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Qual a função das centrífugas nos programas nucleares?


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            Sempre quando ouvimos algo relacionado aos programas nucleares, seja ligado à geração de energia elétrica (usinas termonucleares) ou à produção de armas de destruição em massa, o termo 'centrífuga' vem junto. E é bem conhecida pelo público a preocupação dos órgãos de fiscalização internacional com o desenvolvimento das tecnologias de centrifugação no mundo.

            Quando instalações de centrífugas começam a ficar muito avançadas em certos países, o IAEA (Agência Internacional de Energia Atômica) vai correndo investigar a situação, especialmente se as instalações estiverem sendo usadas em programas nucleares. Sim, a precaução é justa, já que esse é um perigoso indicador de possíveis planejamentos de armas nucleares (bombas atômicas de fissão ou de fusão). E por quê? Para respondermos, precisamos entender o que é o tão famoso 'enriquecimento de urânio'.

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            O Urânio, como muitos devem saber, é o elemento químico radioativo base da energia nuclear moderna. Na natureza, nós podemos encontrá-lo na forma majoritária de dois isótopos, sempre incorporados em compostos inorgânicos (minerais como a uraninita): urânio-235 e urânio-238. Diferente do 238, o isótopo 235 do urânio é altamente radioativo e instável, sendo perfeito para ter o seu núcleo fissionado e manter uma reação nuclear em cadeia. Ou seja, para a produção energética em usinas e armas atômicas, busca-se sempre o urânio 235, o qual irá fissionar (ter o seu núcleo quebrado) a partir de nêutrons lentos e produzir imensas quantidades de energia. Mas aí que está o problema: como separar o urânio-235 do urânio-238? Ambos apresentam, virtualmente...

1... O mesmo perfil químico, ou seja, separá-los pelos métodos tradicionais fica quase impossível;

2. Estão sempre misturados (claro, apresentam a mesma reatividade);

3. Além disso, entre 99,2739 e 99,2752% de todo o urânio presente na natureza está na forma do isótopo 238. Já o 235 conta apenas com algo entre 0,7198 e 0,7202%. Assim, em toda amostra mineral onde exista urânio, a quantidade do isótopo 235 será ínfima, dificultando drasticamente sua separação.

          E essa é a peça chave da questão: é necessário uma grande quantidade de urânio-235 no bolo do material radioativo para ser possível usá-lo com eficiência satisfatória nos processos de produção de energia. Nas usinas nucleares, é necessário que a concentração do urânio-235 esteja entre 3 e 5%. Para a construção de armas nucleares, o mínimo requerido é 85%. Desse modo, é preciso purificar bem o urânio, retirando o excesso do 238, mas mantendo o 235, em proporções que dependem do uso. Esse processo é o nosso 'Enriquecimento de Urânio', ou seja, deixar a amostra rica em urânio-235.

Uma placa de urânio altamente enriquecida; concentrações de até 97% já foram alcançadas para fins de pesquisa

          Para resolver esse problema, alguns métodos foram desenvolvidos ao longo do século XX para o enriquecimento. Como a reatividade não podia ser utilizada, confiou-se em outra característica elementar: o peso atômico. Ora, o urânio-238 é mais 'pesado' (maior massa atômica) do que o urânio 235 (diferença bem pequena, mas significativa), já que existe 3 nêutrons a menos nesse último. Podemos listar os três principais métodos baseados na diferença de massa atômica entre os dois isótopos já colocados em prática:

1. O primeiro método ficou conhecido como Difusão Térmica e foi utilizado durante o período da Segunda Guerra Mundial. Nele, hexafluoreto de urânio, na forma gasosa, é difundido em um sistema com superfícies quentes e frias. O mais pesado, 238, tende a se difundir no sentido da superfície fria e o leve, 235, na superfície quente. Assim, obtém-se uma separação, mesmo que pouco eficiente e dispendiosa. Está aposentado desde 2013, e obsoleto desde que foi implantado o processo descrito a seguir;

2. O segundo, e bem mais eficiente, método foi através da Difusão Gasosa, onde o hexafluoreto  de urânio gasoso era forçado a atravessar membranas semipermeáveis especiais. Esse processo separa uma pequeníssima quantidade do urânio-235, sendo necessário ser efetuado diversas vezes para concentrar uma grande quantidade desse isótopo. Substituiu bem a Difusão Térmica durante a Guerra Fria. Até hoje, cerca de 33% do urânio enriquecido é obtido através desse mecanismo;

3. Mas assim que o método de Centrifugação Gasosa foi aperfeiçoado a partir de modelos mais simples usados em 1934, esse se tornou o processo mais almejado por todos os programas nucleares. Com um custo bastante reduzido e eficiência dezenas de vezes maior, ele é a menina do olhos na purificação do urânio-235. Atualmente, 54% de todo urânio produzido é feito através dessa tecnologia e diversas otimizações nesse método são conquistadas todos os anos em alguns países.

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          O processo existente na Centrifugação Gasosa é o mesmo existente na centrifugação tradicional, como aqueles aparelhos populares de centrífuga usados para separar a parte sólida do sangue do seu líquido (plasma). Na centrifugação, seja o tipo que for, é criada uma rotação com alta velocidade angular, acelerando todos os corpos dentro do sistema através de uma força centrípeta (a velocidade angular fica constante depois de um tempo). Por diferença de densidade e, no caso dos isótopos, pela diferença de massa atômica entre os átomos (e consequentemente maior densidade em uma amostra de urânio), corpos mais densos tendem a ir mais rapidamente para o sentido oposto do centro de rotação por causa da força centrípeta, enquanto os menos densos tendem a ficar mais próximas do centro. Quanto maior a velocidade angular, maior a força centrípeta. É o mesmo que ocorre quando deixamos uma solução decantar, só que, nesse caso, estamos usando a força da gravidade para puxar preferencialmente as partículas mais densas para o fundo. Através de uma forte centrifugação, a força centrípeta, agora no lugar da gravitacional para o papel de decantador, é muito maior, gerando uma aceleração também maior, e, portanto, diminuindo drasticamente o tempo de decantação.

         Seguindo o princípio descrito acima, nos cilindros de centrifugação gasosa, hexafluoreto de urânio gasoso é rotacionado em altíssimas velocidades, fazendo com que o isótopo 238, mais pesado, seja arremessado em sentido tangente ao exterior do cilindro, enquanto o 235 fica mais perto do centro de rotação. Assim, é possível extrair uma fração mais concentrada no isótopo 235 em comparação com a amostra inicial. O sistema é construído em série, e a parte mais rica em urânio 235 separada em um cilindro é lançada em seguida para outro cilindro de centrifugação, para ficar ainda mais concentrada no 235. A ligação em série dos cilindros - como mostrado na foto abaixo - aumenta a eficiência e diminui o tempo do processo de enriquecimento. Na saída final, teremos uma fração de urânio bem mais rica no isótopo 235 do que a mistura injetada inicialmente no sistema de enriquecimento. 
 
Centrifugas Gasosas ligadas em série
 
           A Centrifugação Gasosa, por ser o método mais eficiente, é sempre fiscalizada de perto pelo IAEA. Poucos são os países com tecnologia suficiente para terem instalações produtivas utilizando as centrifugas. O Irã, por exemplo, teve as suas centrífugas desativadas em 2016 como fruto de acordo com os EUA em 2015, visando prevenir a construção de armas nucleares pelo país em troca de suporte econômico. Quanto mais avançadas as centrífugas (maior rotação, peças de menor desgaste, melhor extração, etc.) mais eficiente e mais rápido é o enriquecimento, ficando relativamente fácil criar concentrações suficientes de urânio-235 para o uso em armas nucleares.

Centrífugas apreendidas na Líbia, compradas com objetivos armamentistas do Paquistão, em 2003

        Para finalizar, é válido lembrar que existem outros métodos para a separação dos isótopos de urânio, utilizando desde tecnologias de laser até processos químicos especiais. Mas nenhum deles compensam ainda o uso em escala industrial e a exploração comercial.


NOTAS

Isótopos: São elementos químicos que apresentam o mesmo número atômico (número de prótons no núcleo e, consequentemente, o mesmo número de elétrons em seu estado neutro), mas diferente número de nêutrons (portanto, diferente massa atômica). Assim, eles os isótopos, como os do urânio, possuem, virtualmente, o mesmo perfil químico e diferentes pesos atômicos.

Hexafluoreto de urânio: É um sólido cristalino incolor a temperatura e a pressão ambientes. É usado para os processos de enriquecimento por requerer baixas temperaturas para entrar na forma gasosa (baixo ponto de ebulição: 56,5°C) e se encontrar na forma sólida em condições ambientes, o que facilita bastante seu manuseio nas instalações de centrifugação.

Plutônio: Os isótopos do plutônio são fissíveis também, mas encontram-se em quantidades extremamente ínfimas na natureza. Para obtê-lo em escala comercial e prática, usa-se o bombardeamento de urânio 238 com nêutrons, produzindo neptúnio- 239 através do decaimento beta (um nêutron no núcleo é transformado em próton) e, logo em seguida, este último é convertido em plutônio 239, através do mesmo processo. Nas usinas e bombas nucleares, esse mecanismo ocorre naturalmente, onde os nêutron inicial vêm da fissão do núcleo do urânio-235 (o plutônio faz parte do chamado ´lixo radioativo´). Os isótopos mais usados para fins energéticos são o 239 (majoritário) e o 238.

> O plutônio também é usado para a fabricação de armas nucleares, compondo o núcleo de bombas de fissão e termonucleares. Porém, para fabricar tais armas com esse elemento, é preciso de mecanismos mais complicados e maiores custos, apesar de ser exigido uma menor quantidade de massa desse elemento para fabricar uma arma com o mesmo poder de uma de urânio. O urânio-235 acaba sendo a escolha inicial porque já é um elemento fissível naturalmente encontrado em relativa boa quantidade na mineração, além de ser exigido nas usinas termonucleares e permitir a fabricação mais simples de bombas atômicas. Quando um país dispõe de enormes estoques de plutônio, é porque este já é um subproduto das usinas nucleares. Esse subproduto pode, sim, ser usado para fabricar bombas atômicas, porém exige-se maior custo e empreendimento para tal. Mas caso o país consiga dominar bem sua feitura, se torna uma opção geralmente melhor do que aquelas baseadas em urânio-235.

Fissão nuclear: Quando um núcleo atômico se divide, parte da energia de ligação que mantinha esse núcleo estável é liberada na foram de uma imensa quantidade de radiação eletromagnética (raios X, raios gama, infravermelho, etc.) e energia cinética, a qual logo se transforma em energia térmica e gera o grande aumento de temperatura e expansão dos gases (explosão).

IAEA: Fiscaliza o enriquecimento de urânio e programas nucleares ao redor do mundo, permitindo que o processo ocorra apenas para o uso em usinas nucleares para a produção de energia elétrica (seguindo os acordos internacionais).

Países que efetuam, explicitamente, o enriquecimento de urânio: Brasil, Argentina, EUA, Coreia do Norte, Irã, Inglaterra, China, França, Alemanha, Índia, Japão, Rússia, Paquistão e Holanda. Outros como a Itália e Bélgica, compram urânio enriquecido desses países. Já alguns são suspeitos de terem programas de enriquecimento escondidos, como Israel. E, por último, alguns não possuem mais o programa de enriquecimento, como a África do Sul.

Curiosidade: O Brasil possui uma notável tecnologia de enriquecimento de urânio e isso rendeu uma forte tensão com a IAEA em 2004. Nesse período, estava sendo construído (e ainda está) uma moderna instalação de centrífugas para o enriquecimento, em Resende, fato que chamou a atenção dos inspetores da agência internacional. Mas o governo brasileiro não quis deixar que a IAEA inspecionasse o projeto, alegando proteção de tecnologia nacional, já que as centrífugas prometiam ser 25% melhores do que as existentes no resto do mundo. Uma artigo da periódico Science, no mesmo ano, alegou que as centrífugas de Resende teriam o potencial de produzirem bastante urânio enriquecido para abastecer entre 5 e 6 armas nucleares por ano. Isso serviu para jogar ainda mais fogo na questão, onde críticas pesadas foram feitas ao programa nuclear brasileiro. Mas no final de 2004, um suado acordo foi alcançado, e a IAEA teve permissão de vistoriar as instalações e deu um resultado positivo para o que viu. Hoje, nosso programa nuclear anda meio parado e cheio de dívidas. No futuro, com um possível maior uso da energia nuclear pelo mundo, talvez o Brasil saia no lucro, podendo até vender bastante urânio enriquecido para outros países a preços salgados.


Artigo Complementar: O que é uma Bomba de Hidrogênio?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.princeton.edu/~rskemp/Kemp%20-%20Gas%20Centrifuge%20and%20Nonproliferation%20-%20SPLG.pdf
  2. https://fas.org/issues/nonproliferation-counterproliferation/nuclear-fuel-cycle/uranium-enrichment-gas-centrifuge-technology/centrifuges-nuclear-weapon-proliferation/
  3. https://www.nrdc.org/policy-library?f[0]=field_issue_term%3A30&f[1]=field_priority_term%3A44
  4. http://www.nuclearweaponarchive.org/Nwfaq/Nfaq4-1.html#Nfaq4.1.7.1
  5. http://www.exportcontrols.org/centrifuges.html
  6. http://www.world-nuclear.org/information-library/nuclear-fuel-cycle/conversion-enrichment-and-fabrication/uranium-enrichment.aspx#.UWrver-IRAs
  7. https://www.iaea.org/
  8.  https://web.archive.org/web/20080303234143/http://www.uic.com.au/reactors.htm
  9. http://www.cnfc.or.jp/e/proposal/reports/index.html
  10. http://www.nti.org/analysis/articles/brazils-nuclear-ambitions/