissolvidos na água de infusão.

Não existem componentes alucinógenos no rolo de fita magnetizável


           Após uma busca exaustiva na literatura acadêmica, apenas dois estudos Brasileiros puderam ser identificados explorando o tema, ambos focados na análise quantitativa dos potenciais metais e compostos orgânicos tóxicos presentes no chá de fita.
  
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           O primeiro estudo, publicado em 2016 no periódico Journal of the Brazilian Chemical Society (Ref.1), analisou amostras de chá de fita preparados usando K7 e VHS e diferentes fontes de energia (aquecimento com chapa de aquecimento e e micro-ondas) para o procedimento de extração. Os pesquisadores buscaram detectar qualitativamente e quantitativamente os componentes orgânicos e metálicos nessas amostras usando plasma indutivamente acoplado com espectrometria de massa (ICP-MS) e  espectrometria de massas de ressonância ciclotrônica de íons por transformada de Fourier (FT-ICR-MS). Os resultados mostraram elevadas concentrações de manganês (Mn), cobalto (Co), níquel (Ni) e cromo (Cr) - até 5 vezes superiores ao limite máximo permitido para água de consumo. Em relação a compostos orgânicos, nenhuma atribuição foi elucidada, e não existia substâncias suspeitas conhecidas.

           O Mn estava presente com alta concentração em infusões de fita K7. Excesso de Mn pode causar manganismo, o qual é uma doença neurodegenerativa, similar à doença de Parkinson, causando  bradicinesia (movimentos lentos) e disseminada rigidez (comum em ambas as doenças), além de mais frequente distonia, maior propensão a cair de costas e uma característica postura de movimentação, chamada de "andar-de-galo", onde os pacientes andam na ponta dos dedos com os cotovelos flexionados e a espinha ereta. Somando-se a isso, a exposição a um excesso de Mn pode causar efeitos hematológicos, endócrinos e reprodutivos (sexo masculino), e possivelmente efeitos de letargia.

          O Cr foi encontrado com altas concentrações em infusões com fita VHS. Enquanto que o Cr (VI) é um conhecido mutagênico, genotóxico e carcinogênico, o Cr (III) pode causar anomalias em cromossomos e interferir no processo de replicação do DNA.

          O Ni foi encontrado com relevantes concentrações em infusões de K7. O Ni é um carcinogênico e um elemento genotóxico, e pode também atravessar a barreira da placenta e sanguínea. Pode também se acumular nos pulmões, rins, fígado e testículos, e causar oxidativo estresse e substituir o zinco (Zn) em proteínas, com potencial danos ao sistema reprodutivo masculino. Porém, mesmo a ingestão de 1 litro de chá de fita não seria capaz de ultrapassar o limite diário (840 μg/dia) estabelecido pela OMS.

          O Co, presente em quantidades significativas nas fitas K7 e VHS, pode causar atrofia no nervo óptico, disfunções retinais e danos na mácula (região central da retina), caso em concentrações no sangue maiores do que 0.112 µg/L. Na forma de Co2+, age como um bloqueador de Ca2+, também podendo suprimir comunicação entre fotorreceptores e neurônios de segunda ordem. Esses efeitos deletérios associados ao sistema ocular humano, pode explicar problemas de visão reportados por alguns usuários de chá de fita.

          Os autores do estudo concluíram que efeitos cerebrais e visuais causados pelo chá de fita podem ser oriundos de toxicidade neural e ocular causada pelas relativas altas concentrações de Mn e de Co, exacerbada ou não pelo Cr e o Ni. Porém é incerto se, na ausência de um consumo crônico, esses efeitos seriam observados. Ressaltaram também que o efeito placebo não pode ser descartado, independentemente da toxicidade.

          No segundo estudo, publicado em 2020 no periódico Journal of Trace Elements in Medicine and Biology (Ref.2), pesquisadores analisaram a bioacessibilidade in vitro dos metais presentes no chá de fita. Primeiro, eles encontraram que os metais em maior concentração no chá de fita (K7 e VHS) eram o Co, Ni, Mn e o zinco (Zn) (415, 202, 1389 e 2397 μg/L, respectivamente). Co, Ni e Mn mostraram-se totalmente bioacessíveis (ou seja, potencial absorção completa no sistema digestivo), enquanto que a bioacessebilidade para o Zn era de 66%. Os autores concluíram que o consumo de chá de fita pode contribuir para um consumo de metais tóxicos ultrapassando o limite máximo diário de segurança estabelecido pelas agências de saúde, com potenciais efeitos deletérios.

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   CONCLUSÃO

          Apesar do chá de fita ser usado como droga de abuso, não é descrito nenhum componente ou efeito alucinógeno, de euforia, anestésico, entre outros, na literatura acadêmica associado a esse tipo de infusão. Excesso de exposição a certos metais - particularmente Mn e Co - encontrados na composição de fitas K7 e de VHS e dissolvidos na água do chá podem talvez causar danos neurotóxicos e visuais que podem explicar relatos anedóticos na internet. Compostos orgânicos potencialmente tóxicos que podem estar presentes no chá são ainda pouco caracterizados. O alerta que fica, portanto: não existe plausível justificativa no sentido de consumir chá de fita para "curtir um barato", e os usuários podem estar sendo expostos a sérios riscos de toxicidade, especialmente porque a composição das fitas cassetes pode sofrer significativa variação em termos de contaminantes e de matéria-prima. 


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. Lehmann et al. (2016). Evaluating the "Tape Tea" Myth as Low Cost Abuse Drug through Mass Spectrometry. Journal of the Brazilian Chemical Society, 27(10). https://doi.org/10.5935/0103-5053.20160061 
  2. Andrade et al. (2020). In vitro bioaccessibility of metals from tape tea – a low-cost emerging drug. Journal of Trace Elements in Medicine and Biology, 126613.  https://doi.org/10.1016/j.jtemb.2020.126613