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O que é o Déjà vu?


- Atualizado no dia 20 de novembro de 2023 -  

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         De acordo com algumas estimativas, mais de dois terços da população mundial experiencia, de forma regular, algo singular e quase sobrenatural: a nítida sensação de já ter vivido um certo acontecimento sendo testemunhado em tempo real. Esse é o famoso 'Déjà vu'. Para muitos, o déjà vu é apenas uma leve sensação do tipo "Eu já estive aqui antes". Para outros, a experiência é bem mais profunda, caracterizada não só pela sensação de familiaridade como também de previsão do que vai acontecer ao redor. Esse tipo de fenômeno obviamente alimenta crenças sobrenaturais, desde vidas passadas até clarividências. O déjà vu foi inclusive famosamente retratado no filme Matrix (1999) representando uma alteração na programação do mundo artificial criado pelas máquinas. Mas, afinal, existe explicação científica para o déjà vu? É uma falha no sistema de memória do cérebro?

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   HIPÓTESES ETIOLÓGICAS

          A expressão Francesa 'Déjà vu' significa literalmente 'já visto', e foi cunhado pelo psicólogo Francês Émile Boirac no seu livro l'avenir Des Sciences Psychiques (1917). Estima-se que até 97% da população mundial já experienciou o déjà vu (DV) pelo menos uma vez na vida e que 67% experienciam regularmente o fenômeno. Ao longo da vasta literatura acadêmica sobre o assunto, o DV já foi relacionado a várias condições neurológicas, como memórias falsas e epilepsia do lobo temporal. Em pacientes psiquiátricos, o fenômeno de DV é mais frequentemente visto em indivíduos com ansiedade e pessoas com desrealização/despersonalização. Evidências acumuladas até o momento sugerem que a região temporal no cérebro é a origem do DV tanto em indivíduos saudáveis quanto em indivíduos com condições neurológicas e psiquiátricas, mas os exatos mecanismos desse fenômeno são ainda desconhecidos.

          O fenômeno de DV quando experienciado por até 76% da população saudável é pensado de refletir uma aberrante mas não-patológica função cerebral entre sistemas neurais relacionados com a memória. Apesar do déjà vu ser comum na população em geral, o fenômeno é raro em crianças, e, nesse público, pode ser um dos primeiros sinais de um evento neurobiológico como epilepsia do lobo temporal, especialmente se os episódios forem frequentes.

          Em um estudo publicado em 2018 no periódico Memory (Ref.11), pesquisadores recrutaram 21 adultos saudáveis (17 mulheres com idades de 19-24 anos) para investigarem a ocorrência de DV induzida em ambiente laboratorial. Usando técnicas simulando familiaridade e outros elementos associados ao fenômeno, e escaneamento via imagem por ressonância magnética funcional (fMRI), os pesquisadores encontraram evidências consistentes com um conflito de memória durante o DV (conflito mnemônico) ocorrendo nas regiões do córtex pré-frontal, incluindo o cingulado anterior, o córtex parietal lateral e o córtex medial. Em específico, eles mostraram ser necessário o fator de familiaridade em conjunto com a ciência de algo estar inapropriado em relação à familiaridade para o DV ocorrer. Ainda segundo a conclusão do estudo, regiões frontais medianas envolvidas no controle cognitivo, monitoramento e resolução de conflitos podem também atuar na fenomenologia da experiência, apesar de não ser ainda elucidado como os vários elementos levando ao conflito mnemônico são integrados na experiência consciente.

          Nesse sentido, um mau funcionamento temporário nessas áreas do cérebro pode fazer com que um lugar/ação familiar pareça o mesmo já vivenciado outras vezes. Por exemplo, você entra em um Banco específico e a falha cerebral faz você pensar que já viveu aquele momento no Banco, por já ter frequentado vários outros parecidos. Ou a pessoa pode afirmar com toda a certeza que já esteve em um lugar do qual nunca esteve de fato, porque, em uma fotografia ou vídeo qualquer, viu o mesmo lugar de forma inconsciente e relembrou dele ao mesmo tempo em que a falha na tal região cerebral ocorreu.

          Nesse último caso, o cérebro pode guardar uma cena de forma inconsciente na memória e resgatá-la em um momento específico de forma conflituosa. Ou seja, você armazena um fato que nem se deu conta de ter visto (isso ocorre a todo momento), podendo ocorrer desse fato ser muito parecido com uma situação que vai ocorrer no seu cotidiano, e, quando esta acontece, você pode achar que já viu aquilo antes devido a um relapso do sistema de memória. Por exemplo, você estava lendo um livro na rua e um senhor de idade está próximo de você conversando com uma mulher loira, mostrando a ela uma cena curiosa no jornal. Como você está concentrado vendo o livro, acabou guardando aquele momento na memória de forma inconsciente. Se em um momento da sua rotina você se deparar com um idoso conversando com uma mulher loira qualquer e segurando um jornal na mão, seu cérebro pode puxar aquela memória inconscientemente registrada no mesmo instante e falhar em diferenciá-la da cena presente. Com isso, tudo em frente aos seus olhos pode parecer inédito, dando a impressão de que você já viveu aquilo.

            Por outro lado, a experiência de DV também ocorre como uma manifestação de doenças neurológicas - geralmente referido como déjà vecú (!) -, como epilepsia do lobo temporal (um tipo de aura), e em vários transtornos psiquiátricos, como ansiedade e depressão. Enquanto diferente em frequência e duração, o DV parece ser qualitativamente o mesmo tanto em um contexto patológico quanto em um evento não-patológico, especialmente em termos de redução do volume hipocampal. A formação do hipocampo é uma região de massa cinzenta essencial nas funções de memória, e consiste de vários subcampos. Além do fenômeno do DV, o volume hipocampal é diminuído frequentemente em quadros de epilepsia, e em especial o DV espelha a distribuição dessa perda de volume em pacientes com epilepsia do lobo temporal mesial com esclerose hipocampal envolvendo regiões hipocampais e para-hipocampais, córtices entorinal e peririnal, neocórtex temporal lateral, núcleos talâmico e estriatal, giro cingulado, ínsula e cerebelo. Reduções no volume hipocampal em padrões variados são encontrados em casos severos de transtorno mental, como na esquizofrenia.

          Em 2012, um estudo publicado no periódico Cortex (Ref.12), utilizando análises via neuroimagem por ressonância magnética, investigou a morfologia entre indivíduos saudáveis com e sem DV, encontrando um conjunto de regiões corticais (predominantemente mesiotemporal) e subcorticais que apresentavam significativa menor concentração de massa cinzenta (corpos de neurônios) em indivíduos que reportavam DV regularmente. E nessas regiões, o volume de massa cinzenta foi inversamente correlacionado com a frequência de DV. Isso sugere uma alteração na função do hipocampo e da neurogênese pós-natal refletindo os eventos de DV. O achado corrobora evidências prévias e posteriores relacionando a região temporal com o DV, em particular a mesma redução de massa cinzenta no hipocampo vista em pacientes com condições psiquiátricas e neurológicas que também reportam alta incidência de DV.
       
          O hipocampo nesse sentido é considerado uma estrutura chave na patofisiologia da esquizofrenia. Falha no recrutamento hipocampal durante a recuperação de memórias combinado com a atribuição de forte importância comportamental para estímulos que seriam em outras circunstâncias seguramente ignorados (algo chamado de 'saliência aberrante') é sugerido de potencialmente basear os estados alucinatório e ilusório da esquizofrenia. E esse conceito de fornecer contexto irrelevante para perceptos/cognições sendo processadas em tempo real corresponde a uma das mais aceitas teorias de mecanismos por trás do déjà vu. Acredita-se que um processamento aberrante de memória leva a uma familiaridade implícita de um estímulo não-reconhecido.
     
          Aliás, na análise de um caso reportado no final de 2018 no periódico Memory (Ref.13) pesquisadores mostraram que um paciente com uma lesão seletiva no córtex entorinal esquerdo realmente possuía a ocorrência mais frequente de DV (autoreporte e via experimentos laboratoriais). Já um relato de caso publicado em 2019 também no periódico Memory (Ref.18) descreveu o caso de um paciente com dano bilateral no hipocampo reportando frequentes episódios de déjà vu. Isquemia no córtex visual, lobo meso-temporal e hipocampo, e subsequente intervenção terapêutica de trombólise, também têm sido associados com quadros intensos e transientes de déjà vu (Ref.23). 

          Déjà vu é comumente experienciado durante convulsões no lobo temporal e pode ser evocado por estimulação elétrica dessa região no cérebro. Evidência clínica recente aponta que estimulação elétrica da ínsula - um lobo cerebral com muitas funções (ex.: linguagem, regulação visceral motora e sensitiva, comportamento alimentar, memória, dor, controle cardiovascular, emoção) - é também capaz de gerar episódios de déjà vu (Ref.24).

          Interessante apontar que o fenômeno do déjà vu tem sido associado com doenças cardiovasculares, apesar do mecanismo para essa associação não ser totalmente entendido (Ref.25). A primeira hipótese apoia-se na sugestão de que o déjà vu é o resultado de uma disrupção no lobo temporal, o qual também é responsável por regular a pressão sanguínea e a taxa cardíaca. Outra hipótese sugere que pode existir um fator genético compartilhado entre as duas condições, com certos indivíduos sendo predispostos a experienciar ambos. Nessa última hipótese, o gene APOE (apolipoproteína E), em particular, tem sido associado com processamento de memória, doença de Alzheimer e um risco aumentado de doenças cardiovasculares (a proteína codificada por esse gene está envolvido no metabolismo de lipoproteínas, incluindo colesterol e triglicerídeos, e está também envolvido no desenvolvimento de aterosclerose).


   (!) JAMAIS VU

          Jamais vu é um fenômeno relacionado à experiência de déjà vu, porém produzindo um efeito oposto a esse último: o indivíduo subjetivamente percebe algo como não-familiar mesmo sendo bem familiar ao indivíduo. O termo vem do Francês "nunca visto". Descrições dessa estranha experiência no dia-a-dia emergem quando processamos ou experienciamos rostos e lugares (como a peculiar sensação de que uma pessoa bem conhecida parece diferente ou estranha, ou temporariamente encontrar um ambiente familiar novo). A sensação do jamais vu pode também emergir de atos procedurais como durante o uso de um instrumento musical ou direção de um carro: o indivíduo pode estar realizando um ato repetitivo e, subitamente, ter uma sensação de completa perda de fluência.

           Nesse último caso, talvez o mais comum exemplo de jamais vu é a escrita de palavras. Muito ocasionalmente com palavras bem familiares, nós temos a (geralmente breve) sensação de que o que estamos escrevemos está errado (mesmo a palavra estando correta em termos ortográficos), ou que a forma escrita de uma palavra parece estranha ou peculiar.

           Como o déjà vu, o jamais vu têm sido comumente descrito como um sintoma de epilepsia e de enxaqueca. Existe também associação com síndromes desilusionais. Apesar de ser muito escassamente estudado, o fenômeno é facilmente reproduzido em laboratório através de paradigmas de apresentação repetitiva (foco dissociativo). Por exemplo, tarefas de alienação em ambiente controlado podem transformar palavras comuns (ex.: casa) em um amontoado de letras sem significado. Da mesma forma, falar em voz alta alguma palavra comum repetidas vezes pode tornar o som dessa palavra momentaneamente sem significado.

         É sugerido de que o jamais vu e o déjà vu são experiências anômalas de memória similares em termos de mecanismo, e pessoas experienciando um jamais vu parecem experienciar com maior frequência déjá vu (Ref.18). 


   DÉJÀ VECU

          Enquanto que o déjà vu é um fenômeno que envolve a errônea sensação de familiaridade, o déjà vecu é uma errônea sensação de recordação, onde o indivíduo afetado fortemente acredita que está vivendo um momento no presente já vivido previamente, sem conseguir perceber que o presente é algo novo. É geralmente associada a um quadro patológico e debilitante, acompanhando outras condições neurológicas.

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OBS.: Existe também o fenômeno conhecido como Déjà entendu, termo que significa 'já ouvido'. Basicamente é o mesmo fenômeno do DV mas envolvendo a sensação de familiaridade sonora, não visual.
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   "PREMONIÇÃO"

         Como visto, o DV está começando a ser cientificamente entendido como um fenômeno de memória, sendo tanto engatilhado por uma memória de uma experiência passada que está relacionada com a atual situação, mas podendo também ser acompanhado de atividade epiléptica nas regiões medial temporal do cérebro associadas à memória.

         Apesar desse avanço no entendimento da base do DV, um mistério científico ainda permanece em grande debate: a frequentemente reportada associação entre DV e o sentimento de premonição, ou seja, a suposta capacidade de saber o que irá acontecer em seguida. Estudos de casos isolados via estimulação cortical já confirmou essa associação: já foi reportado que a estimulação da região cortical em um paciente foi acompanhada por um sentimento de saber exatamente o que iria acontecer em seguida (Ref.14).

         Se a memória em geral é conectada ao pensamento no futuro, então segue-se logicamente que estados subjetivos da memória durante falhas em sua recuperação, também, poderiam estar ligadas ao ato de pensar sobre o futuro. Isso pode potencialmente explicar a reportada associação entre DV e sentimentos de premonição.

          Se um indivíduo já tinha previamente experienciado um evento particular no passado, então ele estaria em uma posição de potencialmente relembrar como aquele evento se desnovelou ao longo do tempo. Mesmo se o ato de relembrar falhar, o sentimento de familiaridade pode levar ao tininte sentimento de que a recordação é iminente, similar ao estado de 'está-na-ponta-da-língua'. Evidências corroborando esse cenário existem (Ref.14) e podem apontar para a ideia de que a memória é em si um processo futuro-orientado.

          Trabalhos de esclarecimento nesse sentido estão sendo realizados, por exemplo, pela pesquisadora de memória Anne Cleary, da Universidade do Estado do Colorado, uma das maiores especialistas em DV do mundo. Cleary usa experimentos diversos em laboratório há anos para induzir artificialmente a sensação de DV em vários participantes. Usando mapas do jogo de simulação Sims, ela já tinha demonstrado que quando cenas eram espacialmente mapeadas para diferentes cenas que foram vistas mais cedo mas esquecidas, mais casos de DV ocorriam entre os participantes, reforçando a ideia de uma familiaridade resgatada na memória subconsciente.

          Em um estudo publicado recentemente por Cleary no periódico Psychonomic Bulletin & Review (Ref.16), ela e seu time de pesquisa ofereceram uma explicação plausível para a suposta clarividência envolvida no DV. Experimentos laboratoriais controlados prévios já tinham mostrado que as pessoas tendo DV obviamente não eram capazes de predizerem, de fato, o que iria acontecer em seguida.

          No novo estudo, os pesquisadores experimentalmente encontraram que a sensação de "Eu sabia o que iria acontecer" é provavelmente parte da ilusão de predição que frequentemente acompanha a DV e fomentada por um alto grau de familiaridade, criando simplesmente um sentimento de clarividência, e não uma real clarividência. Os experimentos foram projetados de forma a induzir um evento de DV e a impedir qualquer tipo de predição antecipada (sucessão de ações aleatórias). Segundo os achados do estudo, se a cena inteira é percebida como fortemente familiar à medida que ocorre, isso pode enganar nosso cérebro em pensar que ele sabia de tudo antecipadamente. Ou seja, um sentimento específico de achar saber o que iria acontecer em seguida é engatilhado e diretamente associado ao fator de familiaridade, nada mais especial do que isso. Isso também reforça a hipótese de que o nosso sistema de memória possui a função primordial e automática de guiar nossos passos futuros.

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   RELATOS DE CASOS (Déjà vu Recorrente) 

- PRIMEIRO CASO

           Em um relato de caso publicado no periódico Journal of Dental and Medical Sciences (Ref.19), um jovem de 18 anos do sexo masculino foi encaminhado para uma clínica psiquiátrica reclamando sentir uma sensação de contínua familiaridade com o desconhecido e com situações completamente novas pelos últimos 2 meses. Quando questionado em maiores detalhes sobre sua condição, o paciente disse:

          "Eu posso sentir que eu já conheço você, eu sei o que você vai dizer, assim como eu já visitei essa clínica antes. A situação parece familiar assim como o tópico da conversa é também conhecido por mim. Quando eu estava recentemente em um cinema que nunca havia visitado para a estreia de um filme, eu podia sentir que eu já tinha ido naquele cinema antes, visto o filme com as mesmas pessoas na sala e sabia todo o roteiro do dito filme mesmo sendo uma estreia."

           Além dessa sensação, o paciente não tinha histórico de qualquer período de confusão, movimentos tônico-clônicos, qualquer episódio de desmaio ou qualquer outra forma de aura. Em exame de imagem por ressonância magnética (IRM), nenhuma anomalia foi detectada. Porém, o exame de electroencefalograma (EEG) interictal durante o sono revelou uma descarga epiléptica generalizada.

          Nesse sentido, o paciente iniciou um tratamento com divalproato de sódio (500 mg duas vezes ao dia) mas os sintomas continuaram persistindo nas próximas duas semanas de acompanhamento. Então, ele recebeu 200 mg de carbamazepina duas vezes ao dia junto com o divalproato após o qual ele reportou sintomas de intensa sonolência e de entorpecimento. Seguindo esse reporte, todos os medicamentos prévios foram descontinuados, sendo iniciado tratamento com oxcarbazepina (300 mg duas vezes ao dia). Um mês após a mudança de regime medicamentoso, o paciente reportou melhora subjetiva de 50-60% nos sintomas de déjà vu e seu EEG retornou à normalidade. 

           Após um mês e meio, o paciente reportou que seus sintomas tinham sido completamente resolvidos e, portanto, ele havia parado de tomar os medicamentos.


- SEGUNDO CASO

            Em um relato de caso descrito no periódico The Turkish Journal of Pediatrics (Ref.20), uma paciente de 13 anos de idade foi apresentada ao hospital com um histórico de três meses de múltiplas experiências de déjà vu. Ela reportou sentir a sensação de ter certeza que testemunhou ou experienciou situações presentes, em suas próprias palavras "essa estranha sensação de que eu experienciei isso antes". Essa sensação causava ansiedade na paciente seguida por palpitações e uma sensação de náusea, sintomas que desapareciam dentro de alguns minutos sem a necessidade de intervenção. 

            A paciente não reportou dores de cabeça concomitantes, dificuldades de memória ou linguagem, ou deficiências visuais. Além disso, a paciente não reportou nenhum outro acidente prévio envolvendo trauma na cabeça, lesões no nascimento ou infecção. Fatores psicossociais de risco não foram identificados. Exame neurológico não identificou nenhuma anomalia. Porém, exames de eletroencefalograma (EEG) primeiro mostraram descargas bilaterais epileptiformes durante hiperventilação, e, em um segundo hospital - onde a paciente experienciou um déjà vu seguido de intensa náusea (aura com duração de 63 segundos) - o EEG revelou atividade com frequência delta e teta semi-rítmica a partir da área do lobo temporal anterior no hemisfério direito - caracterizando epilepsia do lobo temporal.

           Tratamento com carbamazepina foi iniciado e a paciente teve uma melhora progressiva dos sintomas, eventualmente ficando assintomática.


- TERCEIRO CASO

           Em um relato de caso descrito no periódico Journal of Medical Case Reports (Ref.21), um paciente Britânico e caucasiano de 23 anos de idade apresentou-se ao hospital em 2007 com déjà vu persistente. Ele reportou ter começado a experienciar recorrentes sintomas de déjà vu pouco depois de entrar na universidade. O paciente tinha um histórico de ansiedade, particularmente em relação a contaminações, o que o levava a lavar suas mãos com bastante frequência e a tomar banho duas a três vezes por dia. Sua ansiedade piorou na época que ele iniciou sua graduação, acompanhada de baixo humor, levando-o a dar uma pausa nos estudos. Foi quando os sintomas de déjà vu se iniciaram.

           Ainda em 2007, quando retornou à universidade, os episódios de déjà vu se tornaram mais intensos. Ele então resolveu tomar ácido dietilamida lisérgico (LSD), uma única vez, e desde então os episódios de déjà vu se tornaram quase contínuos. Um ano mais tarde, em 2008, ele foi orientado a se consultar com especialistas na área de neurologia. Eletroencefalograma (EEG) de rotina não revelou anomalias. O paciente recebeu, então, um diagnóstico psiquiátrico de depersonalização (transtorno dissociativo onde existe a sensação persistente de observar a si mesmo de fora do corpo ou ter a sensação de que seus arredores não são reais) e tratado com um espectro de medicamentos.

          Dois anos mais tarde, em 2010, os persistentes episódios de déjà vu pioraram e levaram o paciente a evitar assistir à televisão, ouvir o rádio, ler revistas e jornais, isso porque ele sentia que já tinha conhecimento prévio do conteúdo consumido. Como ele sabia que eram falsas memórias, os episódios constantemente o perturbavam. Nessa época, exames neurológicos continuavam indicando um quadro normal, porém o paciente reportava um humor baixo crônico e sentia ansiedade grande parte do tempo. O comportamento compulsivo prévio continuava não o incomodando, e foi revelado um histórico de transtorno obsessivo compulsivo no lado paterno da sua família e possivelmente no lado materno.

          Os pesquisadores concluíram que o paciente manifestava uma forma de déjà vu psicogênico, sem danos aparentes de memória, sem características epiléticas e sem evidências de transtornos neurodegenerativos. Eles sugeriram que a ansiedade crônica do paciente pode ter sido a causa dos quase contínuos episódios de déjà vu, estes por sua vez agindo como um feedback positivo e fomentando mais ansiedade.

          É plausível em termos neurobiológicos e já sugerido por estudo prévios que ansiedade pode levar à geração de déjà vu. A formação hipocampal, uma estrutura de central importância na memória declarativa e na habilidade de recordar acontecimentos, é também implicada no quadro de ansiedade como parte do sistema septo-hipocampal.


   COVID-19 E DÈJÀ VU

            Desde anosmia até encefalopatia, manifestações neuropsiquiátricas após infecção com o vírus SARS-CoV-2 - agente patogênico responsável pela COVID-19 - são comuns e persistentes. Recentemente, no periódico The American Journal of Geriatric Psychiatry (Ref.26),  pesquisadores reportaram o caso de uma paciente de 79 anos de idade que apresentou-se ao hospital reclamando de estar cansada de viver o mesmo dia de novo e de novo. A paciente havia sido hospitalizada 8 meses antes da apresentação devido a um quadro severo de COVID-19, passando a requerer contínua terapia de oxigênio. E, desde que a paciente deixou o hospital, ela começou a desenvolver confusão episódica, agitação e problemas de memória, os quais gradualmente melhoraram. No entanto, a paciente desenvolveu uma severa agonia devido a uma sensação de déjà vu caracterizada por um senso de familiaridade com eventos na sua vida diária.

             Não havia histórico de perda de consciência, movimentos involuntários anormais ou outros semiologias relacionadas a convulsões. Devido à agonia causada pelos sintomas de déjà vu e consequente deterioração da sua qualidade de vida, a paciente também reportou que estava sofrendo com depressão, ansiedade e insônia.

              A paciente descreveu a experiência de déjà vu como similar a estar "presa em ciclo de repetição do mesmo dia". Ela também reportou vários meses ouvindo barulhos de sinos e fluxo de água nos ouvidos. 

            Exame de MRI (imagem por ressonância magnética) mostrou uma leve perda de volume e regiões multifocais no cérebro, incluindo lobos temporais bilaterais, e sinais consistentes com microangiopatia de matéria branca crônica. A área afetada do lobo temporal pode potencialmente explicar os sintomas de déjà vu - e também aqueles relativos aos problemas de memória -, e implicar possível infecção do vírus nessa região do cérebro.

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   CONCLUSÃO

          Ainda existem muitos cientistas trabalhando para explicar os mecanismos exatos que governam o déjà vu, mas o hipocampo e a região temporal em geral parecem ser cruciais para o fenômeno. É também difícil fazer estimativas sobre o número de pessoas que tiveram essa experiência no decorrer da vida. Pode ser que todo mundo já teve e, às vezes, não se lembra.

           O curioso é que existem relatos  de pessoas que ficam o tempo todo tendo déjà vus, chegando ao extremo do fenômeno ser parte integral da vida do indivíduo (Ref.6)! Mas ninguém com déjà vu prevê o futuro, apenas possui um forte sentimento de clarividência como parte da ilusão associada ao fenômeno. Outro fato interessante é que adultos com idade superior a 25 anos relatam menos experiências com o dejà vu do que os adultos mais jovens. Isso é realmente intrigante para os pesquisadores, porque se esse fenômeno é uma falha nas funções cerebrais, o déjà vu deveria ficar mais frequente à medida que a idade avança, já que o cérebro vai se deteriorando ao longo dos anos.
         

REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
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  4. http://brain.oxfordjournals.org/content/117/1/71.short
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