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Ameba comedora de cérebros e o aquecimento global antropogênico

- Atualizado no dia 18 de novembro de 2023 - 

          Recentemente, o departamento de saúde da Flórida reportou mais uma infeção por uma mortal ameba, no Condado de Charlotte (Ref.18). Aparentemente, o indivíduo infectado estava usando água de torneira para realizar lavagem [irrigação] nasal sem adequado tratamento prévio de esterilização (1). O indivíduo infectado acabou morrendo.

(1) Leitura recomendadaÉ seguro usar sal iodado para irrigação nasal?

        Chamada popularmente de 'ameba comedora de cérebro', a espécie Naegleria fowleri causa uma incomum mas devastadora doença cerebral similar a uma meningite aguda. A taxa de letalidade dessa doença é superior a 95-97%, ou seja, a infecção efetiva é quase sempre letal. Particularmente desde o ano 2000, tem ocorrido um substancial aumento de casos de PAM reportados ao redor do mundo, provavelmente devido às mudanças climáticas deflagradas pelo processo de aquecimento global antropogênico. Existe já forte suspeita de subnotificação e de que casos irão começar a se disseminar para as regiões de mais alta latitude.

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   AMEBA E INFECÇÃO CEREBRAL

          A meningoencefalite amébica primária (MAP) é uma doença humana fatal e de rápida evolução causada pela ameba flagelada Naegleria fowleri. Primeiro detectada em um homem infectado na Austrália em 1965, no ano seguinte, em 1966, mais três casos fatais foram descritos na Flórida, EUA, chamando de vez a atenção da comunidade internacional para o problema.


   O PATÓGENO

         Como típico para o gênero Naegleria, a ameba N. fowleri é um protista heterotrófico unicelular que existe em três distintas fases: o cisto de repouso, um flagelado nadante, e o estágio ativo multiplicante da ameba, também chamado de trofozoíto. Apenas esse último (trofozoíto) se alimenta e pode invadir um hospedeiro humano ou outro mamífero, apesar da forma flagelada ser algumas vezes observada no fluído cerebroespinhal. Bem pequeno, em locomoção ativa, o trofozoíto possui cerca de 22 micrômetros (μm) de comprimento e 7 μm de espessura, com uma taxa locomotiva de ~45 μm/minuto a 37°C. A forma flagelada (biflagelada) possui um formato de pera com 15 μm de comprimento e com dois flagelos apicais ao redor de 12 μm de comprimento. Os cistos possuem entre 7 e 15 μm de diâmetro.


 
Cultura de trofozoítos de Naegleria fowleri a partir do fluido cérebro-espinhal de um paciente com meningoencefalite primária amébica, observada sob um microscópio de contraste de fase (ampliação de 600x). Referência: CDC.gov

         O trofozoíto no estágio ameboide é móvel através do seu citoesqueleto actina-baseado e rasteja ao redor comendo bactérias (ou hospeda células em seu modo parasita). Esse é o estágio reprodutivo e pode ser diferenciado em um flagelado ou um cisto. O biflagelado pode nadar através dos seus dois flagelos que são microtúbulo-baseados, na busca por melhores ambientes e alimento. O cisto é um estágio de repouso adotado durante situações estressantes como subótimas temperaturas, ambiente seco ou falta de presas. 



      
           A N. fowleri é classificada como um organismo termofílico, suportando altas temperaturas - como fontes geotérmicas e sistemas aquáticos recreativos aquecidos - e cresce a temperaturas de 30-46°C, mas em biofilmes é reportado que a ameba precisa de temperaturas de 42°C para suportar crescimento. Essa ameba permanece viável por 24 horas a 49°C e, no máximo, por 48 horas nessa temperatura. Trofozoítos e cistos pode também sobreviver de alguns minutos a algumas horas em temperaturas de 50-65°C, com cistos sendo mais resistentes nesse sentido. Abaixo de 10°C, os trofozoítos degeneram dentro de horas, enquanto os cistos pode sobreviver por até 6 meses a 4°C - ou seja, podem potencialmente persistir em lagos e rios no inverno, e voltar a crescer no verão. 

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> Evidência experimental mais recente indica que a N. fowleri possui melhor crescimento a 25°C. Maior salinidade na água reduz substancialmente a tolerância dessa ameba em temperaturas mais altas. Ref.25
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         Outras espécies do gênero, como a N. australiensisN. italicaN. lovaniensis e a N. philippinensis, também têm sido reconhecidas como termotolerantes, e potencialmente infecciosas.


   A DOENÇA

            A meningoencefalite amébica primária (MAP) é geralmente descrita como sendo uma rara doença e, de fato, é historicamente muito pouco reportada. Até o momento, a literatura acadêmica traz um acumulado de >440 casos conhecidos. No entanto, existe a tendência da MAP ocorrer em surtos e a suspeita de subnotificações. Dezesseis casos associados a uma única piscina já foram reportados, e três letais casos são suspeitos e um confirmado em uma pequena população de uma região rural de Queensland, Austrália (Ref.5). Em Karachi, Paquistão, foram reportados 13 casos ligados ao uso de água de torneira contaminada em 2008-2009, os quais foram atribuídos a um período de mais altas temperaturas, níveis reduzidos de cloro na água potável e/ou à deterioração de sistemas de distribuição de água (Ref.6).

          A MAP é geralmente contraída através da exposição à água - durante o nado e rituais/hábitos de lavagem do nariz, por exemplo -, quando a ameba entra em contato com o epitélio nasal do hospedeiro humano - mas também existindo a possibilidade de infecção via partículas de poeira (!). Após entrar pela narina, essas amebas fixam-se nas mucosas do nariz, entram no nervo olfativo, infectam esse nervo e eventualmente acabam chegando ao sistema nervoso central, ao cruzar a placa cribriforme. No cérebro, causa danos aos tecidos e necrose hemorrágica, com a secreção de enzimas hidrolisantes por essas amebas estando envolvidas na patogênese (Ref.7). O paciente perde o olfato e o paladar dentro de 5 dias e, quando a ameba começa a alimentar-se do tecido cerebral, o paciente rapidamente piora seu quadro de saúde devido às infecções e inflamações resultantes, as quais aumentam a pressão intracraniana e quase sempre levam à morte (!). A taxa de letalidade é em torno de 95-96%.

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(!) Foto de autópsia de um tecido cerebral infectado pela ameba, exibindo necrose e hemorragia focal: acesse aqui.

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           O período de incubação após a exposição é de 3-8 dias, após o qual a doença se desenvolve rápido, com o paciente tipicamente morrendo 7-10 dias após o surgimento dos primeiros sintomas. Não existe evidência de que a MAP pode ser transmitida entre humanos, apesar de experimentos com ratos sugerirem possibilidade de transmissão entre esses animais (Ref.5).

           Pacientes com MAP frequentemente chegam ao hospital apresentando dores de cabeça, garganta irritada, nariz entupido, febre, náusea, alterada percepção de gosto e de cheiro, e fotofobia. Vômito também pode ocorrer, causado por um aumento da pressão craniana ativando a area postrema da medula oblongada. Letargia e irritabilidade frequentemente levam a um estado de perda de consciência e coma.

           A MAP pode ser facilmente confundida por outros tipos de meningite, e os sintomas dessa doença e da meningite bacteriana são muito similares. Nesse sentido, um diagnóstico precoce - via análises laboratoriais - é essencial por causa do rápido desenvolvimento da infecção.

            Apesar de contínuo avanço no entendimento celular e molecular da patogênese associada ao N. fowleri (Ref.19), opções e tratamento ainda são muito limitadas, onde a mais promissora terapia é a medicação com antibióticos e antifúngicos como a anfotericina B, fluconazol, rifampicina e miltefosina. Múltiplos compostos têm sido também explorados e testados, com potencial terapêutico e atividade amebicida reportados in vitro, como a auranofina, debromolaurinterol, lactonas sesquiterpênicas e certos metabólitos secundários de plantas  (Ref.8, 20-23). 

            Muitas perguntas ainda precisam ser respondidas sobre a MAP. A infecção súbita e a morte de indivíduos aparentemente saudáveis baseiam dois mistérios relativos à infecção pelo N. fowleri: por que algumas pessoas são infectadas enquanto outras não, mesmo quando expostas ao mesmo ambiente de contaminação? Por que a exposição nasal é a única rota da infecção fatal, mesmo quando o indivíduo engole essas amebas ou exibe feridas abertas? Respostas imunes diferenciadas podem responder essas questões, apesar de não serem bem esclarecidas (Ref.9). Existe evidência de muitas infecções subclínicas com essa ameba, onde os anticorpos do corpo conseguem combater efetivamente o organismo invasor - mas por que não faz o mesmo para certos indivíduos? 

            Por exemplo, em 2014, Bangladesh registrou seu primeiro caso conhecido de MAP: um adolescente de 15 anos de idade do sexo masculino do Distrito de Nilphamari (Ref.10). Pelo fato de ser Muçulmano, o paciente possuía o hábito de rezar diariamente 5 vezes ao dia em uma mesquita e realizar ablução (incluindo lavagem do nariz com água) na mesma mesquita, via um suprimento de água subterrâneo. O paciente também se banhava frequentemente no Rio Khorkhoria e tomava banho dentro de casa via água subterrânea não-tratada. Independentemente da fonte de exposição à ameba, por que outros da comunidade também não foram infectados e por que o paciente demorou tanto tempo para ser infectado?

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           E o mais curioso: apesar da alta taxa de mortalidade da doença, nos últimos 10 anos, na Índia, 6 casos de MAP foram reportados em pacientes com idades variando de 25 dias até 73 anos de idade, com 4 deles sobrevivendo, incluindo o bebê! (Ref.10) Nesse caso, é possível que existam várias subnotificações de mortes, ou diagnósticos errôneos.

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(!) A rota seca de infecção responde até o momento por 6,5% dos casos de MAP onde possíveis fontes de exposição são reportadas (Ref.5). Nesse caso, o agente de infecção é o cisto do N. fowleri, o qual, quando entra em contato com as passagens nasais deixa de ser cisto e passa para o estágio infeccioso. Os cistos associados com a poeira podem também entrar nas narinas através dos dutos nasolacrimais nos olhos.

> Nos EUA, segundo o CDC, 157 casos de MAP foram registrados entre 1962 e 2020 - a maioria entre jovens com até 14 anos de idade -, com apenas 5 sobreviventes (Ref.17). Um pequeno número de casos de meningoencefalite têm sido descritos também em carnívoros, ruminantes e alguns outros animais selvagens (Ref.16). 

> O caso mais jovem registrado até o momento é de um bebê do sexo masculino de 11 dias de idade, enquanto o mais velho é de um indivíduo de 75 anos de idade (Ref.24).

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   DESCRIÇÃO DE CASO

            Em 2004, a Itália registrou seu primeiro caso de MAP, um garoto de 9 anos de idade (Ref.11). Após autópsia 30 horas após o anúncio da morte, análises imunofluorescente, imunoquímica e PCR confirmaram a ameba em secções do cérebro do paciente (imagem abaixo). Análises via sequenciamento do DNA e via reação de cadeia polimerase (PCR) confirmaram a ameba N. fowleri como o patógeno causador da infecção.



          Inicialmente, o paciente foi admitido em um hospital em Este, uma pequena cidade na região de Veneto (norte da Itália), com um histórico clínico de 1 dia de febre e persistente dor de cabeça no lado direito da cabeça. A criança tinha nadado e brincado nas águas associadas ao Rio Po 10 dias antes da emergência dos sintomas. Naquela época, a região estava experienciando um verão anormalmente quente, somando-se ao fato das águas do rio serem poluídas. Na admissão ao hospital, o paciente estava febril (temperatura de 38°C), com uma contagem total de leucócitos de 13,780/mm3 e nível de proteína C-reativa (marcador de inflamação) de 1,2 mg/L. Nenhum sinal de meningite estava presente no exame físico, e resultados de um escaneamento via tomografia computacional (CT) craniana acusaram normalidade. 

             No segundo dia de hospitalização, um pescoço rígido se desenvolveu, e o paciente se tornou progressivamente sonolento. Uma punção lombar revelou um fluído cerebroespinhal leitoso com 2,5 mmol/L de glicose, 4,54 g/L de proteína e uma contagem de leucócitos de 6,800/mm3 com 90% de neutrófilos. Análises laboratoriais não detectaram bactéria ou fungo. 

           No terceiro dia, uma análise sanguínea mostrou uma contagem total de leucócitos de 19,600/mm3 com 91% de neutrófilos e um nível de proteína C-reativa de 10,6 mg/L. Terapia empírica com ceftriaxona e corticosteroides foi iniciada, e o paciente foi transferido para a unidade de tratamento intensivo (UTI) do departamento de pediatria do Hospital da Universidade de Padua.

           Na admissão, a criança estava letárgica, e a avaliação neurológica determinou uma pontuação de 9 na Escala Glasgow de Coma. Tratamento com aciclovir e manitol foi iniciado (0,35 g/kg a cada 6 horas). Após algumas horas, a criança não mais respondia a estímulos de dor, e foi entubada e mecanicamente ventilada. Eletroencefalograma (EEC) mostrou um decréscimo na atividade elétrica, com ataques convulsivos curtos e focais. Análises laboratoriais continuaram não detectando nenhum vírus, bactéria ou fungo, mas neutrófilos continuaram aumentando.

          No sexto dia, hipertensão arterial e taquircadia se desenvolveram no paciente. Um escaneamento CT mostrou uma lesão no lobo frontal direito e edema cerebral difuso. Aproximadamente 1 hora mais tarde, anisocoria severa (10 mm na direta e 7 mm na esquerda) - tamanho (diâmetro) desigual das pupilas - se manifestou, seguida por midríase - dilatação da pupila em função da contração do músculo dilatador da pupila - fixa. EEG mostrou atividade isoelétrica, e o paciente foi anunciado morto.

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            Nenhum dos familiares e amigos que nadaram nas águas do rio no mesmo dia foram infectados, reforçando que a estranha infecção pelo N. fowleri é, no geral, rara.


    MEDIDAS DE PREVENÇÃO

           A infecção pela Naegleria fowleri NÃO acontece se a água contendo a ameba não entrar em contato direto com o interior do nariz. Você não será infectado caso a água seja ingerida (via oral). Nesse sentido, é recomendado:

- Durante lavagem ou irrigação nasal, use apenas água destilada ou esterilizada. Água de torneira deve ser fervida por pelo menos 1 minuto e resfriada antes do uso.

- NÃO permita que água entre em seu nariz durante o banho e limpeza do roso, ou durante atividades de natação (especialmente em águas desconhecidas ou em piscinas onde o status de tratamento com cloro é desconhecido).

- EVITE submergir sua cabeça durante banho em banheira ou similares.

- NÃO permita que crianças brinquem sem supervisão com mangueiras ou em fontes de água, considerando que podem acidentalmente injetar água no nariz. Evite atividades onde seja difícil prevenir que água entre dentro do nariz de crianças.

- Mantenha pequenas piscinas de plástico ou infláveis limpas - esfregando a superfície com produtos de limpeza adequados -, e permitindo secagem após cada uso.

- Mantenha sua piscina adequadamente desinfetada antes e durante o uso.

- Não participe de atividades em água quente parada ou de fluxo lento.

- Tape o nariz ou use um clipes nasal quando estiver realizando atividade em água potencialmente contaminada.

- Mantenha a cabeça acima do nível da água quando estiver nadando em água doce, fontes termais e outros corpos de água termais sem tratamento.

- Evite mergulhar e pular em água doce parada.

- Não cave ou agite sedimentos no fundo de corpos de água.

          Para reduzir ao máximo riscos de infecção com a N. fowleri, agências de saúde realçam evitar mergulhar a cabeça em águas desconhecidas - especialmente associadas a fontes termais - e não raspar o assoalho de rios e lagos, ato que pode ajudar a desprender mais amebas das superfícies de pedras. Na verdade, é sempre bom ficar atento para qualquer fonte de água com acesso público, porque a ameba comedora de cérebros acaba sendo apenas mais uma entre as inúmeras possibilidades de infecção nesses ambientes. Nesse último ponto, tente também evitar atividades em corpos de água caso esteja com qualquer corte ou ferida aberta no corpo.

> Busque imediatamente assistência médica caso você experiencie os seguintes sintomas após atividade de nado em lagos ou rios de águas quentes ou após procedimento de irrigação nasal:

- dor de cabeça;

- febre;

- náusea;

- desorientação;

- vômito;

- rigidez;

- convulsões;

- perda de balanço corporal;

- alucinações.

          Tratamento agressivo deve ser começado o mais cedo possível para aumentar a chance de sobrevivência do indivíduo.


    PRESENÇA DA AMEBA NO BRASIL

           O gênero Naegleria é encontrado em diversos habitats ao longo do planeta, e já foi isolado de lagos, poças, suprimentos domésticos de água, piscinas, piscinas térmicas, solo e poeira. Parece estar presente em todos os continentes, com exceção da Antártica (Ref.15). No total, são 47 espécies identificadas existindo como formas livres ameboides com alimentação a base de bactérias e divisão binária via fissão.

           Na América do Sul como um todo, ainda é amplamente desconhecida a distribuição das amebas desse gênero, incluindo a N. fowleri. Porém, no Brasil, já foi reportado a ocorrência da N. fowleri em um lago artificial na cidade do Rio de Janeiro, e espécimes do gênero Naegleria foram ligados a poeira e biofilmes em hospitais das cidades de Presidente Prudente e Porto Alegre. Em 2009, a N. fowleri foi correlacionada com poeira em dois campus de uma universidade na cidade de Santos. A capacidade do cisto de resistir à dessecação permite o estabelecimento da MAP via rotas secas de infecção

          Em relação específica a casos, temos um reporte de 1985 do diagnóstico de MA.P via análise imunológica do tecido cerebral de um paciente, e dois reportes de infecção da N. fowleri no gado (com base em análises histológicas e imunohistoquímicas). No entanto, análises moleculares seriam necessárias para confirmar de forma mais conclusiva o agente patogênico.

          Um estudo recente liderado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Carlos, e publicado no periódico Pathogens (Ref.12), analisando as águas do Rio Monjolinho, em São Paulo, encontrou cinco espécies do gênero Naegleria: N. philippinensis, N. canariensisi, N. australiensis, N. gruberi e N. dobsoni. Isso indica alta prevalência dessas amebas no Brasil e urgência para estudos de maior escala sobre esses organismos no país. E apesar de apenas a N. fowleri ter sido até o momento isolada de humanos, as espécies N. australiensis, N. philippinensis e N. italica são também potencialmente patogênicas devido ao fato de terem demonstrado infectividade e encefalite em ratos.

          A espécie Naegleria gruberi tem sido reportada também em corpos de água no sul do país (Ref.).

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   AQUECIMENTO GLOBAL 

          A devastação de biomas e as mudanças climáticas estão associadas com um maior fardo de doenças ao redor do mundo, especialmente através do maior contato de humanos com animais selvagens e da migração de patógenos e vetores patogênicos para mais altas latitudes do planeta. No caso específico da N. fowleri, o aquecimento global antropogênico pode tornar ambientes aquáticos diversos, como rios e lagos, em habitats ideais para esses organismos, aumentando as chances de infecção em humanos. Casos de MAP são tipicamente restritos a países com clima quente, com a distribuição mais fortemente associada a áreas onde as temperaturas anuais médias ficam entre 15°C e 18°C.

          Termofílica, essa ameba se multiplica melhor a temperaturas de 35-46°C, e com os trofozoítos sobrevivendo melhor em temperaturas variando de 27-37°C. O aumento médio da temperatura global irá prolongar as temporadas de crescimento e expandir habitats compatíveis dessa ameba. De fato, inúmeros casos de infecção têm sido ligados a aumentos anormais e locais de temperatura, e existe evidência de que a latitude dos reportes de infecção tem sido ampliada nos últimos 10-15 anos (Ref.10). Existe também evidência de um aumento real do número de casos reportados de MAP, especialmente a partir do ano 2000 (Ref.5), com especialistas já caracterizando a patologia como uma doença infecciosa emergente e fortemente associando a tendência de robusto aumento dos casos reportados com o processo de aquecimento global antropogênico (Ref.16). O Paquistão já enfrenta vários surtos e mortes causados pela ameba desde 2008, e a questão já é um sério problema de saúde pública no país (Ref.28). Casos entre animais não-humanos também têm sido reportados com maior frequência nos últimos anos (Ref.16).



           Mais recentemente, espécies termotolerantes do gênero Naegleria foram detectados em lagos recreativos no Canadá durante o verão (Ref.26). No Canadá, a temperatura anual média aumentou 1,7°C desde 1948, com recordes de temperatura nos últimos anos excedendo 40°C, incluindo 49,6°C em 2021 na vila de Lytton, tornando corpos de água no país cada vez mais convidativos a essas amebas, potencialmente a espécie N. fowleri.

            E o problema pode ser muito maior do que aquele sugerido pelo montante de casos reportados e descritos. Existe forte suspeita de que a MAP é muito mais comum do que a atual literatura acadêmica registra, especialmente em países em desenvolvimento onde os sistemas de saúde são deficientes. Muitos casos podem não ser reportados por serem confundidos por meningoencefalites virais ou bacterianas, com autópsias muitas vezes não sendo possíveis. É estimado que para cada três casos de MAP tipicamente reportados anualmente nos EUA, existam provavelmente mais 13 não-reportados. Aliás, surtos em Karachi durante 2015-2017 levaram a óbito 24 indivíduos infectados, e na República Checa 16 sucumbiram com a doença a partir de uma única piscina como fonte de infecção. Será que a MAP é tão rara assim? Qual é o real aumento da doença ao longo do século XXI no contexto das mudanças climáticas? 

           Na África, é comumente reportado a presença da N. fowleri nas narinas de pessoas não infectadas (Ref.5). Na Nigéria, um estudo reportou a presença de N. fowleri viável em 3 a cada 50 e de 2 a cada 50 crianças no Estado de Borno e em Zaria, respectivamente (Ref.13-14). Porém, estudos similares não têm detectado a ameba em nenhum indivíduo participante em países como França, Austrália, no Norte da Boêmia, e na Alexandria (Ref.5). É provável que em países Africanos e outras regiões do mundo, a incidência de MAP é altamente sub-reportada.

             O Brasil é um dos países com maior potencial da dispersão de amebas termofílicas do gênero Naegleria devido ao fato de possuir 20% do volume de águas doces do mundo, o mais prevalente habitat desses organismos.

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   CONCLUSÃO

           A letal patologia causada pela ameba N. fowleri já é considerada uma grave doença infecciosa emergente, e os riscos de infecções podem aumentar substancialmente nos próximos anos devido ao processo de aquecimento global antropogênico e aumento populacional. Tratamentos ainda são muito limitados, não existem fármacos específicos e as taxas de mortalidade alcançam 96%. O Brasil é um país com grande potencial de experienciar surtos futuros de infecção não só pela N. fowleri mas por outras amebas do gênero Naegleria que também podem potencialmente causar mortais danos cerebrais em humanos.


REFERÊNCIAS

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